Leia o Capítulo 1 de “Os reis Taumaturgos”

O Livro “Os Reis Taumaturgos”, do historiador francês Marc Bloch, só estará disponível a partir de Abril de 2018. Abaixo, o primeiro capítulo.


Livro Primeiro: As Origens

Capítulo I. Os inícios do toque das escrófulas

§ 1. As escrófulas

Por écrouelles, ou mais frequentemente scrofule, que é apenas uma forma culta da primeira (ambas as palavras, tanto a popular quanto a erudita, derivadas do latim scrofula), os médicos na atualidade designam a adenite tuberculosa, ou seja, as inflamações dos linfonodos causadas pelos bacilos da tuberculose. É evidente que, antes do nascimento da bacteriologia, a especialização desses nomes, que remontam à medicina antiga, não era possível. As diferentes afecções ganglionares não podiam ser claramente diferenciadas; ou, pelo menos, os esforços de classificação – de antemão destinados ao fracasso – que poderiam ser buscados por uma ciência ainda incerta, não deixaram qualquer vestígio na linguagem médica atual; essas afecções eram todas comumente denominadas de écrouelles, em francês, e de scrofula ou strumae em latim, sendo essas duas últimas palavras acabando por se tornar, ordinariamente, sinônimos. É justo acrescentar que o maior número das muitas das inflamações ganglionares tem origem tuberculosa; a maioria dos casos descritos como escrofulosos pelos médicos da Idade Média, por exemplo, também o seria por nossos médicos. Mas a linguagem popular era mais imprecisa do que o vocabulário técnico; os nódulos linfáticos mais facilmente atacados pela tuberculose são aqueles do pescoço, e quando a doença se desenvolve sem cuidados e ocorrem supurações, a face aparenta ser atingida: daí surge uma confusão, comum em muitos textos, entre as escrófulas e várias afecções da face ou mesmo dos olhos[1]. A adenite tuberculosa ainda hoje é muito comum; como não seria antigamente, em condições de higiene muito piores do que as nossas? Adicionem-se, ainda, outras adenites, e todo esse amplo grupo de doenças de todos os tipos que o erro comum confunde: teremos uma ideia dos estragos que, na antiga Europa, poderiam provocar as doenças denominadas de “écrouelles”. Na verdade, o testemunho de alguns médicos da Idade Média ou dos tempos modernos afirma que, em certas regiões, eram verdadeiramente endêmicas[2]. O mal é raramente fatal; mas, especialmente quando cuidados adequados estão ausentes, é inconveniente e pode desfigurar; as frequentes supurações tinham algo de repugnante; o horror que inspiravam era expresso ingenuamente em mais de uma narrativa antiga: o rosto se encontrava “corrompido”; as feridas espalhavam “um odor fétido…”. Incontáveis pacientes, ardentemente esperando a cura, prontos para acorrer aos remédios conhecidos por todos: eis o pano de fundo da imagem que deve se apresentar aos olhos do historiador do milagre real.

Já mencionei o que foi esse milagre. Na França antiga, a escrófula era comumente chamada de mal le roi; na Inglaterra, conhecida como King’s Evil. Os reis da França e da Inglaterra, pelo simples toque de suas mãos, realizado de acordo com ritos tradicionais, pretendiam curar o escrofuloso. Quando esse poder milagroso começou a ser exercido? Como foram levados a reivindicá-lo? Como suas populações foram levadas a reconhecê-lo? Problemas delicados, que vou buscar resolver. O conjunto de nosso estudo será fundado em testemunhas confiáveis; mas aqui, neste primeiro livro dedicado às origens, tocaremos um passado mais obscuro; devemos nos resignar, de antemão, a apresentar senão grandes hipóteses; são permitidas ao historiador, desde que não as apresente como certezas. Antes de tudo, procuraremos reunir os mais antigos textos que abordavam, como então se dizia, os “príncipes médicos”. Começaremos com a França.

