Você irá ler a seguir um trecho da Introdução às cartas de Cícero em seu Volume IV (e último volume). Caso deseje adquirir este e outros volumes da coleção clique aqui, ou na imagem da capa do livro abaixo.
Introdução
As cartas deste volume nos trazem ao final da correspondência e ao último período da vida de Cícero. Elas naturalmente se dividem em duas partes: aquelas que seguem o assassinato de César até setembro de 44 a.C. – cinco meses de hesitação e dúvida – e aquelas que começam após o retorno de Cícero a Roma, depois de sua frustrada partida para a Grécia (31 de agosto), trazendo-o de volta ativo e ansioso, com todas as dúvidas e hesitações jogadas ao vento. Ele está se esforçando ao máximo para organizar a oposição a Antônio, que agora ele decidiu ser o inimigo da constituição e da liberdade – um César mais fraco e pior, aproveitando-se do nome de seu grande patrono, intoxicado pela riqueza que caiu em suas mãos, e manchado por todos os vícios públicos e privados.
O primeiro período é de desilusão, o segundo de luta desesperada. A desilusão, de fato, começa imediatamente: o volume se inicia com uma nota, de pouco mais de uma linha, endereçada a um dos assassinos, de uma exultação quase histérica. Cícero estava no senado quando o assassinato ocorreu[1]: ele nos conta da “alegria com que encheu os olhos ao ver a justa execução de um tirano.”[2] Ele declara novamente que os Idos de março o consolaram de todos os seus problemas e decepções[3]. Ele chama os assassinos de “heróis” ou quase divindades[4]. Mas a inutilidade desse crime traiçoeiro ficou evidente de imediato e se tornou cada vez mais conspícua a cada dia que se seguiu. Em menos de um mês, Cícero viu que “a constituição não foi restaurada junto com a liberdade”[5] e discutia com Ático de quem era a culpa. Na reunião do senado, convocada por Antônio em 17 de março, os atos de César foram confirmados, e um funeral público foi votado[6]. A manipulação do sentimento popular, causada pela oração fúnebre de Antônio e pela publicação do testamento de César, encorajou Antônio a fazer o uso mais amplo possível da confirmação dos atos, até que Cícero exclamou indignado que a concessão feita às exigências do momento estava sendo “abusada sem moderação ou gratidão,”[7] que “medidas que César jamais teria tomado nem sancionado estão agora sendo extraídas de suas atas forjadas,” e que “nós, que não podíamos suportar ser seus escravos, agora somos os humildes servos de seus livros de memorandos.”[8]
A isso se somava a crescente dificuldade da posição dos líderes do assassinato. Décimo Bruto, de fato, apesar do protesto de Antônio, foi para sua província da Gália Cisalpina e assumiu o comando das tropas de lá; enquanto Trebônio partiu para sua província da Ásia, tendo um entendimento secreto com o partido ciceroniano de que ele deveria coordenar medidas e reunir forças para possíveis contingências futuras. Mas M. Bruto e C. Cássio, embora pretores, não podiam arriscar ir a Roma, e Antônio acabou conseguindo forçar o Senado a nomear outros para as províncias da Macedônia e da Síria, para as quais eles haviam sido respectivamente indicados por César; e Trebônio só pôde deixar a Itália rumo à sua província viajando quase disfarçado por estradas secundárias até a costa[9]. Cada dia que passava parecia mostrar que eles teriam que lutar por sua posição ou mesmo por suas vidas. Antônio estava reunindo uma força considerável em Roma, sob o pretexto de uma guarda pessoal, e contra uma suposta intenção de Bruto e Cássio de recorrer à força. Essa guarda era formada, ao menos em parte, induzindo os veteranos de César a se alistarem novamente, e ela crescia continuamente[10]. Mesmo aqueles veteranos que não se alistaram formalmente foram persuadidos a se manterem prontos para um chamado, com suas armas devidamente preparadas, e ao menos a se prepararem para ir a Roma votar a favor das propostas de Antônio[11]. Além disso, Antônio arrancou do Senado, no início de junho, senão antes, o comando das legiões que haviam sido estacionadas na província da Macedônia com vistas às expedições getas e partas, e logo enviou seu irmão Caio para trazê-las à Itália. Bruto e Cássio, por sua vez, estavam reunindo navios e homens, determinados a se apossar das províncias originalmente designadas a eles (Macedônia e Síria) ao final de seus pretorados; Décimo Bruto, ao engajar suas forças contra as tribos alpinas, estava treinando tropas que poderia usar contra qualquer “sucessor pretendente”[12], e tudo indicava uma luta iminente. “Na minha opinião”, diz Cícero no dia 15 de junho, “o estado das coisas aponta para derramamento de sangue, e em breve. Você vê quem são os homens, você vê como estão se armando.”[13]
