Sem dúvida a obra mais importante da chamada “Escola Metódica”, e provavelmente o livro de metodologia mais influente da História. Antes de você se aprofundar na leitura do “Introdução aos Estudos Históricos” de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos (adquira aqui seu exemplar) que tal ter um panorama amplo da obra?
A obra “Introdução aos Estudos históricos” é dividida de uma maneira pouco usual. É separada em três livros, sendo que o Livro II é dividido, ainda, em duas seções.
O Livro I, “Preliminares”, trata da heurística e das chamadas “ciências auxiliares”. Por “heurística” Langlois (que escreveu sozinho essa parte) define o conhecimento específico para localizar os documentos históricos. Trata-se de uma longa discussão em que são apresentadas as dificuldades dos historiadores para localizar documentos históricos, além de discussões sobre os tipos de sistemas de catalogação das fontes. Grande parte do livro é tomada por lamentações sobre a demora, por parte das instituições de guarda de documentos, nos processos de construção de catálogos atualizados, e que seriam úteis aos historiadores. Langlois demonstra aqui uma certa prepotência que também estará presente quando passará em outros momento do texto: a ideia da superioridade dos estudos históricos sobre outros trabalhos eruditos, e suas exigências para que todos os demais deveriam, independentemente de seus objetivos pessoais, dedicar seus esforços em prol dos interesses dos historiadores.
Em um esforço constante para afirmar tanto a complexidade, quanto salientar as dificuldades dos trabalhos históricos, Langlois afirma que a história não é possível de ser realizada se seus profissionais não dominarem todos os conhecimentos necessários para a abordagem de documentos. Numismática, paleografia, diplomática, filologia são algumas das disciplinas que os historiadores devem conhecer para executar adequados trabalhos históricos. Aqui, e em boa parte do Livro II, Langlois afirma a necessidade de união dos vários trabalhadores especialistas, que lidam com pesquisas ligadas à história.
O Livro II vai trabalhar com as famosas críticas “externa” e “interna” dos documentos – expressando, em essência, os princípios de trabalho que tornaram famosa, e inclusive nominaram, a “Escola Metódica”. Cada uma dessas críticas é discutida uma seção específica: a possibilidade do conhecimento, afirma a obra, só é possível a partir do exaustivo trabalho crítico das fontes.
A “crítica externa” refere-se à origem do documento e busca por atestar sua veracidade, bem como a identificação correta de seu autor. A devida localização temporal, como uma identificação precisa da pessoa que produziu o documento, eram consideradas condições essenciais para a análise histórica, ainda que documentos anônimos não devessem ser descartados. A “seção 1” do Livro II apresenta uma longa discussão (não restrita a, mas mais presente no capítulo 5), das complexas relações que existiam entre o trabalho dos eruditos (os responsáveis primeiros pela realização dos trabalhos de crítica externa) e os dos historiadores. Novamente, Langlois subordina o trabalho de outros pesquisadores aos interesses da história, chegando a apresentar quais seriam as características de personalidade que seriam mais adequadas aos trabalho eruditos e aos históricos. Mais interessante, ainda, é sua defesa de unir os trabalhadores especialistas de modo a construir uma linha de produção (exatamente igual ao processo industrial) para trabalhos históricos – a principal forma, a seu ver, de se conseguir um efetivo avanço dos estudos históricos, dentro do mesmo nível de produção do conhecimento das demais ciências estabelecidas.
Ainda no Livro II, a “seção 2” é escrita quase que integralmente por Seignobos (com exceção do capítulo 2). Inicia-se, aqui, uma discussão mais profunda sobre os métodos e – mesmo que ambos os autores não gostassem dessa expressão – de princípios teóricos dos estudos históricos.
Nesta seção, Seignobos vai procurar discutir de que maneira os historiadores poderiam identificar a veracidade e a precisão das afirmações presentes nos documentos. Para isso, seria necessário tentar descobrir não apenas a posição social, os interesses e preconceitos dos autores das fontes, mas também a sua localização no momento em que testemunharam os eventos, como os representaram, a quais erros suas observações poderiam estar sujeitas. Era essencial separar o que era verdade – e que se constituirá como “fato histórico”, cientificamente determinado – do que era muito ou pouco provável, e mesmo da mentira.
O “Livro III”, escrito apenas por Seignobos é um longo tratado das possibilidades do conhecimento histórico, bem como seus limites. É aqui, também, que estão presentes, de maneira mais explícita, suas concepções de fato histórico, temporalidade, e causalidade.
Para Seignobos, os historiadores poderiam conhecer apenas certas representações do passado. Jamais seria possível recuperar o passado tal como realmente era (“jamais vimos guerreiros francos”, afirma em certo momento), mas apenas procurar reconstruir, na medida do possível, as representações mentais das pessoas do passado, quando testemunharam, ou participaram, de eventos importantes. Aqui entra uma importante relação entre presente e passado: como existia, para Seignobos, uma humanidade universal , os historiadores do presente utilizariam o conhecimento que teriam, no presente, para lançar interpretações sobre o passado. Se as pessoas dos presente não são fundamentalmente diferentes daquelas do passado, então teríamos condições de utilizar as nossas próprias experiências para reconstruir eventos já desaparecidos.