§2. Os inícios do rito francês

O primeiro documento no qual, inequivocamente, o “toque” francês é mencionado, chegou até nós por conta de uma controvérsia bastante singular[3]. No início do século XII, o mosteiro de Saint-Medard de Soissons afirmava possuir uma relíquia, a mais importante de todas: um dente do Salvador, um dente de leite, dizia-se[4]. Para melhor difundir a glória de seu tesouro, os monges compuseram um panfleto, que já não possuímos, mas que, graças a tantos outros exemplos, podemos imaginar a natureza: uma coleção de milagres, um folheto para uso de peregrinos, sem dúvida uma produção bastante grosseira[5]. E não muito longe de Soissons vivia um dos melhores escritores da época, Guibert, abade de Nogent-sous-Coucy. A natureza o dotou de um espírito justo e refinado; pode-se presumir, assim, que alguma querela obscura, hoje já esquecida, em uma dessas amargas rivalidades da Igreja cuja história daquele período está repleta, tenha-o animado contra seus “vizinhos” de Soissons[6], e o tornado ainda mais exigente em seu amor pela verdade. Ele não acreditava na autenticidade do dente ilustre; quando surgiu o panfleto em questão, ele tomou a sua pena para advertir aos fiéis que estavam sendo enganados pelos “falsários”[7] de Saint-Medard. Assim nasceu este curioso tratado sobre as Relíquias dos Santos, que a Idade Média parece ter aprovado medianamente (só nos resta um manuscrito, talvez produzido sob os olhos do próprio Guibert)[8], mas que hoje nos permite revelar, dentre muitas confusões, as provas de um sentido crítico assaz refinado, algo raro para o século XII. É um trabalho razoavelmente descompromissado, que contém, além de anedotas divertidas, uma série de considerações um tanto díspares a respeito de relíquias, visões e manifestações milagrosas em geral[9]. Vamos abrir o primeiro livro. Guibert, em perfeita conformidade com a mais ortodoxa doutrina, desenvolve a ideia de que os milagres não são, em si mesmos, sinais de santidade. Têm Deus como único autor; e a Sabedoria divina escolhe instrumentos, “canais”, homens que sejam convenientes a seus projetos, mesmo que ímpios. A seguir toma emprestado alguns exemplos da Bíblia, e mesmo de historiadores antigos, que para um estudioso da época seriam objeto de uma fé quase tão cega como o próprio Livro Sagrado: a profecia de Balaão, a de Caifás, Vespasiano curando um coxo, o mar de Panfília se abrindo diante de Alexandre o Grande e, finalmente, os sinais que tantas vezes anunciaram nascimento ou morte de príncipes[10]. Eis o que Guibert acrescenta:

O que eu digo? Não vimos nosso Senhor, o Rei Luís, usando um prodígio costumeiro? Eu vi, com meus próprios olhos, pessoas doentes que sofrem de escrófulas no pescoço, ou em outras partes do corpo, acorrendo em multidões para serem tocadas por ele, – um toque ao qual ele acrescentava um sinal da cruz. Eu estava lá, muito perto dele, e eu mesmo o defendi contra aqueles que o importunavam. O rei, no entanto, mostrava para eles sua generosidade inata e, chamando Ele com sua serena mão, humildemente fazia o sinal da cruz sobre eles. Seu pai, Filipe, também utilizou com ardor esse mesmo poder milagroso e glorioso; não sei por quais erros que cometeu, acabou por perdê-lo[11].

Tais são as poucas linhas constantemente citadas desde o século XVII pelos historiadores das “écrouelles”. Os dois príncipes mencionados são, evidentemente, por um lado, Luís VI e, por outro, Filipe I e seu pai. O que se pode concluir?

Em primeiro lugar, que Luís VI (cujo reinado se estende de 1108 a 1137) deveria possuir o poder de curar os escrofulosos; e os doentes acorriam até ele em multidões, e o rei, persuadido, sem dúvida, da força milagrosa que o céu lhe dera, rendia-se às suas orações. E não era algo feito ao acaso, consequência de um momento de entusiasmo popular excepcional; já estamos na presença de uma prática “costumeira”, um rito regular com as roupagens que terá durante todo o curso da monarquia francesa: o rei toca os doentes e faz o sinal da cruz sobre eles; esses dois gestos sucessivos permanecerão tradicionais. Guibert é uma testemunha ocular, que não pode ser contestada; ele conheceu Luís VI em Laon, e talvez em diferentes circunstâncias, e sua dignidade como abade lhe valia um lugar próximo a seu soberano[12].

Há mais. Este maravilhoso poder não era considerado algo pessoal do rei Luís. Foi lembrado que seu pai e antecessor Filipe I, cujo longo reinado (1060-1108) nos leva quase a meados do século XII, exerceu o poder antes dele; foi dito que o perdera como resultado de “Não sei quais erros”, como afirma Guibert de maneira discreta, fortemente ligado à família capetíngia e preparado para esconder seus erros. Não há dúvida de que se refere à dupla união adúltera de Filipe com Bertranda de Monforte. Excomungado como resultado desse crime, o rei, acreditava-se, teria sido atingido, por conta da ira divina, por várias doenças “ignominiosas”[13]; não seria surpreendente que tivesse perdido seu poder de cura. Esta lenda eclesiástica tem pouca importância aqui. Mas deve-se lembrar que Filipe I foi o primeiro soberano francês sobre quem podemos afirmar com certeza que tocou os escrofulosos.

