Aspectos estilísticos da literatura primitiva, por Franz Boas

Você irá ler, a seguir, um trecho da obra “Raça, Linguagem e Cultura: Volume II”, por Franz Boas. Caso deseje saber mais sobre o livro, ou adquirir a obra, clique na capa abaixo.


Aspectos estilísticos da literatura primitiva[1]

Nas próximas páginas, proponho discutir em que medida características mentais gerais explicam o desenvolvimento da poesia e da arte narrativa, e em que medida condições históricas especiais exerceram uma influência importante.

Em primeiro lugar, pode-se apontar que as duas formas fundamentais, música e conto, são encontradas entre todos os povos do mundo e devem ser consideradas as formas primárias de atividade literária. Não é preciso mencionar especificamente que a poesia primitiva não ocorre sem música e que frequentemente é acompanhada por gestos expressivos ou dança. Portanto, é mais correto falar de música do que de poesia.

Para dar maior precisão ao nosso problema, devemos destacar uma diferença importante entre a prosa moderna e a prosa primitiva. A forma da prosa moderna é amplamente determinada pelo fato de ser lida, não falada, enquanto a prosa primitiva se baseia na arte da entrega oral e, portanto, está mais relacionada à oratória moderna do que ao estilo literário impresso. A diferença estilística entre as duas formas é considerável.

A pesquisa da narrativa primitiva, bem como da poesia, comprova que a repetição, especialmente a repetição rítmica, é uma característica fundamental. Toda narrativa em prosa consiste em parte de elementos livres, cuja forma depende do gosto e da habilidade do narrador. Entre essas passagens, encontramos outras de forma fixa, que conferem à narrativa, em grande parte, seu atrativo formal. Com frequência, essas passagens consistem em conversas entre os personagens, nas quais não é permitida a divergência da fórmula fixa. Em outros casos, elas possuem forma rítmica e devem ser consideradas poesia ou cânticos, em vez de prosa.

É muito difícil obter uma compreensão correta das formas da prosa primitiva, porque a maioria do material disponível foi registrado apenas em línguas europeias, e é impossível determinar a precisão da transcrição. Na maioria dos registros, há uma clara tentativa de adotar o estilo literário europeu. Mesmo quando o material está disponível no texto original, podemos presumir que, pelo menos na maioria dos casos, não alcança o padrão de excelência da narrativa nativa. A dificuldade de transcrição fonética de línguas estrangeiras requer lento trabalho de ditado, o que inevitavelmente prejudica o estilo artístico. O número de coletores que têm pleno domínio da língua nativa é muito pequeno. A melhor aproximação à arte narrativa dos povos primitivos provavelmente está nos casos em que nativos educados transcrevem os textos ou nos registros feitos por missionários que, em longos anos de contato pessoal e íntimo com o povo, adquiriram completo domínio de sua língua e estão dispostos a nos dar exatamente o que ouvem.

Em quase todas as coleções confiáveis, as partes formalmente fixas têm considerável importância. Em poucos casos, como entre os Wailaki da Califórnia, o texto conectivo desaparece quase completamente.

Não é fácil formar uma opinião correta sobre o caráter rítmico da prosa formal; em parte porque o senso rítmico das pessoas primitivas é muito mais desenvolvido do que o nosso. A simplificação do ritmo da música folclórica moderna e da poesia destinada a agradar ao gosto popular embotou nossa percepção da forma rítmica. É necessário um estudo cuidadoso para entender a estrutura do ritmo primitivo, mais ainda na prosa do que na música, porque, neste caso, falta o auxílio do padrão melódico.

Acredito que o gosto pela repetição frequente de motivos isolados se deve em parte ao prazer proporcionado pela repetição rítmica. Por exemplo, os contos dos indígenas Chinook são sempre construídos de forma que cinco irmãos, um após o outro, tenham a mesma aventura. Os quatro mais velhos perecem enquanto o mais novo tem sucesso. O conto é repetido literalmente para todos os irmãos, e seu comprimento, que para nosso ouvido e nosso gosto é intolerável, provavelmente proporciona prazer pela forma repetida. As condições são bastante semelhantes nos contos de fadas europeus relacionados aos destinos de três irmãos, dois dos quais perecem ou falham em suas tarefas, enquanto o mais jovem tem sucesso. Repetições similares são encontradas no conto alemão de Chapeuzinho Vermelho, na história amplamente difundida na Europa do galo que vai enterrar sua companheira ou na história dos três ursos. Nos contos orientais, os incidentes do conto são às vezes repetidos literalmente, sendo contados por um dos heróis.

