Você irá ler, a seguir, um trecho da obra “Introdução às Ciências do Espírito” de Wilhelm Dilthey. Caso deseje saber mais sobre a obra, bem como adquiri-la, clique aqui ou na capa do livro abaixo.
Apresentação da obra e da coleção
Por Eugenio Imaz*
Neste primeiro volume das obras de Wilhelm Dilthey, posso finalmente dizer que apresento “uma obra” do autor e que não tive que realizar nenhum trabalho de seleção e adaptação, exceto pela travessura de fazer o autor falar por meio de um sonho. De fato, trata-se de uma obra esplêndida, que nos revela a firmeza desse homem para conduzir, com energia e elegância, as mais turbulentas quadrigas. No inverno de 1895-1896, Dilthey pensava em organizar os materiais acumulados desde a publicação do primeiro volume da Introdução (1883) e concluir sua obra definitiva com a publicação do terceiro livro, de caráter histórico, e do quarto, gnosiológico e sistemático. Não abandonou, nem pôde abandonar essa ideia até pouco antes de sua morte, pois foi no verão de 1911 que redigiu o prólogo destinado a introduzir todos os materiais acumulados para a parte sistemática, dos quais se desprendia, reunindo-os sob um título comum: O mundo espiritual. Introdução à filosofia da vida. Depois de uma segunda tentativa fracassada em 1907, ele considerou que suas ideias haviam atingido um nível superior com A estruturação do mundo histórico pelas ciências do espírito (1910).
Que me seja permitido repetir sobre Dilthey o que já se disse certa vez, um pouco timidamente, sobre Kant: que Dilthey morreu, aos 78 anos, prematuramente. Dissemos que, no verão de 1911, ele redigiu o prólogo. Mas a história não é tão simples. Primeiro, ele o escreveu, sem concluí-lo. Depois, o ditou, sem concluí-lo. Ainda acrescentou correções de próprio punho ao texto ditado, que permaneceu inacabado. Mas isso não é tudo, pois sabemos por sua própria declaração que “as melhores ideias lhe ocorriam no momento de corrigir as provas”. A morte reteve, de maneira impertinente, seu último toque. Com essa pequena anedota, o leitor pode “reviver”, de certo modo, o que foi a vida intelectual desse colosso: uma prolongada e jubilosa tortura do arquiteto monstruoso que, tendo traçado firmemente os luminosos planos de sua obra, dedicava-se a aperfeiçoar os materiais, deslocá-los, substituí-los por outros melhores que a vida lhe trazia, até partir para o outro mundo com a ideia perfeita de sua catedral, deixando o cuidado de seus complicados arquitraves, de seus vitrais luminosos, de suas finíssimas esculturas e de suas bem fundamentadas e altíssimas naves à piedade filial de seus discípulos. Como nos comove quando, em algum de seus escritos, ele levanta ligeiramente esse terrível fardo de seu destino como um exemplo preciso para esclarecer ao leitor a ideia da vivência! Também em Kant encontramos, em seus últimos anos, secos comentários comoventes sobre o secular ars longa, vita brevis, com o desejo de ilustrar o sentido redentor da história.
A obra de Dilthey é fragmentária, claro está. Mas quantos filósofos escaparam desse destino? Muitos tiveram uma vida longa, mas a arte foi ainda mais longa para eles. Os exemplos sobram. No entanto, seria um erro concluir que, por isso, sua obra seja contraditória, desconexa, cheia de lacunas. Ao comentar um escrito póstumo de Kant, Sistema da filosofia em sua totalidade, Kuno Fischer afirma:
É lícito duvidar do valor dessa obra, de seus novos pensamentos, da ordem e do método nela existentes, mesmo sem tê-la lido, ao considerar o estado de fraqueza em que se encontrava seu autor e ao pensar nas conclusões a que sua filosofia poderia tê-lo levado. Não se pode compreender que novos pensamentos poderiam surgir dentro de uma filosofia como a sua.
Também podemos dizer – com as devidas reservas em ambos os casos – sobre Dilthey: não se pode compreender que novos pensamentos poderiam surgir dentro de uma filosofia como a sua e, no entanto, afirmamos que morreu prematuramente. Basta comparar seu ensaio Sobre o estudo da história das ciências do homem, da sociedade e da história (1875) com o primeiro livro da Introdução às Ciências do Espírito (1883) para medir exatamente a distância que vai de um ensaio experimental a uma obra definitiva; ou confrontar o estilo conciso e preciso, o esplêndido desenvolvimento de sua exposição histórica no segundo livro, com o ritmo lento de muitos de seus ensaios históricos (como os publicados sob os títulos O Homem e o Mundo nos Séculos XVI e XVII e Hegel e o Idealismo) para imaginarmos o livro magistral que poderia ter sido a continuação da Introdução. Mas nem tudo é perda, pois também é verdade que muitos conceitos do primeiro livro dessa Introdução se esclarecem nas páginas mais livres e reflexivas do ensaio, além do interesse “histórico-evolutivo”, tão característico de Dilthey, que elas oferecem.
Sem dúvida, a anedota do prólogo nos adverte que o caso de Wilhelm Dilthey é muito particular, mas não no sentido de comprometer a unidade e a completude de seu pensamento, nem sequer naquele mais piedoso que seu discípulo Misch destaca: a áspera e constantemente indomável dificuldade de plasmar a intuição na razão. Ao lermos, por exemplo, seus ensaios sobre a “fundamentação das ciências do espírito”, ficamos impressionados com a potência intelectual desse homem para capturar, com as sutis redes da razão, fenômenos tão escorregadios quanto a vivência e a estrutura psíquica. As linhas fundamentais de seu pensamento são construídas com a mesma maestria arquitetônica, mas o caráter concreto e infinito de sua filosofia – elevar à consciência a própria vida – faz dele a figura atormentada que Vasari intuía no retrato de Michelangelo. Seu profundo temperamento poético o leva a retocar incessantemente a forma plástica de suas construções intelectuais e a buscar constantemente, na vida e na história, novos materiais de trabalho.
Tudo isso vem a propósito porque, com a publicação atual de sua Introdução, acreditamos ter chegado o momento de oferecer aos leitores de Dilthey o plano que nos orienta na edição de suas obras. Embora tenham sido acompanhados de explicações correspondentes, para o leitor eles poderiam ter parecido um pouco como caídos do céu. Mas não se assustem nem os cronólogos nem os historicistas ingênuos.
Dispusemos “nossa coleção” de forma bastante clara e, acreditamos, pouco arbitrária. Os volumes da coleção que ora publicamos estão distribuídos da seguinte forma:
I. Introdução às Ciências do Espírito
II. Homem e mundo nos séculos XVI e XVII
III. Hegel e Idealismo
IV. Psicologia e Teoria do Conhecimento
V. O Mundo Histórico
VI. Teoria da Concepção de Mundo
VI. História da Filosofia*
A apresentação de Dilthey que elaboramos como introdução a esta coleção revela com clareza a intenção filosófica fundamental de Dilthey: encarar integralmente o enigma da vida e realizar seu sonho por meio da fundamentação das ciências do espírito. Não é possível falar da filosofia de Dilthey sem essa conexão, nem compreender sua Essência da Filosofia (1907) fora desse contexto. Adiaremos, no entanto, o desenvolvimento detalhado do esquema.