Também deve ser destacado que este texto, tão precioso, permanecia em seu tempo como absolutamente único. Se, no decorrer do curso das eras, buscarmos as curas efetuadas pelos reis da França, deveremos, para encontrar um novo texto, alcançar o reinado de São Luís (1226-1270), sobre quem, aliás, as informações são abundantes[14]. Se os monges de Saint-Médard não tivessem reivindicado a posse de um dente de Cristo, se Guibert não tivesse tomado a atitude de criticá-los, ou se seu tratado, como tantos outros do mesmo tipo, estivesse perdido, seríamos sem dúvida tentados a identificar São Luís como o primeiro monarca a realizar a cura. Na verdade, não há motivos para acreditar que, entre 1137 e 1226, tivesse ocorrido interrupção na realização dos milagres. Os textos relativos a São Luís apresentam claramente seu poder como sendo tradicional e hereditário. Simplesmente, o silêncio contínuo, por quase um século, dos documentos, precisa ser explicado. Faremos isso posteriormente. Por enquanto, ocupados em determinar o início do rito, conservemos apenas a recente observação enquanto um convite à prudência: uma feliz coincidência preservou as poucas frases nas quais um escritor do século XII lembrava, de forma passageira, que seu rei curava escrofulosos; outros acidentes, menos favoráveis, podem ter roubado de nós vestígios análogos a respeito de soberanos mais antigos; ao afirmar, sem qualquer outra base, que Filipe I foi o primeiro a “tocar as escrófulas”, arriscaríamos cometer um erro semelhante ao que teríamos caído se, caso o único manuscrito do Tratado de Relíquias tivesse desaparecido, chegássemos à conclusão de que a ausência de qualquer menção anterior a São Luís implicaria ser este rei o iniciador do rito.

Podemos esperar encontrar indícios para antes de Filipe I?

A dúvida sobre se os reis das duas primeiras linhagens já possuíam a virtude medicinal reivindicada pelos capetíngios não é nova. Já foi considerada muitas vezes pelos estudiosos dos séculos XVI e XVII. Controvérsias que ecoaram à mesa real. Em certo dia da Páscoa, em Fontainebleau, Henrique IV, depois de ter tocado as escrófulas, satisfez-se em animar o jantar com o espetáculo de uma justa semelhante; posicionaram-se doutos combatentes: André Du Laurens, seu primeiro médico, Pierre Mathieu, seu historiador, e o capelão Guillaume Du Peyrat; o historiador e o médico sustentaram que o poder de que seu mestre havia dado novas provas remontava a Clóvis; o capelão negou que Merovíngios ou Carolíngios já o possuíssem[15]. Entremos nessa disputa e busquemos formar uma opinião. O problema, bastante complexo, pode ser dividido em várias questões mais simples, que devem ser examinadas sucessivamente.

Em primeiro lugar, pode-se encontrar textos nos quais algum rei, pertencente às duas primeiras dinastias, que tenha se aventurado a curar os escrofulosos? Nesse ponto, não teremos dificuldade em concordar com a posição negativa, muitas vezes expressada com grande veemência por Du Peyrat, por Scipio Dupleix, por todos os bons espíritos eruditos do século XVII. Nenhum texto desta natureza foi produzido. Vamos seguir adiante. A alta idade média é conhecida por suas fontes escassas e, portanto, fáceis de serem exploradas; durante vários séculos, os estudiosos de todas as nações as desprezaram conscientemente; se um texto como acabei de utilizar nunca foi destacado, pode-se concluir, sem receio de errar, que não existe. Mais tarde, teremos ocasião de ver como nasceu, no século XVI, o relato de como Clovis curou seu escudeiro Lanicet; esta tradição então nos parecerá desprovida de qualquer fundamento; irmã mais nova das lendas da Santa Ampola ou da origem celestial da flor-de-lis deve, como seria necessário ter sido feito há muito tempo, ser mantida esquecida nas antigas lojas de acessórios históricos fora de moda.