Alguns exemplos adicionais retirados das narrativas de povos estrangeiros ilustrarão a ocorrência geral da tendência à repetição. No conto Basuto chamado Kumonngoe, um homem leva sua filha para a selva onde ela será devorada por um canibal. No caminho, ele encontra três animais e o filho de um chefe. Em cada caso, segue-se a mesma conversa.

“Para onde você está levando sua filha?” – “Pergunte a ela mesma, ela já é adulta.” Ela responde:

“Eu dei a Hlabakoane Kumonngoe[2],

Ao rebanho de nossas vacas Kumonngoe

Eu pensei que nossas vacas iriam ficar no curral, Kumonngoe,

E assim eu dei a ele o Kumonngoe do meu pai”.

Em um conto Omaha sobre um Homem-Cobra, é relatado que um homem foge de uma serpente. Três ajudantes em sequência dão a ele mocassins que na manhã seguinte retornam por conta própria aos seus donos, e toda vez a mesma conversa é repetida. Quando a serpente parte em perseguição, ela pergunta a todos os animais por informações com exatamente as mesmas palavras. Em uma tradição dos Kwakiutl da Ilha de Vancouver, a mesma fórmula é repetida quarenta vezes juntamente com a descrição do mesmo cerimonial. Nos contos dos índios Pueblo, o mesmo incidente é repetido quatro vezes, ocorrendo com quatro irmãs; a menina amarela, vermelha, azul e branca. Em um conto siberiano sobre a Lebre, ouvimos que um caçador se esconde sob os galhos de um salgueiro caído. Uma lebre após a outra aparece para se alimentar, avista o caçador e foge. Em um conto de Papua, Nova Guiné, os pássaros vêm um após o outro e tentam abrir o estômago de uma pessoa afogada para que saia a água que ele engoliu. Aparece ainda mais claramente esse tipo de repetição em um conto da Nova Irlanda. Os pássaros tentam derrubar o casuar de um galho de árvore em que ele está empoleirado. Para conseguir isso, um após o outro pousa ao lado do casuar no mesmo galho, mas mais perto do tronco. Assim, ele é obrigado a se mover cada vez mais para fora até finalmente cair.

As repetições rítmicas em canções são muito mais marcantes. As genealogias polinésias oferecem um excelente exemplo. Assim, encontramos no Havaí a seguinte canção:

Lii-ku-honua, o homem.

Ola-ku-honua, a mulher.

Kumo-honua, o homem.

Lalo-honua, a mulher,

e assim por diante, através de dezesseis pares. Ou em uma canção de ninar dos índios Kwakiutl:

Quando eu for um homem, serei um caçador.

Ó pai! Ya ha ha ha. Quando eu for um homem, serei um arpoador. Ó pai! Ya ha ha ha.

Quando eu for um homem, então serei um construtor de canoas, ó pai! Ya ha ha ha.

Quando eu for um homem, então serei um carpinteiro, ó pai! Ya ha ha ha.

Quando eu for um homem, então serei um artesão, ó pai! Ya ha ha ha.

Para que não fiquemos necessitados, ó pai! Ya ha ha ha.

Na canção Esquimó do corvo e dos gansos, o corvo canta:

Oh, estou me afogando, me ajude!

Oh, agora a água alcança meus tornozelos.

Oh, estou me afogando, me ajude!

Oh, agora a água alcança meus joelhos.

e assim por diante, por todas as partes do corpo, até os olhos.

Bastante notável é a analogia entre essa canção e a seguinte canção de guerra australiana:

Perfure sua testa,

Perfure seu peito,

Perfure seu fígado,

Perfure seu coração etc.

