Trecho do Capítulo 1 de “Sobre as Faculdades Naturais” de Galeno

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A seguir você irá ler um trecho do Capítulo 1 da obra Sobre as Faculdades Naturais, de Galeno.


1. Como as sensações e o movimento voluntário são peculiares aos animais, enquanto o crescimento e a nutrição são comuns também às plantas, podemos considerar as primeiras como efeitos da alma e o segundo como efeito da natureza. E se há alguém que considere que a alma participa também das plantas e, diferenciando entre os dois tipos de alma, denomina uma vegetativa e outra senciente, esta pessoa não está dizendo nada diferente de nós, embora sua linguagem seja um tanto incomum. Nós, no entanto, estamos convencidos de que o principal mérito da linguagem é a clareza, e sabemos que nada a destrói tanto quanto o uso de termos incomuns; por isso empregamos aqueles termos que a maioria das pessoas costuma usar, e dizemos que os animais são governados conjuntamente por sua alma e por sua natureza, e as plantas somente por sua natureza, e que seu crescimento e nutrição são efeitos da natureza, não da alma.

2. Assim, no decorrer deste tratado, vamos perguntar de quais faculdades estes efeitos se originam, bem como se existem outros efeitos da natureza. Primeiro, porém, devemos diferenciar e explicar claramente os vários termos que usaremos neste tratado, e a quais coisas os aplicamos; e isto provará que não se trata apenas de uma explicação de termos, mas sim de uma demonstração dos efeitos da natureza. Assim, quando um determinado corpo não experimenta qualquer mudança em relação ao seu estado atual, dizemos que está em repouso; mas, por outro lado, se ele se afastar dele em qualquer aspecto, dizemos então que experimenta um movimento.

Assim, quando ele se afasta de seu estado anterior de várias maneiras, ele se submeterá a vários tipos de movimento. Assim, se o que é branco se torna preto, ou o que é preto se torna branco, ele foi submetido a um movimento com relação à cor; ou se o que antes era doce agora se torna amargo, ou, inversamente, de amargo agora é doce, será dito que foi submetido a um movimento em relação ao sabor; a ambos os casos, bem como aos mencionados anteriormente, aplicaremos o termo movimento qualitativo. E, além disso, não são apenas às coisas que se alteram em relação à cor e ao sabor que, dizemos, sofrerem movimento; quando uma coisa quente se torna fria, e algo frio se torna quente, aqui também falamos de seu movimento; do mesmo modo, também quando qualquer coisa úmida se torna seca, ou seca se torna úmida. Agora, o termo comum que aplicamos a todos estes casos é alteração. Este é um tipo de movimento. Mas há outro tipo que ocorre em corpos que mudam de posição, ou como dizemos, passam de um lugar para outro; o nome disto é transferência. Estes dois tipos de movimento, então, são simples e primários, enquanto que, a partir deles, temos crescimento e consumo, como quando uma coisa pequena se torna maior, ou uma coisa grande se torna menor, cada um retendo ao mesmo tempo sua forma particular.

E dois outros tipos de movimento são a gênese e a destruição, sendo a gênese uma existência, e a destruição seu oposto. Agora, comum a todos os tipos de movimento é a mudança do estado anterior, enquanto comum a todas as condições de repouso é a preservação do estado anterior. Os Sofistas, entretanto, ao mesmo tempo em que concordam que quando o pão se transforma em sangue muda no que diz respeito à visão, paladar e tato, não concordarão que esta mudança ocorra na realidade. Assim, alguns deles sustentam que todos esses fenômenos são truques e ilusões de nossos sentidos; os sentidos, dizem, são afetados agora de uma forma, agora de outra, enquanto a substância subjacente não admite nenhuma dessas mudanças às quais os nomes foram dados. Outros (como Anaxágoras) acreditam que as qualidades existam na substância, mas que são imutáveis e inalteráveis para sempre, e que estas aparentes alterações são provocadas pela separação e combinação. Agora, se eu me esforçasse para refutar essas pessoas, minha digressão seria maior do que minha tarefa principal.

Assim, se eles não souberem tudo o que foi escrito por Aristóteles, e depois dele por Crisipo sobre a completa alteração da substância, devo implorar-lhes que se familiarizem com os escritos destes homens. Se, no entanto, eles os conhecem, e ainda assim preferem de bom grado as piores ideias às melhores, sem dúvida considerarão também tolos meus argumentos. Demonstrei em outros tratados que estas opiniões foram compartilhadas por Hipócrates, que viveu muito antes de Aristóteles. Na verdade, de todos aqueles conhecidos por nós que foram médicos e filósofos, Hipócrates foi o primeiro que buscou demonstrar que existem, ao todo, quatro qualidades que interagem mutuamente, e que ao funcionamento destas se deve a gênese e destruição de todas as coisas que entram e saem do ser. Além disso, Hipócrates foi também o primeiro a reconhecer que todas estas qualidades se mesclam intimamente entre si; e pelo menos os princípios das manifestações que Aristóteles mais tarde retomou, em primeiro lugar se encontram nos escritos de Hipócrates. Quanto a supor que as substâncias, bem como suas qualidades, sejam submetidas a esta mistura íntima, como Zenão do Cítio mais tarde declarou, não creio que seja necessário ir mais longe nesta questão no presente tratado; para fins imediatos, basta reconhecer a completa alteração da substância. Desta forma, ninguém suporá que o pão representa uma espécie de lugar de encontro para ossos, carnes, nervos e todas as outras partes, e que cada uma delas subsequentemente se separa dentro do corpo e vai se unir à espécie semelhante; antes de qualquer separação, o pão inteiro obviamente se transforma em sangue. (De qualquer forma, se um homem não tomar nenhum outro alimento por um longo período, ele não terá menos sangue retido em suas veias). E isto claramente refuta a visão daqueles que consideram os elementos imutáveis, como também, aliás, é o caso do óleo que é inteiramente consumido na chama da lâmpada, ou da lenha que, logo a seguir, transforma-se em fogo. Eu disse, porém, que não ia entrar em discussão com aqueles, e foi somente porque o exemplo foi extraído do assunto da medicina, e porque me é útil para o presente tratado, que o mencionei.