É conveniente postular o problema de forma mais abrangente. Nem os Merovíngios nem os Carolíngios, segundo testemunham os textos, possuíam esta forma especial do poder de cura aplicada a uma doença definida: a escrófula. Mas eles não teriam capazes de curar qualquer outra doença particular, ou mesmo todas as doenças em geral? Consultemos Gregório de Tours. Pode-se ler a seguinte passagem, no livro IX, a respeito do rei Gontrão, filho de Clotário I:

Contava-se comumente, entre os fiéis, que uma mulher, cujo filho, que sofria de febre e prostrado na cama com dores, atravessou a multidão em direção ao rei e, aproximando-se dele por detrás, arrancou sem que ele percebesse algumas franjas de seu manto real; colocou-as em água e deu a água para seu filho beber; imediatamente a febre baixou; o paciente se curou. Eu não coloquei, de minha parte, o assunto em debate. Na verdade, eu mesmo muitas vezes vi demônios habitando corpos possuídos chamando pelo nome do rei e, ao perceberem a virtude que dele emanava, admitirem seus crimes[16].

Assim, Gontrão tinha, além de súditos e admiradores – Gregório de Tours, como sabemos, entre estes últimos –, a reputação de ser um curandeiro. Uma força milagrosa se ligava às roupas que havia tocado. Sua mera presença, ou mesmo – o texto não é muito claro –, ainda mais simplesmente, a invocação de seu nome, libertava os possessos. A questão toda se resume em saber se ele compartilhava essa capacidade maravilhosa com os da sua linhagem, ou se a mantinha, por outro lado, apenas individualmente. Sua memória não parece ter sido objeto de culto oficialmente reconhecido, embora no século XIV o hagiógrafo italiano Pierre de Natalibus tenha acreditado ser seu dever dedicar a ele um lugar em seu Catalogus Sanctorum[17]. Mas não se pode duvidar que muitos de seus contemporâneos, o Bispo de Tours, em primeiro lugar, consideravam-no um santo; não que fosse particularmente puro ou gentil; mas era tão piedoso! “Teria sido, não um rei, mas um bispo”, escreveu Gregório algumas linhas antes da passagem que citei acima. Além disso, o mesmo Gregório nos fornece muitos detalhes sobre antepassados, tios e irmãos de Gontrão; Fortunato cantou louvores a inúmeros reis Merovíngios; em nenhum lugar encontramos que qualquer desses príncipes – sendo elogiados como mais ou menos piedosos, generosos ou corajosos –, tenha curado alguém. A mesma constatação se faz em relação aos Carolíngios. O renascimento Carolíngio nos deixou uma literatura relativamente rica que inclui, em particular, tratados semipolíticos, semimorais sobre a realeza, além de biografias ou coleções de anedotas a respeito de certos soberanos; seria impossível encontrar qualquer alusão ao poder de cura. Se, por conta de uma única passagem de Gregório de Tours, decidíssemos que os primeiros Merovíngios possuíam virtudes medicinais, deveríamos supor, ao mesmo tempo, que tal virtude teria sofrido um eclipse com os Carolíngios. Não há qualquer possibilidade, portanto, de estabelecer uma continuidade entre Gontrão e Filipe I, entre o rei do século VI e do século XII. É mais simples admitir que esses milagres foram atribuídos a Gontrão pela opinião comum, não enquanto um atributo real, mas porque parecia fluir necessariamente do caráter de santidade com o qual os fiéis o identificavam: pois aos olhos de seus contemporâneos, o que seria um santo senão, acima de tudo, um taumaturgo benevolente? Consequentemente, e como veremos mais tarde, Gontrão parece ter sido mais facilmente um santo do que um rei: ele pertencia a uma dinastia que os Francos haviam há muito considerada sagrada. Mas se, pelo menos em parte, sua santidade e, consequentemente, seus poderes milagrosos fossem devidos a sua origem real, este dom se constituía, no entanto, em uma graça pessoal que seus antepassados ​​e seus sucessores não possuíam. A série ininterrupta de reis médicos, que a França medieval conheceu, não se iniciou com o soberano piedoso, querido pelo coração de Gregório de Tours.

Devo me interromper por aqui. Sem dúvida, os textos Merovíngios ou Carolíngios, pelo menos como chegaram até nós, não nos apresentam, em nenhum lugar, um rei que curasse a escrófula e, com exceção da passagem de Gregório de Tours que acabamos de estudar, que nos fale de curas reais, de qualquer tipo que se possa imaginar; isso é incontestável; mas essas fontes, como já observei, são muito pobres; de seu silêncio, devemos derivar qualquer coisa além de um erro fundado na ignorância? Não será possível que, sem termos conhecimento, os soberanos das duas primeiras linhagens tocassem os doentes? Certamente, em todas as ordens da ciência, as provas negativas são perigosas; na crítica histórica, mais particularmente, o argumento ex silentio está sempre repleto de perigos. No entanto, não nos deixemos engar por essa terrível ausência. Quanto ao próprio problema que nos interessa aqui, Du Peyrat escreve, muito oportunamente:

Alguém poderá me dizer, talvez, que discutir ab autoritate negativa não permite qualquer conclusão, mas farei a mesma observação que fez Coeffeteau a Plessis Mornay, de que esta é uma impertinente lógica na História; que, ao contrário, argumenta-se afirmativamente: para todos aqueles Autores, São Remy, Gregório de Tours, Incmaro e outros que o seguiram sob a segunda linhagem, todos eram obrigados, enquanto fiéis historiadores, a colocar por escrito uma coisa assim memorável, se fosse praticada em seu tempo… e, portanto, não tendo sido escrito sobre este milagre, pode-se afirmar que era desconhecido em seu século[18].