Já vimos pessoas de cabelos ruivos, escudos, tochas como a dos francos (ou pelo menos desenhos destes objetos); unimos estes elementos, a fim corrigir nossa primeira imagem mental dos guerreiros francos. A imagem histórica se forma, assim, enquanto uma combinação de características tomadas de experiências diferentes.
O conhecimento do passado, assim, só é possível a partir de certo relacionamento com o presente, e partindo-se do pressuposto de que exista uma determinada humanidade universal.
Em teoria, os fatos históricos, para Langlois e Seignobos, não são apenas os políticos: mas é evidente que têm preferência para os elementos políticos frente ao demais, como fica claro no quadro de organização de fatos históricos (p. 212 e seguintes). Fatos relacionados a “costumes intelectuais” e “costumes materiais” (envolvidos no que hoje se denomina de “histórica cultural” e “história da vida privada”) são claramente definidos como “não obrigatórios”. Além disso, não possuem existência autônoma: a sua compreensão exigiria, em primeiro lugar, sua relação com os fatos políticos do período.
Fatos são, então, eventos singulares, prioritariamente políticos e econômicos, especialmente extraídos de documentos escritos e oficiais, que podem ser expressos em afirmações simples. Esse seria – e o termo é meu, não dos autores – o átomo do conhecimento histórico. Procurando, sempre aproximar os métodos da histórica com os das demais ciências constituídas, especialmente a física e a química, Langlois e Seignobos acreditavam, assim, fazer da história uma verdadeira “ciência” que merecesse tal nome.
E se, de fato, esse compreensão limitada de fato associava-se a uma ideia também restrita de temporalidade, o pensamento metódico, especialmente o expresso por Seignobos, não era, assim, tão simples. É certo que a história era compreendida como uma flecha seguindo em determinada direção. Mas, para ele, nem sempre levava necessariamente ao progresso (o que era uma concepção teleológica, em sua visão), e nem sempre andava, por assim dizer, em uma velocidade única. Antecipando certas reflexões que se tornariam famosas com o historiador de Annales, Fernand Braudel, Seignobos afirma que a história poderia ter diferentes velocidades, em que certas épocas trariam poucos eventos, enquanto outras estariam repletas deles.
Sem dúvida, porém, o ponto mais frágil da argumentação de Seignobos é sua concepção limitada de “causa” em história. Diante de uma repulsa a qualquer “filosofia da história”, Seignobos se recusava a compreender e analisar contextos amplos de um determinado período, a não ser que fosse forçado a isso pela limitação dos documentos. Para ele, a evolução histórica era apenas uma sucessão de acidentes:
o estudo dos fatos históricos não aponta para um único progresso universal e contínuo da humanidade, que nos apresenta um número de movimentos progressivos parciais e intermitentes, e não nos dá qualquer razão para atribuí-los a uma causa permanente inerente à humanidade como um todo, senão, ao contrário, a uma série de acidentes pontuais.
É por isso que o nariz de Cleópatra pode ter mudado o destino de Roma. Além disso, fornece dois exemplos desconcertantes, pelo nível de ignorância que demonstra em relação aos contextos, e aos efeitos de processos históricos mais amplos: “No século XVI, a Inglaterra mudou sua religião três vezes pela morte de um soberano (Henrique VIII, Eduardo VI, Maria) (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 2017)”; e “As ações de Montgomery são a causa da morte de Henrique II da França; esta morte causa a ascensão dos Guisa ao poder, que por sua vez é causa da sublevação do partido protestante (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 2017)”.
A análise de “Introdução dos Estudos Históricos” demonstra que a Escola Metódica ainda tem condições de discutir com os historiadores do presente. As possibilidades do conhecimento histórico, e os métodos para se estabelecer afirmações que sejam fundamentadas em documentos ainda são relevantes, especialmente quando comparamos com o niilismo acrítico dos chamados “pós-modernos”.
Além disso, são importantes as reflexões metódicas da compreensão do conhecimento histórico enquanto representação, os limites dados aos historiadores, as relações entre presente e passado. Pontos importantes nos debates históricos ainda nos dias de hoje. Nesse caso, os metódicos (ou, ao menos Seignobos, particularmente) não eram obtusos como a crítica posterior fez acreditar.
Mas, da mesma forma, sua concepção de ciência histórica, as limitadas concepções de fato e causalidade, demonstram que o pensamento histórico efetivamente progrediu (para utilizar, propositalmente, um termo que desagradava Seignobos) em relação às concepções do final do século XIX.
Quer saber mais? Leia o primeiro capítulo.