Confucionismo e Puritanismo: parte do último capítulo de “Religião da China” de Max Weber

Abaixo você lê uma parte da conclusão do livro “Religião da China”, de Max Weber, em que o sociólogo alemão estabelece uma comparação entre o Confucionismo e o Puritanismo


Confucionismo e Puritanismo

Possivelmente, a maneira mais conveniente de construirmos uma perspectiva sobre que foi dito é esclarecer relação entre o racionalismo Confucionista – pois o nome é apropriado – e o que está geográfica e historicamente mais próximo de nós: o racionalismo do Protestantismo.

Para julgar o nível de racionalização que uma religião representa, há sobretudo duas formas de se avaliar as múltiplas relações internas que mantêm. A primeira é o grau em que a religião se despojou da magia. O seguinte é o grau em que unificou sistematicamente a relação entre Deus e o mundo e, com isso, sua própria relação ética com o mundo.

No primeiro caso, o Protestantismo ascético em suas diversas formas representa uma fase final. Suas manifestações mais características destruíram por completo a magia. Foi inclusive, em princípio, exterminada na forma sublimada dos sacramentos e dos símbolos, tanto que os rígidos puritanos tinham os cadáveres de seus entes queridos escavados sem qualquer formalidade, a fim de assegurar a completa eliminação da “superstição”. E isso significava, neste contexto, erradicar toda confiança em manipulações de caráter mágico. Em nenhum lugar o completo desencantamento do mundo se deu em todas as suas consequências.

Isto não significava se libertar do que hoje estamos acostumados a denominar de “superstição”. Os julgamentos das bruxas também floresceram na Nova Inglaterra. Mas enquanto o Confucionismo deixava a magia intacta em seu significado positivo de redenção, com o Puritanismo o mágico se tornou diabólico, e apenas o racionalmente ético era considerado religiosamente valioso: ou seja, atuar de acordo com o mandamento de Deus, a apenas a partir de uma mente temerosa a Deus.

Deve ter ficado bastante claro a partir de nossa apresentação que o jardim mágico da doutrina heterodoxa (Taoísmo) estava sob o poder de cronomantes, geomantes, hidromantes, meteoromantes, em uma concepção abstrusa e universista da unidade do mundo. Qualquer conhecimento científico estava ausente, em parte como uma causa e em parte como consequência dessas forças elementares. Tornava-se, assim, simplesmente fora de questão qualquer economia racional e tecnologia de caráter ocidental moderno. A preservação deste jardim mágico, entretanto, foi uma das tendências íntimas da ética Confucionista.

A elas, uniram-se razões internas que impediram qualquer avanço do poder Confucionista. A ética puritana, no mais forte contraste com a posição imparcial do Confucionismo sobre as coisas deste mundo, situou-as no contexto de uma imensa e grandiosa tensão em relação ao “mundo”. Toda religião que confronta o mundo com imperativos racionais (éticos) – como veremos em detalhes – encontra-se em algum momento em uma relação tensa com a irracionalidade do mundo. Estas tensões com as religiões individuais se estabelecem em pontos muito diferentes e, portanto, tanto a natureza como o grau da tensão são diferentes. Nas religiões individuais isto depende, em grande medida, da natureza do caminho de salvação dado pelas promessas metafísicas. Sobretudo, o grau de desvalorização religiosa do mundo não é idêntico ao grau de sua rejeição prática.