Em outras palavras, toda questão se resume em saber se os documentos contemporâneos das dinastias merovíngias e carolíngias são de tal natureza que a prática das curas reais, caso tivessem existido, não teria sido jamais mencionada neles. Isto é algo que parece pouco provável, especialmente no que diz respeito ao século VI, por um lado – os dias de Fortunato e Gregório de Tours – e, mais ainda, no belo período da dinastia seguinte. Se Carlos Magno ou Luís o Pio tocassem os doentes, não se deve crer que o monge de St. Gall ou o Astrônomo teriam mencionado tal característica maravilhosa? Que nenhum desses escritores, próximos à corte real, que formam a brilhante plêiade do “renascimento carolíngio”, teriam deixado escapar, mesmo que rapidamente, a mais fugaz alusão a este grande fato? Sem dúvida, como lembrei acima, de Luís VI a São Luís os documentos são igualmente silenciosos, mas agora devo interpretar esse silêncio que, além disso, durou apenas três reinados: mostrarei como tal silêncio tem origem em um movimento do pensamento político, resultado da reforma gregoriana, cujas ideias fundamentais são tão diferentes quanto possível daquelas que animavam os autores de quem acabei de falar. O incomparavelmente mais longo silêncio das literaturas merovíngias e carolíngias seria propriamente inexplicável – se não fosse explicado simplesmente pela própria ausência do rito cujos traços buscamos em vão. Não há razão para acreditar que os descendentes de Clovis ou de Pepino tivessem em algum momento, enquanto reis, pretendido curar qualquer pessoa.

Passemos agora aos primeiros capetíngios. A vida do segundo príncipe desta linhagem, Roberto o Pio, foi escrita, como se sabe, por um de seus protegidos, o monge Helgaud. Trata-se de um panegírico. Roberto aparece ali adornado com todas as virtudes, especialmente aquelas que agradariam os monges. Em particular, Helgaud elogia sua bondade para com os leprosos; e acrescenta:

A virtude divina concedeu a este homem perfeito uma grande graça: aquela de curar os corpos; com sua tão piedosa mão, toca as feridas dos doentes e marca-os com o sinal da santa cruz, libertando-os da dor e da doença[19].

Grandes debates foram travados a respeito deste curto trecho. Eruditos qualificados se recusaram a ver nestas linhas o primeiro testemunho do poder de cura dos reis franceses. Examinemos seus motivos.