Renunciaremos então, como disse, a nossa controvérsia com eles, já que aqueles que desejarem podem ter uma boa compreensão das opiniões dos antigos a partir de nossas próprias investigações pessoais sobre estes assuntos. A discussão que se segue será inteiramente dedicada, como propusemos originalmente, a uma pesquisa sobre o número e o caráter das faculdades da Natureza, e qual é o efeito que cada uma naturalmente produz. Agora, claro, defino como efeito o que já existe e que foi completado pela atividade dessas faculdades – por exemplo, sangue, carne ou nervo. E atividade ou movimento ativo é o nome que dou à mudança, e a causa dela denomino faculdade. Assim, quando o alimento se transforma em sangue, o movimento do alimento é passivo, e o da veia é ativo. Da mesma forma, quando os membros têm sua posição alterada, é o músculo que produz e os ossos que sofrem o movimento. Nestes casos, chamo de atividade o movimento da veia e do músculo, e o do alimento e dos ossos de sintoma ou efeito, já que o primeiro grupo experimenta alteração e o segundo grupo é meramente transportado. Pode-se, portanto, falar também da atividade como um efeito da Natureza – por exemplo, digestão, absorção de alimentos, produção de sangue; não se poderia, contudo, em todos os casos, chamar cada efeito de atividade; assim, a carne é efeito da Natureza, mas não é, naturalmente, uma atividade. É claro, portanto, que um destes termos é usado em dois sentidos, mas não o outro.

3. Parece-me, então, que a veia, assim como cada uma das demais partes, funciona de acordo com a maneira pela qual as quatro qualidades são misturadas. Há, porém, um número considerável de homens não pouco conhecidos – filósofos e médicos – que se referem à ação do Quente e do Frio, e que subordinam a estes, como passivos, o Seco e o Úmido; Aristóteles, de fato, foi o primeiro que tentou trazer de volta as causas das diversas atividades especiais a estes princípios, e foi seguido mais tarde pelos estoicos. Estes últimos, é claro, poderiam logicamente considerar o Quente e o Frio como princípios ativos, já que se referem à mudança dos próprios elementos uns nos outros para certas difusões e condensações. No entanto, não era assim para Aristóteles; visto que ele empregava as quatro qualidades para explicar a gênese dos elementos, ele também deveria ter remetido apropriadamente as causas de todas as ações particulares a estes. Por que ele usa as quatro qualidades em seu livro Sobre Gênese e Destruição, enquanto em sua Meteorologia e Problemas e muitas outras obras, usa apenas duas delas? É claro que se alguém defendesse que no caso de animais e plantas o Quente e o Frio são mais ativos, o Seco e o Úmido menos, talvez até Hipócrates concordasse com ele; mas se ele dissesse que isso acontece em todos os casos, eu imagino que poucos concordariam, não apenas de Hipócrates, mas até mesmo de Aristóteles – se, pelo menos, Aristóteles escolhesse lembrar o que ele mesmo nos ensinou em sua obra Sobre Gênese e Destruição, não enquanto simples afirmação, mas enquanto uma demonstração. No entanto, eu também pesquisei estas questões, na medida em que são úteis para um médico, em meu trabalho Sobre os Temperamentos.

4. A chamada faculdade de fazer sangue nas veias, então, assim como todas as outras faculdades, enquadra-se na categoria de conceitos relativos; principalmente porque a faculdade é a causa da atividade, mas também, acidentalmente, porque é a causa do efeito. Mas, se a causa é relativa a algo – pois é a causa do que resulta dela, e de nada mais – é óbvio que a faculdade também existe em relação a algo; e enquanto ignorarmos a verdadeira essência da causa que está operando, a denominamos faculdade. Assim, dizemos que existe nas veias uma faculdade de produzir sangue, como também uma faculdade digestiva no estômago, uma faculdade pulsátil no coração, e em cada uma das outras partes uma faculdade especial correspondente à função ou atividade daquela parte. Portanto, se quisermos investigar metodicamente o número e os tipos de faculdades, devemos começar com os efeitos; cada um desses efeitos vem de uma determinada atividade, e cada uma delas é precedida por uma causa específica.