Isso também significa que não concordamos com o esquema de Heidegger (Ser e Tempo), nem com o de Ortega (Dilthey e a Ideia de Vida), embora este não seja o momento de debatê-los.
Queremos, contudo, chamar atenção para o fato de que a afirmação de Heidegger de que sua obra está a serviço da de Dilthey nos parece um tanto irônica, senão involuntariamente sarcástica. O que Heidegger fez, com pleno direito, foi colocar a obra de Dilthey a serviço da sua própria – assim como fez com Bergson e Husserl. No entanto, e é isso que nos leva a essa digressão, esses três grandes mestres tiveram um propósito oposto ao de Heidegger, pois a raiz vital – que não se pode separar nem do solo nem do ambiente – de suas filosofias é outra. Cada um, a partir de sua própria posição, tentou enfrentar o relativismo que dominava a consciência intelectual do século XIX devido ao positivismo, ao psicologismo e ao historicismo. E todos o fizeram pelo método clássico dos filósofos: aumentando a dose. Assim, Husserl foi ainda mais positivista (fenomenologia), Bergson mais psicologista (psicologia profunda), e Dilthey levou o historicismo às últimas consequências, isto é, à autognose.
Com êxito ou sem ele, esse é o seu propósito. No caso de Husserl, não creio que seja necessário insistir. No de Bergson… leiam, por exemplo, Les grandes amitiés, de Raïsa Maritain. No de Dilthey… leiam seu sonho, a única manifestação de sua vida que, por sua natureza, escapa à reiteração corretiva e que, no entanto, também foi retocada!
Em outras circunstâncias de tempo e lugar, Dilthey representa algo semelhante ao que Bergson foi na França: uma possível fuga do relativismo. Péguy falava com desprezo dos cientistas e “historicistas” da Sorbonne e recomendava que se escutasse Bergson. Os “historicistas” a que se refere Péguy são os historiadores mergulhados na oficina dos fatos históricos, sem qualquer apreensão ou preocupação com o “sentido” ou algo semelhante. Contra esses historicistas também se dirige o historicismo de Dilthey. Não se trata de uma contradição.
Valendo-se da fenomenologia e de seu método como um bisturi – ou melhor, como uma broca –, Heidegger não faz mais do que perfurar, perfurar tudo o que encontra pela frente, incluindo o mundo histórico erguido por Dilthey, para terminar com o vazio puro, com a existência sustentada sobre o nada, e começar a fabricar sua filosofia existencial, como o sargento fabricava canhões: pega-se um vazio e depois o reveste. O In-der-Welt-sein heideggeriano já está perfeitamente prefigurado por Dilthey em A Origem de Nossa Crença na Realidade do Mundo Exterior (1890), mas, enquanto Dilthey constrói o sentido imanente do mundo, Heidegger constrói a imanente falta de sentido do nosso estar-no-mundo. Sua filosofia clama por uma complementação transcendente, seja por meio de uma teologia, seja à força, com uma camisa de força política. Já a razão de ser de Dilthey reside precisamente em sua antipatia pelo transcendentalismo teológico (Jenseitigkeit) e em seu apego ao aquém: às grandes objetividades da história. Sua crítica a Hegel é que este, envolvido pela política universitária, acabou participando de uma campanha contra a liberdade de pensamento.
Se já se fez a psicanálise da psicanálise de Freud, também seria interessante e possível realizar uma análise existencial da análise existencial de Heidegger. Veríamos, então, de maneira escandalosa, como ele distorce os fatos em favor de sua própria causa e “destrói” a história da ontologia até encontrar sua própria possibilidade existencial de Wiederholung, de repetição – um destino no qual possa encaixar o seu, esse destino pessoalíssimo de um estoico do nada consumido pela morte. Dizem que ele traduz os textos gregos “traindo-os” para não trair a si mesmo.
Isso é decisivo: os “preconceitos” filosóficos de Dilthey servem-lhe para realizar uma obra historiográfica incomparável, permitindo-lhe intuir e vivenciar intensamente todas as formas de criação espiritual que o mundo histórico nos oferece. Já os “preconceitos” de Heidegger servem-lhe para levar a cabo uma redução destrutiva, digna de um mestre em demolições. A primeira demolição que realiza com Dilthey é declarar que seu empenho gnosiológico – que o ocupou por toda a vida – não tem importância maior. Daqui decorre também o diferente valor educativo de uma e outra obra.
Quaisquer que sejam as fragilidades filosóficas da obra de Dilthey, sua intenção universalista e seu vasto humanismo a tornam proveitosa e fecunda. Insistimos deliberadamente na importância de sua contribuição histórica, pois não queremos, de forma alguma, que proliferem por toda parte pequenos filósofos diltheyanos. Dilthey representa o maior esforço já feito pelo psicologismo para salvar a história, conferindo-lhe um sentido. O psicologismo – os dados da consciência – é, queiramos ou não, a grande característica da época filosófica imediatamente anterior à nossa (Bergson, James, Dilthey, Husserl). E talvez uma boa ducha seja necessária para nos livrarmos dele, caso isso nos convenha. Afinal, não há outra maneira de reduzir os complexos senão encarando-os de frente.
O primeiro livro da Introdução representa, como Max Weber declara em suas Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, o primeiro estudo sério e abrangente a abordar o problema metodológico das chamadas ciências do espírito – em nossa tradição, “ciências morais e políticas” – , denominação que Dilthey adotou inicialmente, seguindo também a tradição francesa. Trata-se de um documento excepcional, pois dele se origina todo um movimento no estudo das ciências sociais, que se contrapõe àquele que, paralelamente e com igual genialidade, representa Max Weber. São duas obras titânicas que estabelecem com imponência as duas vertentes. Apenas chamamos a atenção para isso porque ainda estamos sob o impacto desse diálogo de altura, em que os solilóquios desses dois gigantes se entrelaçam. É preciso recorrer a essas duas fontes para compreender a grande polêmica do mundo científico atual: a construção das ciências sociais. Como o espetáculo do heroísmo, essa polêmica também eleva o espírito e inspira respeito pelo ser humano.
No epílogo de Hegel e o Idealismo, em que fizemos tantas recomendações impertinentes, nos escapou a mais impertinente de todas.
Livro Primeiro
Introdução: vislumbre sobre a conexão das ciências particulares do espírito que evidencia a necessidade de uma ciência fundamentadora
Também é certo que, até agora, a realidade tem se revelado à ciência investigadora, fiel às suas leis, com uma grandeza e abundância tais que nem os esforços mais extremados da fantasia mítica nem os da especulação metafísica poderiam jamais sonhar.