O que afirma, exatamente, a Vida do Rei Roberto? Que este príncipe curou doentes; mas, seria devido a uma graça especial ou em virtude de uma vocação hereditária que teria sido comum a toda sua linhagem? O texto não especifica. Pode ser legítimo perguntar se Helgaud, tomado de admiração pelo rei, cujas grandes realizações descreveu e talvez desejoso em preparar sua futura canonização, não tenha considerado o poder maravilhoso que emprestou a seu herói enquanto manifestação de uma santidade estritamente individual. Lembremo-nos da passagem de Gregório de Tours citada anteriormente; concluímos que o rei Gontrão fora pessoalmente considerado um santo, mas não que os Merovíngios fossem considerados uma linhagem de taumaturgos; não podemos considerar que o testemunho de Helgaud possui significado semelhante? No entanto, em uma análise mais detida, tal analogia parece ser superficial. O texto de Gregório de Tours surge absolutamente isolado, no silêncio universal e prolongado de todos os documentos; para estabelecer um elo de filiação entre as virtudes medicinais do filho de Clotário e o autêntico início do toque dos escrofulosos sob Filipe I, seria necessário um salto de cinco séculos, atravessando três dinastias; deveríamos supor que uma loucura teria tomado os autores que não possuíam qualquer motivo para ficar em silêncio. Aqui não há tais dificuldades. Entre Roberto II e Filipe I, seu neto, há apenas um curto intervalo: 29 anos; uma única geração; um único reinado, aquele de Henrique I, que é precisamente o mais desconhecido de todos aqueles daquela época; conhecemos pouco desse príncipe; ele poderia muito bem ter tocado os doentes sem que vestígios desse gesto tenham chegado até nós; e temos mesmo o direito de nos surpreender com nossa própria ignorância. Admitamos por um instante que foi Roberto II quem iniciou o ilustre rito cuja história estamos tentando escrever, e vejamos a que conclusões podemos chegar. Seus fiéis acreditavam que ele fosse capaz de curar; é o que parece ter ocorrido, segundo se depreende das afirmações de seu biógrafo. Pode ser que tenham considerado uma graça pessoal de seu senhor. Mas, posteriormente, seus descendentes e sucessores, por sua vez, reivindicaram o privilégio paternal como se fora sua própria herança. É possível que Helgaud, de quem não se sabe se sobreviveu por muito tempo a seu herói, tenha ignorado tal pretensão, ou tenha preferido, por qualquer que fosse a razão, silenciá-la. Nós não podemos nos permitir tal dúvida, uma vez que sabemos, por um texto irrefutável, que o próprio neto de Roberto, alguns anos depois, exerceu o mesmo poder. Nada mais natural imaginar, entre duas gerações tão próximas, a continuidade de uma mesma tradição milagrosa, ou melhor, do mesmo rito: o toque, seguido pelo sinal da cruz, quer fosse por Roberto ou por Luís VI (a este respeito, os textos nada falam sobre Filipe I), os gestos de cura são bastante semelhantes. Helgaud não parece ter visto um legado ancestral na “grande graça” que Deus, segundo ele, havia concedido a seu rei. Pode-se inferir, com boa possibilidade de acerto, que Roberto II foi o primeiro dos reis taumaturgos, o elo original da cadeia gloriosa, mas não – algo que seria contraditório com os fatos – que nenhum rei, posteriormente, teria realizado curas.

Outra dificuldade: Filipe I tocou os escrofulosos; e na frase de Helgaud não há qualquer menção à escrófula. A frase aparece em um contexto que trata da ação do rei em relação aos leprosos; mas os leprosos não parecem ser visados ​​por ele de maneira especial; não parece ser esta ou aquela afecção, lepra ou escrófula, todas as diferentes doenças que Roberto, de acordo com seus admiradores, sabia curar. “É digno de nota”, escreve M. Delaborde, “que as escrófulas não apareçam mencionadas na passagem desta biografia, na qual acreditávamos ver um primeiro exemplo do dom especial de nossos reis, mas sim o poder geral de curar doenças, comum a todos os santos”[20]. Certo. Mas é correto afirmar que tal dom, que se reconhecia o rei possuir, tenha sido, desde o início, percebido como sendo tão “específico”? Estamos tão habituados a perceber a virtude milagrosa dos príncipes franceses como tendo por objeto exclusivo as escrófulas, que não mais nos espantamos com o fato deste poder ter assumido essa forma estritamente limitada. Afirmar que sempre tenha sido, desde seus inícios, restrito desta maneira é, porém, afirmar um postulado injustificável. Façamos uma comparação. A maior parte dos santos verdadeiramente populares possui, também, dons específicos: um cuida dos olhos de alguém, outro das dores do estômago e assim por diante. Além disso, e até onde é possível analisar, tais especializações raramente estão em suas origens; a melhor prova é a de que, por vezes, elas variam. Todo santo se torna um médico para o povo; pouco a pouco, como consequência de associações de ideias, muitas vezes obscuras, às vezes por conta de simples semelhanças entre palavras, seus fiéis passam a atribuir a este santo o dom de aliviar, preferencialmente, esta ou aquela doença; o tempo faz, então, seu trabalho; ao final de certo número de anos, a crença neste poder particularmente específico acaba por se tornar, no pobre mundo dos sofredores, um verdadeiro artigo de fé. Mais tarde encontraremos um dos grandes santos peregrinos, S. Marcoul de Corbeny; como os reis da França, ele curava escrófulas; adquiriu tal especialidade muito posteriormente; por longos séculos fora apenas um santo como os outros, invocado indiferentemente para todo tipo de doenças. Sua história, que conhecemos bem, parece verdadeiramente repetir, com algumas centenas de anos de distância, aquela dos reis da França, que nos aparece de forma menos nítida: como o santo de Corbeny, provavelmente os reis começaram curando muitas doenças para se especializarem apenas posteriormente. As representações coletivas das quais emergiu a ideia do poder medicinal dos reis são suficientemente sutis para que sejam acompanhadas em todos os seus detalhes; porém, não são ininteligíveis; eu me esforçarei para restituí-las; estão conectadas a todo um ciclo de crenças sobre a sacralidade da realeza que apenas começamos a penetrar; o que teria que ser considerado inconcebível é que os franceses tenham cismado que seus soberanos eram capazes de curar não todos os doentes em geral, mas apenas e tão somente os escrofulosos.