Acredito que esse prazer proporcionado pela repetição rítmica dos mesmos ou de elementos semelhantes, tanto na prosa quanto na poesia, mostra que a teoria de Bücher, segundo a qual todo ritmo é derivado dos movimentos que acompanham o trabalho, não pode ser mantida, certamente não em sua totalidade. Wundt deriva o ritmo das canções usadas em cerimônias da dança, e o das canções de trabalho dos movimentos exigidos na execução do trabalho, uma teoria praticamente idêntica à proposta por Bücher, uma vez que os movimentos da dança são bastante homólogos aos do trabalho. Não há dúvida de que o sentimento pelo ritmo é fortalecido pela dança e pelos movimentos exigidos na execução do trabalho, não apenas no trabalho comum de grupos de indivíduos que devem tentar manter o ritmo, mas também no trabalho industrial, como a cestaria ou a cerâmica, que requerem movimentos regularmente repetidos em sua execução. As repetições na narrativa em prosa, assim como os ritmos da arte decorativa, na medida em que não são exigidos pela técnica, são prova da inadequação da explicação puramente técnica. O prazer proporcionado pela repetição regular em bordados, pintura e enfiar de contas não pode ser explicado como decorrente de movimentos regulares determinados tecnicamente, e não há indicação que sugira que esse tipo de ritmo tenha se desenvolvido posteriormente ao determinado pelos hábitos motores.

Assim que entramos nas formas de arte de um único grupo cultural, podemos observar que existem características peculiares que não são propriedade comum da humanidade. Isso é mais claro em certas formas de vida cultural que se espalham por grandes áreas sem alcançar uma distribuição universal. É surpreendente que certas formas literárias sejam encontradas entre todas as raças do Velho Mundo, enquanto são pouco conhecidas na América. Isso se aplica particularmente ao provérbio. A importante posição ocupada pelo provérbio na literatura da África, Ásia e também da Europa até tempos bastante recentes é bem conhecida. Na África, em particular, encontramos o provérbio em uso constante. Ele é até a base das decisões judiciais. A importância do provérbio na Europa é ilustrada pela maneira como Sancho Pança o aplica. A literatura asiática também é rica em ditos proverbiais. Por outro lado, quase nenhum provérbio é conhecido entre os índios americanos.

As mesmas condições são encontradas em relação ao enigma, um dos passatempos favoritos do Velho Mundo, que está quase completamente ausente na América. Enigmas são conhecidos do rio Yukon, uma região na qual influências asiáticas podem ser encontradas em vários traços culturais, e dos Esquimós de Labrador. Em outras partes do continente, a investigação cuidadosa não revelou sua ocorrência. É surpreendente que, mesmo no Novo México e no Arizona, onde índios e espanhóis têm vivido lado a lado por vários séculos e onde a literatura indígena está repleta de elementos espanhóis, o enigma, no entanto, não tenha sido adotado, embora os espanhóis dessa região gostem de enigmas como os de outras partes do seu país.

Como terceiro exemplo, menciono o desenvolvimento peculiar do conto de animais. Comum a toda a humanidade é a fábula animal, por meio da qual são explicadas as formas e hábitos dos animais, ou as formas dos fenômenos naturais. A fábula moralizante, por outro lado, pertence ao Velho Mundo.

A distribuição da poesia épica também é ampla, mas ainda limitada a uma área bastante definida, ou seja, a Europa e uma parte considerável da Ásia Central. Na América, conhecemos longas tradições tribais conectadas, mas até o momento, nenhum traço de uma composição que possa ser chamada de romance ou de uma verdadeira epopeia jamais foi descoberto. As lendas polinésias que contam a descendência e as façanhas de seus chefes também não podem ser consideradas poesia épica. A distribuição dessa forma só pode ser entendida com base na existência de antigas relações culturais.

Com base na distribuição desses tipos, duas conclusões podem ser estabelecidas: a primeira é que essas formas não são etapas necessárias no desenvolvimento da forma literária, mas ocorrem apenas sob certas condições; a segunda é que as formas não são determinadas pela raça, mas dependem de acontecimentos históricos.