No Confucionismo, a ética (intencionalmente) racional reduziu ao mínimo absoluto a tensão contra o mundo, tanto em sua desvalorização religiosa como em sua rejeição prática. O mundo era o melhor dos mundos possíveis; a natureza humana era predisposta eticamente ao bem; e as pessoas, nisto como em tudo o mais, ainda que fossem diferentes em grau, possuíam a mesma natureza e eram capazes de ilimitada perfeição, portanto adequadas em princípio ao cumprimento da lei moral. A educação filosófico-literária baseada nos antigos clássicos era o meio universal de auto-aperfeiçoamento; enquanto a educação insuficiente, aliada à sua principal razão, a insuficiente segurança econômica, era a única fonte de todos os defeitos. Tais defeitos, entretanto, especialmente os do governo, foram a razão essencial para todas os infortúnios geradores de inquietação dos espíritos (magicamente concebidos). O caminho correto para a salvação estava na adaptação às ordens supra-divinas eternas do mundo: o Tao; e, portanto, às exigências sociais da convivência resultantes da harmonia cósmica. Sobretudo, assim, a obediência piedosa à ordem fixa dos poderes seculares. Para o indivíduo, a formação de seu próprio eu enquanto uma personalidade universal e harmoniosamente equilibrada – neste sentido, um microcosmo – era o ideal correspondente. A “graça e dignidade” do homem ideal Confucionista – o cavalheiro –expressava-se no cumprimento de seus deveres tradicionais. A piedade cerimoniosa e ritual em todas as situações da vida era, enquanto virtude fundamental, o objetivo da superação pessoal; enquanto o despertar do autocontrole racional e a supressão de toda perturbação do equilíbrio por conta de paixões irracionais de qualquer tipo, os meios apropriados para obtê-lo. Mas o Confucionista não desejava outra “salvação”, senão livrar-se da educação bárbara. O que ele esperava neste mundo, como recompensa da virtude, era uma vida longa, saúde e riqueza e, após a morte, a preservação de seu bom nome. Como para o homem verdadeiramente helênico, não existia qualquer ancoragem transcendental da ética, qualquer tensão entre os mandamentos de um Deus transcendental e um mundo de criaturas, qualquer orientação para um objetivo no além, nem qualquer concepção de mal radical. Aquele que cumpria os mandamentos, moldados ao homem de capacidade mediana, estava livre de pecado. Em vão, os missionários cristãos procuraram despertar um sentido de pecado onde tais condições eram tidas por evidentes. Um chinês educado se negaria decididamente a ser afligido permanentemente por “pecados”; afinal, sem dúvida, para toda classe nobre de intelectuais, este conceito era tido como vergonhoso e desprovido de dignidade. Usualmente era representado por variações convencionais, ou feudais, ou esteticamente formuladas (por exemplo: “indecente” ou “de mau gosto”). Certamente havia pecados: mas, no campo ético, tratava-se de ofensas às autoridades tradicionais: pais, antepassados, superiores na hierarquia de cargos; ou seja, ofensas contra as forças tradicionalistas. As demais eram violações precárias de costumes tradicionais e, finalmente, das convenções sociais estabelecidas. Todas ofensas iguais entre si: “eu pequei” corresponderia ao nosso “desculpe-me”, quando se viola alguma convenção. Ascetismo e contemplação, a mortificação e fuga do mundo não só eram desconhecidos no Confucionismo, mas também desprezados como parasitismo. Toda forma de religiosidade paroquial e redentora ou foi diretamente perseguida e exterminada, ou considerada assunto privado e pouco estimado, assim como os sacerdotes órficos pelos nobres Helênicos da época clássica. O pré-requisito interno desta ética da afirmação e adaptação incondicional ao mundo era a continuidade ininterrupta da religiosidade puramente mágica, começando pela posição do Imperador, cujas qualificações pessoais eram responsáveis pelo bom comportamento dos espíritos, ocorrência da chuva e o bom tempo da colheita, ao culto dos espíritos ancestrais, absolutamente fundamental para a religiosidade oficial e popular, à terapia mágica não oficial (Taoísta) e a outras formas sobreviventes de compulsão animista de espíritos, da crença antropolátrica e herolátrica em deuses funcionais. O Confucionista educado manteria a mesma mescla de ceticismo e submissão ocasional à deisidaimonia do heleno culto; enquanto a massa de chineses influenciados pelo Confucionismo, manteria sua inquebrantável fé dentro das concepções mágicas. “Tolo para quem lá dirige seus olhos piscantes…”, diria o Confucionista como o velho Fausto em relação ao além; mas como este, deveria também fazer a restrição: “Poderia tirar a magia de meu caminho…”. Inclusive os altos funcionários mais educados no antigo sentido chinês dificilmente teriam escrúpulos em mostrar qualquer sentido de piedade diante do mais estúpido milagre.