Vamos supor, ao contrário, que as coisas tenham se passado como no caso de S. Marcoul. Os primeiros capetíngios, a partir de Roberto o Pio, por exemplo, “tocavam” e “marcavam com o sinal da cruz”, todas as pessoas pobres, vítimas de várias doenças, que, atraídas pela reputação taumatúrgica, acorriam a eles; essa multidão certamente incluía homens escrofulosos; pois a escrófula era, na Europa daquele tempo, uma afecção extremamente frequente e temida. Mas se trata basicamente de uma afecção benigna, de aparência mais desagradável do que verdadeiramente perigosa e, acima de tudo, facilmente suscetível a remissões, ao menos aparentes ou temporárias[21]. Entre os homens escrofulosos tocados pela mão sagrada do rei, alguns se recuperarão, e muitos outros parecerão curados. Efeito da natureza, diríamos nós; efeito da virtude real, dizia-se no século XI. Que alguns casos semelhantes viessem realmente a ocorrer, qualquer que fosse a razão, em condições particularmente propícias para estimular a imaginação – o que acabou por fazer com que os doentes, dessa forma aliviados, se destacassem em relação a outros que, sofrendo de diferentes males, não tenham se beneficiado pelo toque –, acabou por ser suficiente para fazer com que as mentes passassem a identificar, no príncipe capetíngio, um especialista nas escrófulas. Sem dúvida, na reconstituição de tal encadeamento de ideias participam necessariamente um grande número de hipóteses. O processo pelo qual um curandeiro geral se torna especializado sempre será difícil de ser apreendido em detalhes, pois se trata do resultado de uma multidão de pequenos fatos, de natureza diversa, que atuam de maneira cumulativa; cada fato tomado isoladamente é insignificante para que os documentos os mencionem; isto é o que os historiadores chamam de “acaso”; mas a possibilidade da ocorrência de tal processo é abundantemente demonstrada pela história do culto aos santos. Aqui, encontramos um suporte sólido a nossas induções, já que não dispomos de um texto. Não há motivo para rejeitar o testemunho fornecido por Helgaud; nada, na evolução que pudemos restaurar, vai de encontro à verossimilhança. O fato, então, permanece.

Devemos permanecer em terreno seguro, concluindo o seguinte: Roberto o Pio, o segundo dos Capetíngios, passou a ser visto, por seus fiéis, como alguém que possuía o dom de curar os doentes; seus sucessores herdaram tal poder; mas, transmitida de geração a geração, essa virtude dinástica se modificou, ou melhor, tornou-se gradualmente mais específica; concebeu-se a ideia de que o toque real do soberano não curava todas as doenças indiscriminadamente, mas apenas uma delas, que aliás era muito comum; já no reinado de Filipe I, o próprio neto de Roberto, essa transformação estava concluída.

Conseguimos assim determinar, com certa probabilidade, os inícios, na França, do toque da escrófula. Resta pesquisar, no verdadeiro sentido da palavra, suas origens, isto é, entender como se passou a ver os reis enquanto médicos prodigiosos. Mas esta pesquisa não pode, por enquanto, ser realizada de maneira frutífera. O milagre real, de fato, é tanto inglês quanto francês; em um estudo explicativo de suas origens, ambos os países não podem ser considerados separadamente. Não podemos estabelecer se o rito da cura surgiu primeiramente na França se não tivermos fixado o momento em que este surgiu Inglaterra; sem este cuidado indispensável, como podemos saber se os reis da França simplesmente não imitaram seus rivais de além do Canal da Mancha? Como analisar a concepção de realeza, que o rito não fazia mais que traduzir? As mesmas ideias coletivas estão, em sua origem, em ambas as nações vizinhas. Acima de tudo, agora se faz necessário realizar, para a Inglaterra, a mesma discussão crítica à qual acabamos de submeter os textos franceses.

 


[1] Ainda hoje os tratados de medicina alertam os praticantes sobre a confusão entre escrófulas e afecções do rosto: cf. de Gennes em Brouaudel, Gilbert e Girode, Traité de Médecine et de Thérapeutique, III, p. 596 e ss. Confusão com doenças dos olhos ver, por exemplo, Browne, Adenochairedologia, p. 140 e ss.; 149; 168. Cf. Crawfurd, King’s Evil, p. 99.

[2] Para a Itália (região de Luca), ver o testemunho de Arnaud de Villeneuve citado por H. Fimke, Aus den Tagen Bonifaz VIII (Vorreformationsgeschichtliche Forschungen 2), Münster 1902, p. 105, n. 2; para a Espanha, ver a seguir.