Se no momento em que os europeus chegaram ao Novo Mundo a literatura dos americanos não possuía os três tipos de literatura que mencionamos, isso não significa que eles teriam aparecido em um momento posterior. Não temos nenhuma razão para supor que a literatura americana era menos desenvolvida do que a da África. A arte narrativa e poética estava altamente desenvolvida em muitas partes da América. Devemos assumir, ao contrário, que as condições históricas levaram a formas diferentes das do Velho Mundo.

A distribuição dessas formas entre europeus, mongóis, malaios e Negros prova a independência do desenvolvimento literário em relação à ascendência racial. Isso mostra que é uma das características da área cultural enormemente estendida, que abrange quase todo o Velho Mundo e que também aparece em contraste distinto com o Novo Mundo. Menciono aqui apenas o desenvolvimento de um procedimento judicial formal, baseado na coleta de evidências, no juramento e na provação, e a ausência desse complexo na América; e o fraco desenvolvimento na América da crença na obsessão e no mau-olhado, tão amplamente conhecida no Velho Mundo.

Essas conclusões são fortalecidas pelo estudo da literatura de áreas mais restritas. A investigação dos contos de fadas europeus levou à conclusão de que em conteúdo e forma eles abrangem muitas sobrevivências de tempos passados. As teorias de Grimm e as visões de Gomme também se baseiam nessa opinião. É evidente que os contos de fadas europeus modernos não refletem as condições do estado atual nem as condições da nossa vida diária, mas nos dão uma imagem imaginativa da vida rural em tempos semifeudais e, devido às contradições entre o intelectualismo moderno e a antiga tradição rural, ocorrem conflitos de pontos de vista que podem ser interpretados como sobrevivências. Nos contos de povos primitivos é diferente. Uma análise detalhada dos contos tradicionais de várias tribos indígenas mostra completa concordância das condições de vida com aquelas que podem ser abstraídas dos contos. Crenças e costumes na vida e nos contos estão em total acordo. Isso é verdade não apenas para o material nativo antigo, mas também para histórias importadas que foram emprestadas há algum tempo. Elas são rapidamente adaptadas ao modo de vida predominante. A análise dos contos da costa noroeste e dos Pueblos dá o mesmo resultado. Somente durante o período de transição para novos modos de vida, como os trazidos pelo contato com os europeus, ocorrem contradições. Assim acontece que, nos contos de Laguna, um dos Pueblos do Novo México, o visitante sempre entra pelo telhado da casa, embora as casas modernas tenham portas. O chefe da organização cerimonial desempenha um papel importante em muitos contos, embora a própria organização tenha em grande parte desaparecido. Os contos dos índios das planícies ainda falam de caçadas de búfalos, embora a prática tenha desaparecido e o povo tenha se tornado agricultor e trabalhador.

Seria errôneo supor que a ausência de sobrevivências de tempos antigos possa ser explicada pela permanência das condições, pela falta de mudança histórica. A cultura primitiva é um produto do desenvolvimento histórico assim como a civilização moderna. O modo de vida, os costumes e as crenças das tribos primitivas não são estáveis, mas a taxa de mudança, a menos que ocorram perturbações externas, é mais lenta do que entre nós. O que falta é a estratificação social pronunciada de nossos tempos, que faz com que os vários grupos representem, por assim dizer, diferentes períodos de desenvolvimento. Pelo que sei, o pano de fundo cultural e formal da arte narrativa dos povos primitivos é quase totalmente determinado pelo estado cultural atual. As únicas exceções são encontradas em períodos de mudança excepcionalmente rápida ou de desintegração. No entanto, nesse caso também ocorre uma readaptação. Assim, as histórias dos Negros modernos de Angola refletem a cultura mista da costa oeste da África. No pano de fundo cultural da narrativa, as sobrevivências não desempenham um papel importante, pelo menos não em condições normais. A trama pode ser antiga, mas passa por mudanças radicais.

Essas observações relacionadas à literatura não significam, é claro, que em outros aspectos da vida, costumes antigos e crenças não possam persistir por longos períodos.