Jamais surgiu uma tensão com o “mundo” porque, até onde alcançam os registros, esteve ausente uma profecia ética de um Deus transcendente que fazia exigências éticas. Nem o substituía o fato de que os “espíritos” o exigiam – sobretudo, o fiel cumprimento de contratos. Por isso sempre se tratou de um dever específico – juramentado ou não – colocado sob a tutela dos espíritos, e jamais envolveu a formação interna da personalidade enquanto tal ou seu particular modo de vida. A classe intelectual dirigente, funcionários públicos e candidatos a cargos públicos, apoiaram sistematicamente a preservação da tradição mágica e especialmente a reverência animista aos antepassados, como condição necessária à preservação, sem obstáculos, das autoridades burocráticas; além disso, suprimiram todas as revoltas surgidas da religiosidade da redenção. A única religião de salvação permitida – além da adivinhação Taoísta e da graça sacramental – por ser pacifista e, portanto, inofensiva, era a dos monges budistas. Na China, seu efeito prático foi o de enriquecer a experiência espiritual – como veremos – por certas nuances de humor. Mas, de resto, tratava-se mais de uma fonte adicional de graça mágico-sacramental e de cerimônias de fortalecimento da tradição.

Isto implica que a importância desta ética intelectual para as amplas massas tinha seus limites. Inicialmente, as diferenças locais e, especialmente, as sociais na educação eram enormes. O tradicionalismo e, até os tempos modernos, o padrão de consumo de caráter fortemente subsistente entre os estratos mais pobres do povo, era mantido por um virtuosismo econômico (no sentido do consumo) jamais superado, impedindo qualquer relação próxima aos ideais cavalheirescos do Confucionismo.

Apenas os gestos e as formas de conduta externa do estrato dominante poderiam ser objeto de uma difusão geral, como usualmente ocorre. A influência decisiva do estrato educado no modo de vida das massas produziu sobretudo certos efeitos negativos: por um lado, inibindo totalmente o surgimento de qualquer religiosidade profética; pro outro, o extermínio de todos os elementos orgiásticos da religiosidade animista. Deve-se considerar ser possível que ao menos parte desses traços, que alguns autores ocasionalmente se referem como qualidades raciais dos chineses, também esteja condicionada por esses fatores. Atualmente não seria possível afirmar nada, nem mesmo com auxílio de especialistas, a respeito da influência da “composição genética” biológica. Mas para nós é importante uma observação muito simples e confirmada por eminentes sinologistas. Quanto mais se retrocede na história, mais parecidos se parecem os chineses e sua cultura (nos aspectos que nos são mais importantes) ao que também se encontra entre nós. Tanto a antiga fé popular, os antigos anacoretas, as mais antigas canções do Shih Ching, os antigos reis da guerra, os conflitos entre escolas filosóficas, o feudalismo, assim como os rascunhos de um desenvolvimento capitalista na época dos Estados Combatentes nos parecem muito mais próximos aos fenômenos ocidentais que as características da China Confucionista. Portanto, deve-se considerar a possibilidade de que muitos dos aspectos que frequentemente se consideram inatos, sejam produto de influências culturais puramente históricas.