Helmholtz
I. Propósito desta introdução às Ciências do Espírito
A partir das famosas obras de Bacon, os escritos que se ocupam dos fundamentos e métodos das ciências da natureza e que, dessa forma, introduzem o estudo delas, foram em sua maioria redigidos pelos próprios pesquisadores, e os mais conhecidos entre todos são os trabalhos de sir John Herschel. Uma necessidade semelhante se fez sentir entre os que se ocupavam de história, política, jurisprudência, economia política, teologia, literatura, arte. Parece que as necessidades dos que se dedicam a essas ciências são diferentes das necessidades práticas da sociedade, sendo seu objetivo outro que a formação profissional, que serve à sociedade para que esta dote seus órgãos diretores de conhecimentos adequados às suas tarefas. No entanto, tal formação profissional poderá capacitar os indivíduos para desempenhos destacados apenas na medida em que ultrapasse os limites da formação estritamente técnica. A sociedade pode ser comparada a uma grande máquina em movimento, mantida nela pelos serviços de numerosas pessoas: quem estiver dotado apenas da técnica de sua profissão se encontrará, por melhor que a possua, na situação de um trabalhador que, durante toda sua vida, se ocupa em um único ponto dessa grande máquina, desconhecendo as forças que a colocam em movimento e sem ter ideia das outras partes do engenho e de sua cooperação no objetivo total. Será um instrumento útil para a sociedade, mas não um órgão que a molde conscientemente. Tomara que esta introdução facilite a políticos e juristas, teólogos e pedagogos, a tarefa de conhecer a relação entre os princípios e regras que os inspiram com a realidade mais ampla da sociedade humana, à qual, no fim das contas, está dedicado o trabalho de sua vida, a partir do ponto particular em que atuam.
Pela própria natureza do objeto, os conhecimentos necessários para resolver a tarefa proposta devem alcançar essas verdades que precisam ser colocadas na base tanto do conhecimento da natureza quanto do mundo histórico-social. Esta tarefa, que se funda nas necessidades da vida prática, encontra, ao ser considerada dessa forma, um problema que afeta a situação da teoria pura.
As ciências que têm como objeto a realidade histórico-social buscam com mais rigor do que antes sua conexão mútua e seu fundamento. Impulsionam nessa direção, juntamente com as causas que obedecem ao estado de cada ciência positiva particular, poderosas forças provenientes das convulsões experimentadas pela sociedade desde a Revolução Francesa. O conhecimento das forças que regem a sociedade, das causas que produziram suas convulsões, de seus recursos para um progresso saudável, tudo isso se tornou uma questão vital para nossa civilização. Por isso cresce a importância das ciências sociais frente às ciências da natureza; com as grandes dimensões de nossa vida moderna, verifica-se uma mudança no interesse científico, semelhante à que ocorreu nas pequenas cidades gregas nos séculos V e IV antes de Cristo, quando as mudanças operadas nessa sociedade de estados trouxeram as teorias negativas do direito natural dos sofistas e, diante delas, os trabalhos da escola socrática sobre o estado.
II. As Ciências do Espírito constituem um todo autônomo em relação às ciências da natureza
O conjunto das ciências que têm como objeto a realidade histórico-social é abrangido nesta obra sob o título de “ciências do espírito”. Somente ao longo da obra poderá ser explicado e fundamentado o conceito dessas ciências, com o qual constituem um todo, e a delimitação deste frente às ciências da natureza; assim, por ora, nos limitaremos a fixar o sentido em que vamos empregar essa expressão e a nos referir provisoriamente ao complexo de fatos em que se apoia a delimitação de tal todo unitário das ciências do espírito frente às ciências da natureza.
O uso comum entende por ciência um conjunto de proposições cujos elementos são conceitos, completamente determinados, constantes e de validade universal em todo o contexto mental, cujos enlaces estão fundamentados, e em que, finalmente, as partes se encontram entrelaçadas em um todo para fins de comunicação, seja porque, com esse todo, se pensa por inteiro uma parte integrante da realidade ou se regula uma área da atividade humana. Designamos, portanto, com a expressão ciência, todo complexo de fatos espirituais em que se dão as características mencionadas e que, por geral, costuma receber tal nome: assim, fixamos o âmbito da nossa tarefa de maneira provisória. Esses fatos espirituais que se desenvolveram no homem historicamente e aos quais o uso comum da linguagem se refere como ciências do homem, da história, da sociedade, constituem a realidade que tratamos, não de dominar, mas de compreender previamente. O método empírico exige que a questão do valor dos diversos procedimentos que o pensamento utiliza para resolver suas tarefas seja decidida histórica e criticamente dentro do corpo dessas mesmas ciências, e que se esclareça, por meio da consideração desse grande processo cujo sujeito é a humanidade, a natureza do saber e do conhecer neste domínio. Tal método está em oposição com outro que recentemente tem sido praticado com excessiva frequência pelos chamados positivistas, e que consiste em deduzir o conceito de ciência da determinação conceitual do saber obtida no trabalho das ciências da natureza, resolvendo depois, com esse padrão, quais atividades intelectuais merecerão o nome e o status de ciência. Assim, alguns, partindo de um conceito arbitrário do saber, negaram o status de ciência, com inegável miopia, à historiografia praticada pelos maiores mestres; outros, acreditaram ser pertinente transformar em um conhecimento acerca da realidade aquelas ciências que têm como fundamento imperativos e não juízos sobre a realidade.
O complexo de fatos espirituais que se enquadra nesse conceito de ciência costuma ser dividido em dois membros, dos quais um leva o nome de “ciências da natureza”; para o outro membro, o que é bastante surpreendente, não existe uma designação comum reconhecida. Adoto a terminologia daqueles pensadores que denominam essa outra metade do globus intellectualis de “ciências do espírito”. Por um lado, essa designação se tornou bastante geral e compreensível, graças também, em grande parte, à popularidade da Lógica de John Stuart Mill. Por outro lado, parece ser a expressão menos inadequada, se comparada com as opções que temos para escolher. Ela expressa de maneira muito imperfeita o objeto deste estudo. Pois nele não se encontram separados os fatos da vida espiritual da unidade psicofísica de vida que é a natureza humana. Uma teoria que pretende descobrir e analisar os fatos histórico-sociais não pode prescindir dessa totalidade da natureza humana e se limitar ao espiritual. Mas a expressão participa desse defeito como todas as que foram utilizadas; ciência da sociedade (sociologia), ciências morais, históricas, da cultura: todas essas denominações padecem do mesmo defeito, o de serem demasiado estreitas em relação ao objeto que tentam apontar. E o nome escolhido por nós tem, ao menos, a vantagem de desenhar adequadamente o círculo de fatos centrais a partir do qual se verificou na realidade a visão da unidade dessas ciências, fixou-se seu âmbito e demarcou-se, embora de maneira imperfeita, em relação às ciências da natureza.