As diferenças da vida cultural, que se refletem na literatura, têm um efeito de longo alcance não apenas sobre o conteúdo, mas também sobre a forma da narrativa. Os motivos de ação são determinados pelo modo de vida e pelos principais interesses do povo, e as tramas nos dão uma imagem disso.

Em muitos contos típicos dos Chukchee da Sibéria, o tema do conto é a tirania e a arrogância dominante de um caçador ou guerreiro atlético e as tentativas dos aldeões de se libertarem. Entre os Esquimós, um grupo de irmãos frequentemente substitui o valentão da aldeia. Entre ambos os grupos de pessoas que vivem em pequenos assentamentos, sem qualquer organização política rígida, o medo da pessoa mais forte desempenha um papel importante, não importando se seu poder se baseia na força física ou em supostas qualidades sobrenaturais. A história geralmente usa um menino fraco e desprezado como salvador da comunidade. Embora contos de chefes autoritários ocorram entre os índios, eles não são, de forma alguma, um tipo predominante.

O tema principal dos índios da Colúmbia Britânica, cujos pensamentos são quase inteiramente ocupados pelo desejo de obter status e posição elevada em sua comunidade, é o conto de um homem pobre que alcança uma posição elevada ou das lutas entre dois chefes que tentam se superar em feitos que aumentarão seu status social. Entre os Blackfeet, o tema principal é a aquisição de cerimônias, cuja posse e prática são elementos muito importantes em suas vidas.

Todas essas diferenças não são apenas de conteúdo, mas influenciam a forma da narrativa, porque os incidentes são conectados de maneiras diferentes. O mesmo motivo se repete muitas vezes nos contos dos povos primitivos, de modo que uma grande massa de material coletado da mesma tribo pode ser muito monótona e, após atingir um certo ponto, obtemos apenas novas variantes de temas antigos.

No entanto, muito mais fundamentais são as diferenças baseadas em uma visão cultural geral diferente. A mesma história contada por diferentes tribos pode ter uma aparência totalmente diferente. Não apenas o cenário é distinto, a motivação e os pontos principais dos contos são enfatizados de maneiras diferentes por diferentes tribos e adquirem uma coloração local que só pode ser compreendida em relação à cultura como um todo. Um exemplo selecionado entre os contos dos índios da América do Norte ilustrará esse ponto. Escolho a história do marido estelar, que é contada nas pradarias, na Colúmbia Britânica e na costa do Atlântico Norte. As tribos das pradarias contam que duas donzelas saem para cavar raízes e acampar. Elas veem duas estrelas e desejam se casar com elas. Na manhã seguinte, elas se encontram no céu casadas com as estrelas. A elas é proibido cavar certas raízes grandes, mas as jovens desobedecem as ordens de seus maridos e, através de um buraco no chão, veem a terra abaixo. Por meio de uma corda, elas descem. A partir daqui, a história assume formas distintas em diferentes áreas geográficas. Em uma forma, são descritas as aventuras das mulheres após seu retorno; na outra, as proezas da criança que uma delas carrega. O ponto de vista central da mesma história contada pelos índios da Colúmbia Britânica é completamente alterado. As meninas de uma aldeia constroem uma casa onde brincam e, um dia, falam sobre as estrelas, como devem ser felizes por poderem ver o mundo inteiro. Na manhã seguinte, elas acordam no céu, na frente da casa de um grande chefe. A casa é lindamente esculpida e pintada. De repente, vários homens aparecem fingindo abraçar as meninas, mas as matam sugando seus cérebros. Apenas a filha do chefe e sua irmã mais nova são salvas. A irmã mais velha se torna a esposa do chefe das estrelas. Por fim, o chefe as envia de volta com a promessa de ajudá-las sempre que precisarem. Elas encontram a aldeia deserta e o chefe das estrelas envia sua casa e as máscaras e apitos pertencentes a uma cerimônia que se torna propriedade hereditária da família da mulher. O conto termina com a aquisição da casa e da cerimônia, assuntos que são quase o único interesse na vida dos índios. Dessa forma, a história se torna uma das longas séries de contos de importância semelhante, embora o conteúdo pertença a um grupo totalmente distinto.