5. Os efeitos da Natureza, então, enquanto o animal ainda está sendo formado no útero, são todas as diferentes partes de seu corpo; e depois que ele nasce, um efeito que todas as partes compartilham é o progresso de cada uma até seu tamanho completo e, depois disso, a manutenção de si mesmo o máximo de tempo possível. As atividades correspondentes aos três efeitos mencionados são necessariamente três: Gênese, Crescimento e Nutrição. A Gênese, entretanto, não é uma simples atividade da Natureza, pois é composta de alteração e de formação. Ou seja, para que osso, nervo, veias e todas as demais partes possam vir a existir, a substância subjacente da qual o animal brota deve ser alterada; e para que a substância assim alterada possa adquirir sua forma e posição apropriadas – suas cavidades, crescimentos, anexos, etc. –, ela deve passar por um processo de moldagem ou formação. Estaria correto denominar esta substância que experimenta alteração de matéria do animal, assim como a madeira é a matéria de um navio, e a cera de uma imagem. O Crescimento é o aumento e expansão em comprimento, largura e espessura das partes sólidas do animal (aquelas que foram submetidas ao processo de moldagem ou de formação). A nutrição é um acréscimo a estas, sem expansão.

6. Falemos então, em primeiro lugar, da Gênese, que, como já dissemos, resulta da alteração juntamente com a formação. Tendo a semente sido lançada no útero ou na terra (pois não há diferença), então, após certo período definido, um grande número de partes se constituem na substância que está sendo gerada; estas diferem em relação à umidade, secura, frieza e calor, e em todas as outras qualidades que naturalmente derivam destas. Você estará familiarizado com estas qualidades derivadas se tiver refletido sobre os temas da gênese e da destruição. Pois, depois das qualidades mencionadas seguem-se as chamadas diferenças tangíveis, e depois delas as que apelam ao gosto, ao olfato e à visão. As diferenças tangíveis são dureza e maciez, viscosidade, friabilidade, leveza, peso, densidade e porosidade, suavidade, rugosidade, espessura e sutileza; todas devidamente discutidas por Aristóteles. E é claro que você conhece aqueles que apelam ao gosto, ao olfato e à visão. Portanto, se você deseja conhecer quais são as faculdades alteradoras primárias e elementares, são a umidade, a secura, o frio e o calor, e se você deseja saber quais surgem da combinação destas, serão encontradas em cada animal em quantidade correspondente a seus elementos sensíveis. A denominação elementos sensíveis é dada a todas as partes homogêneas do corpo, e estas devem ser detectadas não por nenhum sistema, mas pela observação ocular das dissecções. Agora a Natureza constrói osso, cartilagem, nervo, membrana, ligamento, veia, etc., no primeiro estágio da gênese do animal, empregando nesta tarefa uma faculdade que é, em termos gerais, generativa e alterativa, e, em mais detalhes, aquecendo, resfriando, secando ou umedecendo; ou como resultado da mistura destes, por exemplo, as faculdades produtoras de ossos, de nervos e de cartilagem (uma vez que, por razões de clareza, estes nomes também devem ser usados).

De fato, a substância peculiar do fígado também é deste tipo, como a do baço, dos rins, dos pulmões e a do coração; assim também a própria substância do cérebro, estômago, esôfago, intestinos e útero é um elemento sensível, de partes semelhantes, simples e não compostas. Ou seja, se você remover de cada um dos órgãos mencionados suas artérias, veias e nervos, a substância remanescente em cada órgão é, do ponto de vista dos sentidos, simples e elementar. Quanto aos órgãos constituídos por duas camadas diferentes, cada uma das quais seja simples, dessas camadas, as camadas são os elementos – por exemplo, as camadas do estômago, esôfago, intestino e artérias; cada uma dessas duas camadas tem uma faculdade alterativa que lhe é própria, que a gerou a partir do sangue menstrual da mãe. Assim, as faculdades alterativas especiais em cada animal são do mesmo número que as partes elementares; e, além disso, as atividades devem necessariamente corresponder a cada uma das partes especiais, assim como cada parte tem sua utilidade – por exemplo, aqueles dutos que se estendem dos rins até a bexiga, e que são chamados de ureteres; pois estes não são artérias, pois não pulsam nem consistem em duas camadas; e não são veias, pois não contêm sangue, nem se assemelham de forma alguma às veias; dos nervos diferem ainda mais do que das estruturas mencionadas. “O que são, então?” alguém pergunta – como se cada parte fosse necessariamente uma artéria, uma veia, um nervo, ou composta destes elementos; como se a verdade não fosse como estou afirmando agora, ou seja, que cada um dos vários órgãos tem sua própria substância particular. De fato, as duas vesículas – a que recebe a urina e a que recebe a bile amarela – não só diferem de todos os outros órgãos, mas também uma da outra. Além disso, os dutos que saem como condutos da vesícula biliar e que passam para o fígado não têm qualquer semelhança com artérias, veias ou nervos. Mas estas partes foram tratadas com maior profundidade em meu trabalho Sobre a Anatomia de Hipócrates, assim como em outros lugares.


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