A razão pela qual nasceu o costume de separar, em unidade, essas ciências das ciências da natureza encontra suas raízes nas profundezas e na totalidade da autoconsciência humana. Sem estar ainda alertado pelas investigações sobre a origem do espiritual, o homem encontra nesta autoconsciência uma soberania da vontade, uma responsabilidade das ações, uma capacidade de submeter tudo ao pensamento e de resistir a tudo dentro do castelo da pessoa, com o que se diferencia de toda a natureza. De fato, encontra-se dentro dela, para usar uma expressão de Spinoza, como um imperium in imperio[1]. E como para ele existe apenas o que é feito de sua consciência, na independência desse mundo espiritual, que age nele autonomamente, encontra-se todo valor, todo fim da vida, e na criação de fatos espirituais, toda a meta de suas ações. Assim, separa do reino da natureza um reino da história no qual, em meio à trama de uma necessidade objetiva, que é o que constitui a natureza, brilha a liberdade por inúmeros pontos; separa os fatos da vontade que, em contraposição ao curso mecânico das mudanças naturais, que já contém em princípio tudo o que acontece, produzem na verdade, com seu desperdício de força e seu sacrifício, cuja importância o indivíduo percebe de forma efetiva em sua própria experiência, algo realmente novo e originam um desenvolvimento na pessoa e na humanidade: acima da vazia e estéril repetição na consciência do curso natural, cuja ideia, convertida no ideal do progresso histórico, parece encontrar sua delícia nos fetichistas do progresso intelectual.
A época metafísica, para a qual essa diferença nas razões explicativas se apresentou logo como uma diferença substancial na articulação objetiva da conexão cósmica, lutou inutilmente para obter e fundamentar fórmulas que servissem de base objetiva a essa diferença entre os fatos da vida espiritual e os do curso natural. Entre todas as mudanças experimentadas pela metafísica dos antigos no pensamento medieval, nenhuma teve consequências maiores do que o fato de que, devido à conexão com os movimentos religiosos e teológicos, que dominavam tudo, e que sustentavam esse pensamento, foi colocada no centro do sistema a fixação da diferença entre o mundo dos espíritos e o mundo dos corpos, e depois a relação desses dois mundos com a divindade. A obra metafísica capital da Idade Média, a Summa de veritate catholicae fidei de Tomás de Aquino, traça a partir do segundo livro uma articulação do mundo criado em que se distingue a essência (essentia, quidditas) do ser (esse), enquanto que em Deus ambos são a mesma coisa[2]; na hierarquia dos seres criados, aponta como um membro supremo necessário as substâncias espirituais, que não se compõem de matéria e forma, mas que são per se incorpóreas: os anjos; separa delas as substâncias intelectuais ou formas que subsistem incorpóreas, mas que, para completar sua espécie (ou seja, a espécie humana), necessitam do corpo, e desenvolve nesse ponto uma metafísica do espírito humano em luta com os filósofos árabes, metafísica cujas influências podem ser seguidas até os últimos autores metafísicos de nossos dias[3]; separa desse mundo de substâncias imperecíveis aquela parte da criação que encontra sua essência na união de matéria e forma. Quando passou a dominar a concepção mecânica da conexão natural e a filosofia corpuscular, essa metafísica do espírito (psicologia racional) foi posta em relação com ela por outros metafísicos destacados. Mas fracassou toda tentativa de levantar uma concepção sustentável das relações entre o espírito e o corpo com a base daquela teoria das substâncias e com os recursos oferecidos pela nova concepção da natureza. Quando Descartes desenvolve, com base nas propriedades claras e distintas dos corpos, sua ideia da natureza como um gigantesco mecanismo e considera como constante a quantidade de movimento contida nesse todo, tem-se que, com o pressuposto de que uma única alma geraria de fora movimento nesse sistema material, penetrava irremediavelmente a contradição. E a impossibilidade de representar uma ação de substâncias sem espaço dentro do sistema extenso não foi diminuída pelo fato de fixar o lugar espacial da interação em um ponto, como se isso pudesse fazer desaparecer a dificuldade. A explicação aventurada de que a divindade mantinha o jogo das interações por meio de intervenções constantemente repetidas e a outra ideia de que Deus, como o mais excelente dos artistas, havia sincronizado de tal maneira os dois relógios, o sistema material e o mundo espiritual, que parecia que um acontecimento natural produzia uma sensação e um ato de vontade mudava o mundo exterior, demonstraram de forma patente a incompatibilidade da nova metafísica da natureza com a metafísica tradicional das substâncias espirituais. Esse problema operou como um estímulo constante para a liquidação do ponto de vista metafísico. Essa liquidação será completamente realizada com o conhecimento ulterior de que a vivência da autoconsciência constitui o ponto de partida do conceito de substância, que esse conceito nasceu da adaptação dessa vivência às experiências externas levadas a cabo pelo conhecimento progressivo segundo o princípio da razão suficiente e que, portanto, essa teoria das substâncias espirituais não significa outra coisa senão um retrocesso do conceito, originado nessa metamorfose, à vivência mesma de onde ele havia tirado sua origem.
Em lugar da oposição de substâncias materiais e espirituais, surgiu a oposição entre o mundo exterior, o mundo do dado na percepção externa pelos sentidos (sensação) e o mundo interior que nos é oferecido primariamente pela captação interna dos acontecimentos e atividades psíquicas (reflexão). Dessa forma, o problema assume uma forma mais modesta, mas que comporta a possibilidade de ser tratado empiricamente. E, diante dos novos e melhores métodos, também se tornam válidas as mesmas vivências que, na teoria das substâncias da psicologia racional, haviam encontrado uma expressão cientificamente insustentável.
Para a constituição autônoma das ciências do espírito, basta, por enquanto, que, a partir deste ponto de vista crítico, se separe desses fenômenos que se constituem com o material do dado nos sentidos, e apenas com esse material, por meio de ligações mentais, outro círculo de fatos que nos são dados primariamente na experiência interna, portanto, sem a cooperação dos sentidos, e que depois, sobre o material primariamente dado da experiência interna, se “configuram”, por sugestão dos fenômenos naturais exteriores e para subordiná-los a eles por meio de um método que, tal como opera, equivale ao raciocínio por analogia. Assim surge um campo peculiar de experiências que tem sua origem própria e seu material na vivência interna e que, portanto, é objeto de uma ciência empírica especial. E enquanto não se possa afirmar que se pode deduzir e explicar melhor o conjunto de paixões, figuras poéticas, meditações que nós designamos como a vida de Goethe, por meio da estrutura de seu cérebro e das qualidades de seu corpo, não se poderá negar a posição autônoma de tal ciência. Como o que nos é dado o é por meio dessa experiência interna, e o que tem valor para nós ou o que é um fim se nos apresenta como tal na vivência de nosso sentimento e de nossa vontade, resulta que nesta ciência se encontram os princípios de nosso conhecimento que determinam até que ponto a natureza pode existir para nós, os princípios de nossa ação que explicam a existência de fins, meios, valores nos quais se fundamenta todo trato prático com a natureza.
A fundação profunda da posição autônoma das ciências do espírito frente às ciências da natureza, posição que constitui o centro da construção das ciências do espírito que esta obra oferece, se dá nela passo a passo à medida que se verifica a análise da vivência total do mundo espiritual em seu caráter incomparável com toda a experiência sensível sobre a natureza. Não faço mais do que esclarecer um pouco o problema ao me referir ao duplo sentido no qual se pode afirmar a incompatibilidade de ambos os grupos de fatos: e, a esse respeito, o conceito dos limites do conhecimento natural adquire também um significado duplo.