Como segundo exemplo, menciono a história de Eros e Psiquê, que foi moldada de forma diferente pelos índios Pueblo. Aqui, a antílope aparece na forma de uma donzela. Ela se casa com um jovem a quem é proibido ver a garota. Ele transgride essa ordem e, à luz de uma vela, a vê enquanto ela está dormindo. Imediatamente, a garota e a casa desaparecem e o jovem se encontra na lama de uma antílope.

As transformações das histórias bíblicas também são instrutivas na boca dos nativos. A Dra. Benedict e o Dr. Parsons registraram uma história de natividade dos Zuni em que Jesus aparece como uma garota, filha do sol. Após o nascimento da criança, os animais domésticos a lambem, apenas a mula se recusa a fazê-lo e é punida com a esterilidade. Toda a história foi apresentada de uma nova perspectiva. Ela é feita para explicar a fertilidade dos animais e conta como a fertilidade pode ser aumentada, um pensamento predominante nas mentes dos Pueblos.

De outras maneiras, o interesse da tribo também se reflete no caráter de sua literatura. Um povo que aprecia a beleza a expressará na forma de sua narrativa. Isso explica a diferença de estilo entre alguns contos polinésios, com suas descrições altamente coloridas, e a aridez de muitas tradições indígenas; ou a relativa riqueza dos contos dos Tsimshianos em contraste com os das tribos do Planalto. Deixe-me dar alguns exemplos que ilustram esses pontos. Na coleção de contos havaianos de Fornander, lemos: “Eles admiraram a beleza de sua aparência. Sua pele era como uma banana madura. As pupilas de seus olhos eram como os brotos jovens de uma banana. Seu corpo era reto e sem defeitos e ele não tinha igual.” Na história de Laieikawai, diz-se: “Eu não sou a senhora desta praia. Eu venho do interior, do topo da montanha que está vestida com uma roupa branca.” Seria uma tarefa vã procurar passagens semelhantes na literatura de muitas tribos.

Descrições e metáforas poéticas aparecem com mais frequência em canções. No entanto, elas também não são encontradas em todos os lugares. As canções dos índios do Sudoeste sugerem que os fenômenos da natureza impressionaram profundamente o poeta; mas devemos lembrar que a maioria das metáforas e termos descritivos são determinados ceremonialmente. Como exemplo, dou a seguinte canção do povo Navajo[3]:

“Pelo caminho marcado com pólen, posso caminhar,

Com gafanhotos ao redor dos meus pés, posso caminhar,

Com orvalho ao redor dos meus pés, posso caminhar,

Com beleza, posso caminhar,

Com beleza diante de mim, posso caminhar,

Com beleza atrás de mim, posso caminhar,

Com beleza acima de mim, posso caminhar,

Com beleza abaixo de mim, posso caminhar,

Com beleza ao meu redor, posso caminhar,

Na velhice, vagando por um caminho de beleza, animadamente, posso caminhar,

Na velhice, vagando por um caminho de beleza, vivendo novamente, posso caminhar.

Está completo em beleza.”

De caráter semelhante é a seguinte canção do povo Apache[4]: “No leste, onde a água preta se encontra, está o grande milho, com raízes firmes, seu grande caule, seu fio vermelho, suas folhas longas, seu pendão escuro e expansivo, sobre o qual há o orvalho. No pôr do sol, onde a água amarela se encontra, está a grande abóbora com suas gavinhas, seu caule longo, suas folhas largas, sua parte superior amarela sobre a qual há pólen.”

A seguinte canção dos Pima também tem significado cerimonial[5]:

“Agora o vento começa a cantar;

Agora o vento começa a cantar.

A terra se estende diante de mim,

Diante de mim se estende.

A casa do vento agora está trovejando;

A casa do vento agora está trovejando.

Eu vou rugindo pela terra,

A terra coberta de trovões.

Pelas montanhas ventosas;

Pelas montanhas ventosas,

Veio o vento de pernas inúmeras.

O vento veio correndo para cá.

A Serpente Negra do Vento veio até mim;

A Serpente Negra do Vento veio até mim.

Veio e se envolveu,

Veio aqui correndo com sua canção.”