Para este tipo de características, o sociólogo depende essencialmente da literatura missionária, que certamente apresenta experiências diversas, mas em última instância é a mais segura. Algumas insistentes observações sempre se destacam: a notável ausência de “nervos” no sentido específico da palavra dada pelos europeus na atualidade, a paciência ilimitada e a cortesia moderada, a tenacidade de apego ao costume, a absoluta insensibilidade à monotonia e a capacidade ininterrupta de trabalho, a lentidão da reação a estímulos incomuns, sobretudo na esfera intelectual: tudo parece representar, compreensivelmente, uma unidade lógica e coerente em si mesma. Existem, por outro lado, contrastes importantes. O extraordinário acanhamento, que vai além do usual, e se expressa como uma insuperável desconfiança ao desconhecido e cujas intenções não sejam aparentes, a rejeição ou falta de necessidade de conhecer tudo o que não for diretamente tangível, óbvio e útil, contrastam com a ilimitada ingenuidade diante de qualquer manifestação mágica. Do mesmo modo, o que parece ser a ausência de compaixão ao próximo, que frequentemente é muito forte, constitui uma aparente contradição com a grande tenacidade da coesão das organizações sociais. A (supostamente típica) falta de carinho e absoluta submissão à autoridade por parte dos filhos menores aos pais. Do mesmo modo, uma notável ausência de franqueza (por exemplo, em relação ao próprio advogado) parece ser difícil de conciliar – em termos relativos e em comparação com países de passado feudal como o Japão – com a aparentemente fiabilidade dos comerciantes em grandes transações comerciais (para o comércio em pequenas quantidades, os “preços fixos” costumam ser fictícios inclusive para os próprios locais). A típica desconfiança dos chineses entre si é confirmada por todos os observadores e contrasta violentamente com a confiança na honradez dos irmãos de fé nas seitas Puritanas, compartilhada desde fora da comunidade. Entretanto, em última instância, a unidade e a impassibilidade do hábito psicofísico contrasta com a instabilidade, frequentemente denunciada, de todos os aspectos do modo de vida chinês que não estão regulados – como é o caso da maioria deles – externamente por normas fixas. Em síntese: a ausência de uma unidade regulada do modo de vida “desde dentro”, por meio de critérios centrais, constitui o contraste fundamental em relação à ausência de espontaneidade da sociedade chinesa, estabelecida por inumeráveis convenções. Como tudo isso pode ser explicado?

A ausência de ascese produtora de histeria e de formas de religiosidade semelhantes, além da eliminação – não completa, mas entretanto ampla – de cultos extáticos, não deixam de influenciar a constituição nervosa e psíquica de um grupo humano. Quanto ao uso de tóxicos, os chineses pertenciam aos povos (relativamente) “sóbrios”, desde o momento da pacificação (em comparação com a importância da embriaguez na casa dos homens e nas cortes principescas). A embriaguez e a “obsessão” orgiástica se despojaram de seu valor carismático da santidade e passaram a ser consideradas apenas sintomas de possessão demoníaca. O Confucionismo rejeitava o uso de bebidas alcoólicas exceto – e enquanto vestígio – em sacrifícios. O fato de que a embriaguez não fosse incomum entre as classes baixas, inclusive na China, não muda a importância relativa da diferença. Entretanto, o tóxico considerado especificamente chinês, o ópio, foi importado apenas em tempos modernos, e sua aceitação se impôs apesar de uma feroz resistência das classes dirigentes. Além disso, seus efeitos estão na direção do êxtase apático, quer dizer, na prolongação da linha de “Wu wei”, e não na direção da embriaguez heroica ou do desencadeamento de ativas paixões. A Sophrosyne helênica não impedia que Platão visse a grandeza de Fedro como nascida de uma bela loucura. Nela, o racionalismo tanto da nobreza romana – que traduzia “ekstasis” por “superstitio” – como do estrato culto chinês, pensavam a embriaguez de maneira completamente diferente. A “inimperturbabilidade”, assim como o que se percebe como indolência, está possivelmente em certa medida relacionada com esta total ausência de elementos dionisíacos na religiosidade da China – uma consequência da consciente eliminação do culto por parte da burocracia. Não havia, e não poderia haver, nada nela que pudesse perturbar o equilíbrio a alma. Toda paixão dominante, especialmente a ira, Tschei, provocava feitiços malignos; diante de qualquer dor e para cada sofrimento primeiro se devia perguntar a qual Tschei se devia atribuir.

A preservação da magia animista como única forma de religiosidade popular, desprezada pelos estratos cultos, mas suportada pelo caráter dos cultos oficiais, era o resultado do medo tradicionalista a qualquer inovação que pudesse lançar maldições e perturbar os espíritos. Ela explica a grande credulidade. Consequência da preservação na fé mágica estava a ideia de que a enfermidade e a desgraça eram sintomas da ira divina que o indivíduo trazia a si mesmo, favorecia certa supressão desses sentimentos que tendem a surgir do sentimento comunitário das religiões de redenção em relação ao sofrimento e, portanto, sempre dominaram fortemente a ética popular na Índia. O resultado foi o particular esfriamento da filantropia na China, inclusive das relações dos grupos de parentesco, combinado à correção cerimonial e ao medo egoísta de espíritos.


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