Um dos mais destacados investigadores da natureza tentou fixar esses limites em um ensaio muito discutido, e recentemente explicou com maior detalhe os limites de sua ciência[4]. Imaginemos que reduzimos todas as mudanças do mundo corpóreo a movimentos de átomos, originados por suas forças centrais constantes, então conheceríamos científica e naturalmente o cosmos. Como afirma Laplace,
Um espírito que conhecesse todas as forças que, em um determinado momento, atuam na natureza e a situação recíproca dos seres que a compõem, e tivesse a capacidade suficiente para submeter esses dados à análise, compreenderia na mesma fórmula os movimentos dos corpos celestes maiores e dos átomos mais leves[5].
Como a inteligência humana encontra na ciência astronômica uma reprodução em pequena escala de tal espírito, esse conhecimento de um sistema material imaginado por Laplace é caracterizado por Du Bois-Reymond como sistema astronômico. Com essa ideia, podemos chegar a uma concepção bem clara dos limites nos quais se encontra aprisionada a tendência do espírito científico natural.
Permita-me introduzir uma distinção no que se refere ao conceito de limites do conhecimento natural nesta consideração. Como a realidade, como correlato da experiência, nos é dada na cooperação do sistema de nossos sentidos com a experiência interna, a diferente procedência de suas partes integrantes condiciona uma incomparabilidade dentro dos elementos de nosso cálculo científico. Exclui a dedução de fatos de determinada procedência daqueles de outra. Assim, apenas por meio da factualidade da sensação tátil, na qual experimentamos resistência, chegamos, a partir das propriedades do espaço, à representação da matéria; cada um dos sentidos está encerrado em um círculo de qualidades que lhe são próprias; e temos que partir da sensação para nos darmos conta dos estados internos a fim de termos uma situação de consciência em um momento determinado. Portanto, não nos resta senão aceitar os dados com a incomparabilidade com a qual nos são apresentados devido à sua procedência diferente; sua factualidade é para nós insondável; todo o nosso conhecimento está limitado ao estabelecimento de uniformidades na sucessão e na coexistência, de acordo com as quais se mantêm em relação segundo nossa experiência. Estas são limitações que residem nas condições de nossa própria experiência, e se apresentam em todos os pontos da ciência natural. Não se trata de limites externos com os quais tropeça o conhecimento natural, mas de condições imanentes da própria experiência. A existência desses limites imanentes do conhecimento não constitui obstáculo algum para a função do conhecer. Se entendemos por conceituação a transparência plena na apreensão de uma conexão, estamos diante dos limites da conceituação. E se o cálculo da ciência, pelo qual se reduzem as mudanças da realidade aos movimentos dos átomos, subordina qualidades ou fenômenos de consciência, o fato da inderivabilidade não constitui obstáculo algum para suas operações, se essas qualidades ou fenômenos lhe forem submetidos; é tão impossível para ele partir da pura determinação matemática ou da quantidade de movimento para um colorido ou um som, quanto para um fato de consciência; a luz azul resulta tão pouco explicada por seu correspondente número de vibrações quanto o juízo negativo por um fato no cérebro. A física abandona à filosofia a explicação da qualidade sensível “azul”; esta, que não dispõe no movimento das partículas materiais de meio algum para conjurar o azul, abandona o assunto à psicologia, e aí o assunto fica. Mas em si mesma, a hipótese segundo a qual as qualidades surgem no processo da sensação não é, em primeiro lugar, mais do que um recurso para o cálculo que faz radicar as mudanças da realidade, tal como me são dadas na experiência, em uma determinada classe de mudanças dentro do que constitui um conteúdo parcial de minha experiência, para colocá-las no mesmo plano a fim de conhecimento. Se fosse possível substituir com certos fatos definidos que ocupam na trama da consideração mecânica natural um lugar firme, fatos de consciência constantes e definidos, para depois poder determinar, de acordo com o sistema de uniformidades em que se encontram os primeiros, e em completo acordo com a experiência, a presença dos fenômenos de consciência, nesse caso, esses fatos de consciência estariam coordenados na conexão do conhecimento natural assim como qualquer som ou cor.
Mas, neste ponto precisamente, faz-se valer o caráter incomensurável dos fenômenos materiais e espirituais em um sentido muito diferente e fixam-se ao conhecimento natural limites de uma natureza bem distinta. A impossibilidade de derivar fatos espirituais da ordem mecânica da natureza, impossibilidade que se baseia na diversidade de sua procedência, não impede a acomodação dos primeiros no sistema dos últimos. Só quando as relações entre os fatos do mundo espiritual se mostram incomparáveis com as uniformidades do curso natural de uma forma tal que fique excluída a subordinação dos fatos espirituais àqueles estabelecidos pelo conhecimento mecânico natural, somente então teremos assinalado, não os limites imanentes do conhecimento empírico, mas os limites em que termina o conhecimento natural e começa uma ciência autônoma do espírito que se estrutura em torno de seu próprio centro. O problema fundamental reside, portanto, em estabelecer um determinado tipo de incomparabilidade entre as relações dos fatos espirituais e as uniformidades dos fenômenos materiais, que exclua a acomodação dos primeiros, sua consideração como propriedades ou aspectos da matéria e que, por conseguinte, deva ser algo muito diferente da diferença que existe entre os diversos grupos de leis da matéria, tal como os representam a matemática, a física, a química e a fisiologia, com uma relação de subordinação que se desenvolve cada vez com maior consequência. Uma exclusão dos fatos do espírito do plexo da matéria, suas propriedades e leis, sempre levantará uma objeção que se oporá às tentativas de subordinar as relações que se dão entre os fatos de um campo às relações dos fatos do outro. E esta é, de fato, a opinião que se impõe quando se demonstra a incomparabilidade da vida espiritual – que os fatos da autoconsciência e da unidade da consciência em relação a ela, da liberdade e os da vida moral que lhe estão vinculados – com a articulação e divisibilidade espacial da matéria, assim como com a necessidade mecânica que governa o comportamento de cada uma de suas partes. Tão antigos quanto a meditação rigorosa sobre a relação do espírito com a natureza são as tentativas de formulação deste tipo de incomensurabilidade do espiritual com todo o ordenamento natural, com base na unidade da espontaneidade da vontade.