A conhecida canção dos Esquimós que descreve a beleza da natureza é bem conhecida:

“O grande monte Kunak lá no sul, eu o vejo;

O grande monte Kunak lá no sul, eu o observo;

O brilho radiante lá no sul, eu contemplo.

Fora de Kunak ele está se expandindo,

O mesmo que Kunak em direção ao litoral está completamente cercado.

Veja, lá no sul eles mudam e se transformam.

Veja, lá no sul eles tendem a se embelezar mutuamente,

Enquanto do litoral eles são envolvidos em lençóis que ainda mudam,

Do litoral envolvidos em embelezamento mútuo.”

Diferenças importantes também são encontradas na tendência de unir episódios isolados a uma unidade mais complexa. Em alguns povos, os episódios são breves e anedóticos; em outros, há um desejo de uma estrutura mais complexa. Frequentemente, isso é alcançado pelo dispositivo simples de concentrar todas as anedotas em torno de um único personagem. Mas, em outros casos, há um esforço para estabelecer uma conexão interna entre os contos. Assim, os contos do corvo na Sibéria e no Alasca estão, em sua maioria, conectados apenas pela individualidade do corvo e por sua voracidade. No sul da Colúmbia Britânica, alguns elementos desses contos foram trazidos para uma conexão interna: o Pássaro trovão rouba uma mulher. Para recuperá-la, o corvo faz uma baleia de madeira e mata a goma porque ele precisa dela para calafetar a baleia. Em outro conto, o assassinato da goma é a introdução a uma visita ao céu. Os filhos da goma assassinada ascendem ao céu para se vingar. Entre os índios Pueblo, um grande número de incidentes isolados é combinado em um conto de origem conectado.

Não se deve presumir que o estilo literário de um povo seja uniforme; as formas são frequentemente bastante variadas. A unidade de estilo também não é encontrada na arte decorativa, pois muitos casos podem ser citados em que diferentes estilos são usados em diferentes indústrias ou entre diferentes grupos da população. Da mesma forma, encontramos em uma tribo contos complexos que têm coesão estrutural definida, e anedotas breves; alguns contados com um evidente prazer em detalhes difusos, outros quase reduzidos a uma fórmula. Um exemplo disso são as histórias longas e as fábulas animais dos Esquimós. As primeiras tratam de eventos que ocorrem na sociedade humana, de viagens aventureiras, de encontros com monstros e seres sobrenaturais, de feitos de xamãs. São contos novelísticos. Por outro lado, muitas das fábulas animais são meras fórmulas. Contrastantes semelhantes são encontrados nos contos e fábulas dos Negros.

Os estilos das canções também variam consideravelmente de acordo com a ocasião para a qual são compostas. Entre os Kwakiutl, encontramos longas canções em que a grandeza dos ancestrais é descrita na forma de recitativos. Em festivais religiosos, são usadas canções de estrutura rítmica rígida, acompanhando danças. Nessas canções, as mesmas palavras ou sílabas são faladas repetidamente, exceto que outro nome para o ser sobrenatural em cuja honra é cantada é introduzido em cada nova estrofe. Novamente, de um tipo diferente são as canções de amor, que de forma alguma são raras.

Descobrimos que as literaturas de todos os povos sobre os quais temos informações compartilham uma característica, a forma rítmica; no entanto, em detalhes, há grandes variações; particularmente, algumas formas literárias, como o provérbio e o enigma, que nos parecem os produtos mais naturais da atividade literária, de forma alguma são universais.


[1] Journal of American Folk-Lore, vol. 38 (1925), pp. 329- 339.

[2] A menina tinha um irmão chamado Hlabakoane, a quem ela havia dado um alimento mágico, chamado Kumonngoe, que pertencia a seu pai e que a menina estava proibida de tocar.

[3] Washington Matthews, “Navaho Myths, Prayers and Songs,” University of California Publications, vol. 5, p. 48, linhas 61-73.

[4] P. E. Goddard, “Myths and Tales from the White Mountain Apache,” Anthropological Papers of the American Museum of Natural History, vol. 24 (1910), p. 131.

[5] Henry Rink, Tales and Traditions of the Eskimos (Londres, 1875), p. 68.

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