[3] Que se apresenta após De Pignoribus Sanctorum de Guibert de Nogent, cuja edição mais acessível é Migne, P. L., t. 156.

[4] P. L ., t. 156, col. 651 e ss.

[5] Col. 664 no início do 1. III § IV: “in eorum libello qui super dente lioc et sanctorum loci miraculis actitat”.

[6] Col. 607 “nobis contigui”; col. 651 “finitimi nostri”.

[7] Col. 652 “Attendite, falsarii…”.

[8] Trata-se do manuscrito em latim 2900 da Bibl. Nat., que provém do próprio monastério de Nogent.

[9] Ver especialmente a interessante memória de M. Abel Lefranc, Le traité des reliques de Guibert de Nogent Etudes d”histoire du Moyen Age dédiées à Gabriel Monod, 1986, p. 286. Lefranc parece exagerar um pouco o sentido crítico de Guibert que, no entanto, é incontestável. Cf. Bernard Monod, Le moine Guibert et son temps, 1905.

[10] Col. 615 e 616. A passagem relativa às escrófulas está, no entanto, estranhamente interposta em meio a exemplos antigos e a rejeição às profecias de Balaão e Caifás. Todo o tratado é muito mal composto. A maioria dos exemplos citados por Guilbert de Nogent eram clássicos em seu tempo; veja, por exemplo, o resultado da profecia de Caifás – dado como o tipo de simoníaco – S. Pierre Damien, Liber gratissimus, c. X, Monumenta Gcrmaniae, Libelli de lite, I, p. 31.

[11] Posteriormente, no manuscrito, irá afirmar à fol. 14: “Quid quod dominum nostrum Ludovicum regem consuetudinario uti videmus prodigio ? Hos plane, qui scroplias circa jugulum, aut uspiam in corpore patiuntur, ad tactum eius, superadito crucis signo, vidi catervatim, me ei coherente et etiam prohibente, concurrere. Quos tamen ille ingenita liberalitate, serena ad se manus obuncans, humillime consignabat. Cuius gloriam miraculi cum Filipepus pater ejus alacriter exerceret, nescio quibus incidentibus culpis.amisit”. O texto de P. L ., t. 156, col. 616, grafias à parte, está correto.

[12] Cf. G. Bourgin, Introduction à sua edição de Guibert de Nogent, Histoire de sa vie (Collect. de textes pour l”étude et l”ens. de l”hist), p. XIII. O Sr. G. Bourgin parece não ter prestado atenção à passagem do Tratado sobre as Relíquias relativas à cura da escrófula, caso contrário não teria apresentado os encontros entre Guibert e o rei como meramente “prováveis”.

[13] Orderic Vital, 1. VIII, c. XX, ed. Leprévost, III, p. 390.

[14] Serão discutidos mais adiante.

[15] Du Peyrat, Histoire ecclesiastique de la cour, p. 817. Deve-se destacar que, na atualidade, Sir James Frazer assumiu, sem perceber os problemas históricos que acarretava, a antiga teoria de Du Laurens e Pierre Mathieu: Golden Bough, I, p. 370.

[16] Historia Francorum, IX, c. 21: “Nam caelebre tunc a fidelibus ferebatur, quod mulier quaedam, cuius filius quartano tibo gravabatur et in strato anxius decubabat, accessit inter turbas populi usque ad tergum regis, abruptisque clam regalis indumenti fimbriis, in aqua posuit filioque bibendum dedit; statimque, restincta febre, sanatus est. Quod non habetur a me dubium, cum ego ipse saepius larvas inergia famulante nomen eius invocantes audieram ac criminum propriorum gesta, virtute ipsius discernente, fatere”.

[17] Biblioteheca Hagiographica Latina, 1, p. 555.

[18] Histoire ecclesiastique de la Cour, p. 806.

[19] Histor. de France, X, p. 115 A e Migne, P. L., t. 141, col 931: “Tantam quippe gratiarn in medendis corporibus perfecto viro contulit divina virtus ut, sua piissima manu infirmis locus tangens vulneris et illis irnprimens ignum sanctae crucis, omnetn auferret ab eis dolorem infirmitatis”. Gostaria de mencionar que a interpretação desta passagem, que será desenvolvida a seguir, já foi indicada, em suas linhas gerais, pelo Dr. Crawfurd, King’s Evil, p. 12 e 13.

[20] Du toucher des écrouelles, p. 175, n. I.

[21] Sobre este ponto, como também sobre a análise crítica relativa ao milagre real, veja o Livro III.

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