Ao introduzir na exposição de Du Bois-Reymond essa diferença entre os limites imanentes da experiência e os limites da subordinação dos fatos à conexão do conhecimento natural, os conceitos de limitação e inexplicabilidade recebem um sentido exatamente definível e se dissipam as dificuldades que têm se manifestado na polêmica provocada pela sua obra sobre os limites do conhecimento natural. A existência de limites imanentes da experiência de modo algum resolve a questão sobre a subordinação dos fatos espirituais à conexão do conhecimento da matéria. Caso se tente, como Häckel e outros investigadores tentaram, estabelecer essa subordinação dos fatos espirituais dentro da conexão natural, por meio da hipótese de uma vida psíquica nos elementos que compõem o organismo, não haverá entre essas tentativas e o conhecimento dos limites imanentes de toda experiência qualquer relação de exclusão; sobre isso decide, unicamente, o segundo tipo de investigação dos limites do conhecimento natural. Por essa razão, Du Bois-Reymond passou a essa segunda indagação, e se utilizou em sua demonstração tanto do argumento da unidade da consciência quanto do da espontaneidade da vontade. Sua demonstração de que os fenômenos espirituais não podem ser compreendidos por suas condições materiais[6] se desenvolve da seguinte maneira: Apesar do conhecimento completo de todas as partes do sistema material, de sua posição respectiva e de seu movimento, resulta absolutamente incompreensível como não seria indiferente para uma coleção de átomos de carbono, hidrogênio, nitrogênio e oxigênio sua posição e seus movimentos. Esta inexplicabilidade do espiritual subsiste, mesmo se equiparmos esses elementos, ao estilo das mônadas, com uma consciência, e também, partindo dessa hipótese, não se pode explicar a consciência unitária do indivíduo[7]. Já a proposição que pretende demonstrar encerra na expressão “não se pode compreender” um duplo sentido, o que resulta na consequência de que, na demonstração, apareçam dois argumentos de alcance muito diverso. Afirma, por um lado, que a tentativa de derivar fatos espirituais com base nas mudanças materiais (que atualmente é desprezada como materialismo bruto e só é apresentada com o suposto de propriedades psíquicas nos elementos) não anula os limites imanentes de toda experiência: o que é verdade, mas não decide nada contra a subordinação do espírito ao conhecimento natural. Afirma também que essa tentativa tem que fracassar diante da contradição que se apresenta entre nossa noção de matéria e a propriedade de unidade que caracteriza nossa consciência. Em sua polêmica posterior com Häckel, acrescenta a esse argumento outro, segundo o qual, com tal suposição, se apresenta outra contradição entre a forma como um elemento material está condicionado mecanicamente dentro da teia natural e a vivência da espontaneidade da vontade; uma “vontade” que (nos elementos materiais) “deve querer, queira ou não queira, e, precisamente, em proporção direta do produto das massas e indireta do quadrado das distâncias”, é uma contradição in adjeto[8].
III. A relação entre este conjunto com as Ciências da Natureza
No entanto, as ciências do espírito abrangem amplamente fatos naturais e têm como base o conhecimento natural.
Se imaginarmos seres puramente espirituais em um reino pessoal constituído unicamente por eles, então sua aparição, sua conservação e desenvolvimento, bem como seu desaparecimento (qualquer que fosse a ideia que tivéssemos sobre o fundo de onde emergiam e para onde retornavam), estariam vinculados a condições de natureza espiritual; seu bem-estar se fundamentaria em sua relação com o mundo espiritual; suas interações mútuas, suas ações se realizariam por meios puramente espirituais, e as repercussões duradouras de seus atos também seriam de ordem puramente espiritual, de modo que até mesmo seu desaparecimento do reino das pessoas teria, no espiritual, seu fundamento. O sistema desses indivíduos seria conhecido por ciências puramente do espírito.
Mas, na realidade, um indivíduo nasce, se conserva e se desenvolve com base nas funções do organismo animal e em suas relações com o curso natural que o rodeia; seu sentimento vital, pelo menos em parte, baseia-se nessas funções; suas impressões são condicionadas pelos órgãos dos sentidos e suas afecções pelo mundo exterior; a riqueza e a mobilidade de suas ideias, assim como a força e a direção de seus atos volitivos, mostram-se múltiplas vezes dependentes das variações em seu sistema nervoso. Seu impulso voluntário contrai as fibras musculares, de modo que sua ação externa se encontra ligada a mudanças nas relações de posição das partículas materiais do organismo; os resultados duradouros de seus atos voluntários ocorrem apenas na forma de transformações do mundo material. Assim, resulta que a vida espiritual de um homem não é senão uma parte da unidade psicofísica da vida, uma parte que abstraímos; é nessa unidade psicofísica que a existência e a vida de um homem nos são apresentadas. O sistema dessas unidades de vida constitui a realidade que é objeto das ciências histórico-sociais.
E, de fato, o homem, como unidade de vida, se apresenta para nós, em virtude da dupla perspectiva de nossa consideração (seja qual for a realidade metafísica), como uma trama de fatos espirituais, na medida em que alcança nossa percepção interna, e como um todo corporal, na medida em que alcança nossa captação sensível. A percepção interna e a captação externa nunca ocorrem no mesmo ato e, por essa razão, jamais o fato da vida espiritual nos é dado simultaneamente ao de nosso corpo. Disso resultam necessariamente dois pontos de vista distintos, que não podem ser mutuamente anulados na consideração científica que pretende abarcar os fatos espirituais e o mundo corporal em sua conexão, da qual a unidade psicofísica da vida é expressão. Se parto da experiência interna, descubro que todo o mundo exterior se me dá na consciência, que as leis desse mundo natural estão sob as condições da minha consciência e, portanto, dependem dela. Esse é o ponto de vista que caracteriza a filosofia alemã entre os séculos XVIII e XIX como uma filosofia transcendental. Se, ao contrário, tomo a conexão natural tal como se me apresenta na realidade, na minha captação natural, e percebo que, tanto na sucessão temporal desse mundo exterior quanto em sua distribuição espacial, estão inseridos os fatos psíquicos, constato que da intervenção realizada pela própria natureza ou pelo experimento – que consiste em mudanças materiais – dependem mudanças espirituais, que ocorrem quando as primeiras penetram no sistema nervoso; e a observação do desenvolvimento da vida e dos estados patológicos amplia essas experiências até compor o vasto quadro da condicionalidade do espiritual pelo corporal. Assim se estabelece a concepção do investigador da natureza, que avança de fora para dentro, penetrando dos fenômenos materiais aos fenômenos espirituais. Assim, o antagonismo entre o filósofo e o investigador da natureza encontra-se condicionado pela oposição de seus pontos de partida.
Voltemos ao nosso ponto de partida no modo de consideração próprio da ciência natural. Na medida em que esse modo de consideração permanece consciente de seus limites, seus resultados são incontestáveis. Apenas sob o ponto de vista da experiência interna eles recebem uma determinação mais precisa de seu valor cognoscitivo. A ciência natural analisa a conexão causal do curso natural. Quando essa análise atinge o ponto em que um fato material ou uma transformação material se encontra regularmente vinculado a um fato psíquico ou a uma mudança psíquica, sem que seja possível encontrar entre eles um elo intermediário, pode-se constatar essa relação regular, mas não se pode aplicar a ela a relação de causa e efeito. Observamos que regularidades de um círculo de vida estão regularmente associadas às regularidades de outro círculo, e o conceito matemático de função expressa tais relações. A concepção segundo a qual o desenvolvimento das mudanças espirituais, juntamente com as corporais, poderia ser comparado ao funcionamento de dois relógios isócronos concilia-se tão bem com a experiência quanto uma concepção que supusesse como explicação apenas um único relógio e considerasse ambos os campos da experiência como manifestações diferentes de um mesmo fundo. A dependência do espiritual em relação à conexão natural consiste, portanto, naquela relação que, em conformidade com o nexo natural geral, condiciona causalmente os fatos e mudanças materiais que, para nós, estão regularmente associados a fatos e mudanças espirituais, sem que conheçamos qualquer elo intermediário. Assim, o conhecimento natural percebe a atuação da cadeia de causas até as unidades psicofísicas: nelas surge uma mudança em que a relação entre o material e o psíquico escapa à consideração causal, e essa mudança provoca, em contrapartida, outra mudança no mundo material. É nessa conexão que o experimento dos fisiologistas revela a significação da estrutura do sistema nervoso. Os confusos fenômenos da vida se articulam em uma representação clara das dependências, na qual o curso natural conduz mudanças até o homem, estas penetram no sistema nervoso pelas portas dos sentidos, surgem a sensação, a representação, o sentimento, o desejo, que, por sua vez, reagem sobre o curso natural. A unidade de vida, que nos preenche com o sentimento direto de nossa existência indivisa, se resolve em um sistema de relações empiricamente constatáveis entre os fatos de nossa consciência e a estrutura e funções do sistema nervoso: pois toda ação psíquica apenas se nos manifesta vinculada a uma mudança dentro de nosso corpo através do sistema nervoso, e uma mudança semelhante, por sua vez, apenas por intermédio de sua ação sobre o sistema nervoso é acompanhada por uma alteração de nossos estados psíquicos.
Desse exame das unidades psicofísicas de vida surge agora uma ideia mais clara de sua dependência de toda a conexão natural dentro da qual aparecem, atuam e desaparecem, assim como da dependência que o estudo da realidade histórico-social mantém em relação ao conhecimento natural. Com isso, podemos avaliar o grau de justificação que pode ser atribuído às teorias de Comte e Herbert Spencer sobre o lugar dessas ciências na hierarquia do conhecimento científico estabelecida por eles. Como esta obra pretende fundamentar a autonomia relativa das ciências do espírito, será necessário desenvolver, como outro aspecto de sua posição no conjunto do saber, o sistema de dependências pelo qual elas se encontram condicionadas pelo conhecimento natural e constituem, assim, o último e supremo membro da estrutura que se inicia nos fundamentos matemáticos. Os fatos do espírito constituem o limite supremo dos fatos da natureza, e os fatos da natureza representam as condições mais básicas da vida espiritual. Pelo fato de que o reino das pessoas – ou seja, a sociedade humana e a história – é a mais elevada manifestação entre as manifestações do mundo empírico, seu estudo necessita, em inúmeros aspectos, do conhecimento do sistema de pressupostos que o conjunto da natureza implica para seu desenvolvimento.
O homem, de acordo com sua posição na conexão causal da natureza que acabamos de descrever, encontra-se condicionado por ela sob um duplo aspecto.
A unidade psicofísica, como vimos, recebe influências do curso geral da natureza por meio do sistema nervoso e, por sua vez, reage sobre ele. Mas acontece que as ações que partem dessa unidade nos aparecem, sobretudo, como orientadas por fins. Para essa unidade psicofísica, portanto, o curso natural e sua constituição podem oferecer, no que diz respeito à formação dos fins, um caráter orientador; mas, por outro lado, ao representar um sistema de meios para a realização de seus fins, acaba também por ser condicionante. Assim, quando queremos algo, quando agimos sobre a natureza, pelo fato de não sermos forças cegas, mas vontades que determinam seus fins reflexivamente, dependemos da conexão natural. Dessa forma, as unidades psicofísicas estão em dupla dependência em relação ao curso natural. Por um lado, este condiciona a realidade histórico-social – partindo da posição da Terra no cosmos – como um sistema de causas, e o grande problema das relações entre a conexão natural e a liberdade dentro dessa realidade se desdobra, para o investigador empírico, em inúmeras questões particulares que dizem respeito à relação entre os fatos do espírito e as influências da natureza. Por outro lado, dos fins desse reino das pessoas nascem ações sobre a natureza, sobre a Terra, que o homem considera, nesse sentido, como sua morada, na qual se ocupa em adaptar-se; e também essas ações estão vinculadas à utilização da trama das leis naturais. Todos os fins situam-se para o homem exclusivamente dentro do processo espiritual, pois é apenas nele que algo lhe é presente; porém, o fim busca seus meios na conexão da natureza. Muitas vezes, a transformação que o poder criador do espírito provoca no mundo exterior é quase imperceptível e, no entanto, é nela que se fundamenta a “mediação” pela qual o valor assim criado se torna presente também para outros. Os poucos fólios – resquício material do profundo trabalho mental dos antigos em torno da hipótese do movimento da Terra – que chegaram às mãos de Copérnico constituíram o ponto de partida de uma revolução em nossa visão do mundo.
Nesse ponto, podemos perceber quão relativa é a demarcação entre essas duas classes de ciências. São estéreis as polêmicas como aquelas que ocorreram em torno da posição da ciência filológica. Nos dois pontos de transição que conduzem do estudo da natureza ao estudo do espírito – tanto nos momentos em que a conexão natural influencia o desenvolvimento do espiritual quanto naqueles em que a conexão natural recebe a ação do espírito ou serve de passagem para a ação sobre outro espírito – os conhecimentos dessas duas ordens de ciências se misturam. Os conhecimentos das ciências da natureza se entrelaçam com os das ciências do espírito. E, de fato, nessa confluência se entretece, conforme a dupla relação pela qual o curso natural condiciona a vida espiritual, o conhecimento da ação formadora sobre a natureza com a constatação da influência que esta exerce como material da ação humana. Assim, do conhecimento das leis naturais do som se deduz uma parte importante da gramática e da teoria musical e, por sua vez, o gênio da linguagem ou o músico está vinculado a essas leis naturais, razão pela qual o estudo de seus produtos está condicionado à compreensão dessa dependência.
Neste ponto, podemos perceber também que o conhecimento das condições pressupostas pela natureza e estudadas pela ciência natural constitui, em grande medida, a base para o estudo dos fatos espirituais. Assim como o desenvolvimento do indivíduo, a dispersão da espécie humana sobre a Terra e a configuração de seus destinos na história estão condicionados por toda a estrutura cósmica. As guerras, por exemplo, representam um elemento central em todas as narrativas históricas, pois estas, em sua dimensão política, dizem respeito à vontade dos Estados, e essa vontade se manifesta nas armas e se impõe por meio delas. Ora, a teoria da guerra depende, antes de tudo, do conhecimento do mundo físico, que fornece às vontades em conflito seu substrato e seus meios. Pois a guerra, com os instrumentos da violência física, busca a finalidade de subjugar o inimigo à nossa vontade. Isso implica que o inimigo seja conduzido ao ponto da total indefesa – o que constitui a meta teórica do ato de violência caracterizado como guerra –, de modo que sua situação se torne mais desvantajosa do que o sacrifício que lhe é exigido e só possa ser alterada por outra ainda mais prejudicial. Nesse grande cálculo, as condições e os meios físicos são os elementos mais relevantes para a ciência, aqueles que mais a ocupam, enquanto há pouco a dizer sobre os fatores psíquicos.
As ciências que se dedicam ao estudo do homem, da sociedade e da história têm como base as ciências da natureza, tanto porque as unidades psicofísicas só podem ser estudadas com o auxílio da biologia quanto porque o meio no qual se desenvolvem e no qual se dá sua atividade teleológica – orientada em grande parte para o domínio da natureza – é constituído por esta última. No primeiro aspecto, recorremos às ciências do organismo; no segundo, às ciências da natureza inorgânica. E essa conexão se expressa, por um lado, no fato de que as condições naturais determinam o desenvolvimento e a distribuição da vida espiritual sobre a superfície da Terra e, por outro, no fato de que a atividade teleológica dos homens está vinculada às leis da natureza e condicionada pelo seu conhecimento e aplicação. Por essa razão, a primeira relação revela apenas a dependência do homem em relação à natureza, enquanto a segunda contém essa dependência apenas como o outro aspecto da história de seu crescente domínio sobre a Terra. Essa parte da primeira relação, que abrange as interações do homem com a natureza circundante, foi submetida por Ritter ao método comparado. Seu olhar perspicaz – exemplo notável disso é sua avaliação comparativa dos continentes segundo a articulação de seus contornos – nos levaria a suspeitar que existe uma predestinação histórico-universal inscrita nas condições espaciais da superfície terrestre. Porém, os trabalhos posteriores não confirmaram essa visão de Ritter, concebida por ele como uma teleologia da história universal e utilizada por Buckle a serviço do naturalismo. Em vez da ideia de uma dependência uniforme do homem em relação às condições naturais, temos agora uma concepção mais cautelosa: a luta entre as forças ético-espirituais e as condições do espaço inerte fez com que, entre os povos históricos – em contraste com os povos sem história –, o grau de dependência diminuísse constantemente. E, nesse campo, consolidou-se também uma ciência autônoma da realidade histórico-social, que recorre às condições naturais para suas explicações. Mas a outra relação revela que, juntamente com a dependência que implica a adaptação às condições naturais, há o domínio do espaço pelas ideias científicas e pela técnica, de tal modo que, ao longo da história, a humanidade alcança a soberania precisamente por meio da submissão. Natura enim non nisi parendo vincitur[9].
O problema das relações entre a ciência do espírito e o conhecimento natural só poderá ser considerado resolvido quando for superada a oposição entre o ponto de vista transcendental – segundo o qual a natureza está submetida às condições da consciência – e o ponto de vista empírico-objetivo – segundo o qual o desenvolvimento do espírito está condicionado pela natureza como um todo –, oposição essa que tomamos como ponto de partida. Essa tarefa constitui apenas um aspecto do problema do conhecimento. Se isolarmos esse problema no que se refere às ciências do espírito, não parece impossível encontrar uma solução que convença a todos. Suas condições deveriam ser as seguintes: demonstração da realidade objetiva da experiência interna; verificação da existência de um mundo exterior; nesse mundo exterior, a presença de fatos espirituais e seres espirituais ocorre por meio de um processo de transferência de nossa interioridade. Assim como o olho ofuscado, que antes contemplou o sol, reproduz sua imagem nas mais diversas cores e nos mais variados pontos do espaço, do mesmo modo nosso poder de apreensão multiplica a imagem de nossa vida interior e a projeta em múltiplas variações nos diversos lugares da natureza ao redor. Esse processo pode ser exposto e justificado logicamente como uma conclusão por analogia: partindo dessa vida interior, que nos é dada de forma original e direta apenas a nós mesmos, chegamos, por meio da percepção de suas manifestações exteriores, à conclusão de algo semelhante que corresponderia a manifestações análogas do mundo exterior. Seja qual for a natureza em si mesma, o estudo das causas do espiritual pode dar-se por satisfeito com o fato de que, em cada caso, suas manifestações podem ser consideradas e empregadas como sinais do real, e as regularidades de sua coexistência e sucessão, como indícios de tais regularidades no real. Mas se adentramos no mundo do espírito e investigamos a natureza enquanto conteúdo do espírito, enquanto entrelaçada com a vontade, seja como fim, seja como meio, então a natureza, para o espírito, é aquilo que é dentro dele, e o que ela possa ser em si mesma lhe é totalmente indiferente. Basta que, tal como se apresenta ao espírito, este possa contar com sua legalidade em suas ações e desfrutar da bela aparência de sua existência.
* Tradutor original da obra em alemão. Texto adaptado às condições da presente edição (N.E.).
* Obras publicadas durante o ano de 2024 ao primeiro semestre de 2025 (N.E.).
[1] Com muita genialidade, Pascal expressa esse sentimento vital: Pensées, Art. 1. Toutes ces misères prouvent sa grandeur. Ce sont misères de grand seigneur, misères d’un roi dépossédé. (3) Nous avons une si grande idée de l’âme de l’homme, que nus ne pouvons souffrir d’en être méprisés, et de n’être pas dans l’estime d’une âme. (5) (Oeuvres, Paris, 1866, 1, 248, 249).
[2] Summa c. gent. (cura Uccellii, Romae, 1879), I, c. 22, V. II, c. 54.
[3] Liv. II, c. 46 e ss.
[4] Emil DU BOIS-REYMOND, Ueber die Grenzen des Naturerkennens, 1872. V.: Die sieben Welträtsel, 1881.
[5] LAPLACE, Essai sur les probabilités, París, 1814, p. 3.
[6] “Sobre os limites”, 4ª ed., p. 28.
[7] Op. cit., 29, 30, v. Rätsel, 7 (Enigmas do Universo). Essa argumentação é, além disso, conclusiva quando se atribui, por assim dizer, validade metafísica à mecânica atomística. Com sua história, que é mencionada por Du Bois-Reymond, pode-se também comparar a formulação feita pelo clássico da psicologia racional, Mendelssohn. Por exemplo, Schriften (Leipzig, 1880), I, 277: 1. “Tudo o que é diferente no corpo humano do bloco de mármore pode ser reduzido ao movimento. Agora, o movimento nada mais é do que uma mudança de lugar ou situação. É óbvio que com todas as possíveis mudanças de lugar no mundo, por mais complicadas que sejam, não se obtém nenhuma percepção dessas mudanças de lugar”. 2. “Toda matéria é composta de várias partes. Se as representações singulares fossem isoladas nas partes da alma, como os objetos da natureza, então o todo não seria encontrado em lugar algum. Não poderíamos comparar as impressões dos vários sentidos, não poderíamos comparar as representações, não poderíamos perceber ou conhecer qualquer relação. Fica claro, então, que não apenas para o pensamento, mas também para a sensibilidade, muitas coisas devem se unir em uma só. Mas como a matéria nunca é um único assunto, etc.”, Kant desenvolve esse “tendão de Aquiles de todas as conclusões dialéticas da teoria pura da alma” como o segundo paralelismo da psicologia transcendental. Com Lotze, esses “fatos do conhecimento relacional”, para “um motivo invencível sobre o qual a convicção da autonomia de um ser da alma pode repousar”, foram desenvolvidos em várias obras (mais recentemente, Metafísica, 476) e formam a base dessa parte de seu sistema metafísico.
[8] Welträtsel, p. 8.
[9] BACONIS, Aphorismi de interpretatione naturae et regno hominis, Aph. 3.