As coisas ficaram ainda mais complicadas com o aparecimento do jovem Otaviano no cenário. Ele havia sido enviado por seu tio para passar o inverno em Apolônia, onde poderia, com menos interrupções do que em Roma, continuar seus estudos e aperfeiçoar sua educação militar. Mas, assim que recebeu de sua mãe a notícia do assassinato do ditador, ele partiu com um pequeno séquito de amigos para a Itália. Em 11 de abril, Cícero escreve que ouviu falar de sua chegada e está ansioso para saber como ele foi recebido[14]. No dia 18, ele chegou a Nápoles, viu Balbo e declarou sua aceitação da herança de seu tio-avô, o que certamente causaria, segundo Balbo, muito ressentimento entre ele e Antônio, que havia se apoderado de muito do que Otaviano reivindicaria, alegando que era dinheiro público[15]. Em uma carta de 22 de abril, Cícero descreve um encontro com ele na vila de seu padrasto, Filipos, perto de Puteoli. Ele observou como seus amigos o tratavam. Todos o chamavam de César, em virtude de sua adoção no testamento de seu tio-avô. Mas Filipe – que desejava que ele recusasse a herança – não o fez. Portanto, Cícero também se absteve, mas observou ansiosamente sua disposição em relação ao partido de Antônio. O jovem parece ter sido caracteristicamente cauteloso, falando do estado atual das coisas como “intolerável”, mas sem sugerir suas opiniões sobre a solução ou comprometer-se com qualquer coisa. Cícero estava em dúvida. Ele desconfiava dos amigos ao seu redor, que fariam “impossível para ele ser um bom cidadão”, e sentia-se indignado por ele poder ir com segurança à cidade da qual Bruto, Cássio e os outros “heróis” estavam excluídos. Ainda assim, ele não pôde deixar de reconhecer que Otaviano o tratava pessoalmente com respeito[16], e logo começou a nutrir a esperança de que poderia usar suas queixas contra Antônio para atraí-lo a uma união mais próxima com o partido dos Optimates. Mas essa esperança foi bastante abalada no início de maio pelo relato de um discurso proferido em Roma por Otaviano, no qual ele falava em termos entusiásticos de seu tio-avô, declarava sua intenção de pagar os legados aos cidadãos e celebrar os jogos que ele havia prometido[17]. No entanto, Cícero não desistiu da esperança em relação a ele, e seu veredicto final nesse período é distintamente favorável: “Em Otaviano, como percebi, há não pouca habilidade e espírito, e ele parece ser tão bem-disposto para com nossos heróis quanto eu gostaria. Mas que confiança se pode ter em um homem de sua idade, nome, herança e criação é algo que nos faz hesitar. Seu padrasto, que vi em Ástura, acha que nenhuma. Contudo, devemos incentivá-lo e, se nada mais, mantê-lo afastado de Antônio. Marcelo prestará um serviço admirável se lhe der bons conselhos. Otaviano me pareceu ser devotado a ele, mas ele não tem grande confiança em Pansa e Hírcio. Sua disposição é boa, se ela durar.”[18]
Observa-se que Cícero agora fala do jovem como Otaviano, reconhecendo assim sua adoção. Ele também parece, agora ou logo depois, ter iniciado uma correspondência com ele, infelizmente perdida, que mais tarde se tornaria quase mais contínua do que ele realmente gostaria. Por enquanto, Otaviano era apenas um dos agentes que ele esperava usar contra Antônio. Como muitas de suas esperanças, essa também estava condenada ao fracasso. Otaviano estava determinado a manter seus direitos contra Antônio, mas em seu coração não havia pensamento de amizade permanente com o grupo que havia assassinado seu tio e pai adotivo, e que estava ansioso, acima de tudo, para manter o controle do estado e da riqueza das províncias em suas mãos.
Outra causa de preocupação que Cícero teve na primeira metade do ano foi a incerteza quanto à linha que Pansa e Hírcio provavelmente seguiriam, pois eles eram cônsules designados e assumiriam o cargo em 1º de janeiro de 43 a.C. Em relação a Hírcio, especialmente, que havia sido amigo íntimo e oficial de confiança de César, Cícero estava mais do que em dúvida. Era verdade que ele tinha boas relações sociais com Cícero, havia tido aulas de retórica com ele e, em troca, o havia iniciado na arte dos banquetes. Mas ao final de uma visita de Hírcio à sua vila em Puteoli, Cícero escreve a Ático (17 de maio): “Quando Hírcio estava saindo de minha casa em Puteoli, no dia 16 de maio, eu tive uma visão clara de toda a sua mente. Pois eu o chamei de lado e o exortei seriamente a preservar a paz. Ele, é claro, não poderia dizer que não desejava a paz, mas indicou que temia tanto que o nosso lado recorresse às armas quanto que Antônio o fizesse; e que, afinal, ambos os lados tinham motivos para ficarem em alerta, mas que ele temia as armas de ambos. Não preciso continuar: não há nada de sólido nele.”[19]
Essa desconfiança em relação a Hírcio não foi muito aliviada por uma carta que ele escreveu a Cícero alguns dias depois, pedindo-lhe que advertisse Bruto e Cássio a manterem-se quietos[20]. Pansa, embora usasse uma linguagem mais satisfatória, não parecia ser muito mais confiável para Cícero[21]. Uma doença grave afastou Hírcio por algum tempo da intervenção ativa na política, mas a futura posse do consulado por esses dois homens não inspirava muita esperança a Cícero na primeira metade do ano. Ainda assim, não parecia ser tão ruim quanto a política de Antônio; e quando a reunião do senado de 1º de junho, longe de produzir um compromisso que satisfizesse Bruto e Cássio, na verdade os irritou ainda mais, oferecendo-lhes pelo restante do ano o cargo inferior de curatores annonae e mudando suas províncias pretorianas para o ano seguinte, Cícero só podia esperar pelo 1º de janeiro, quando poderia ser apropriado para ele comparecer ao senado e voltar a participar da política. Enquanto isso, ele estava meditando uma viagem a Atenas, tanto para se afastar de possíveis conflitos com Antônio, quanto para visitar seu filho, cujo primeiro ano como estudante lá havia causado muita ansiedade a Cícero, mas que agora mostrava sinais de melhora, e poderia ser confirmado em melhores hábitos pela influência pessoal de um pai indulgente.
Mas, como de costume com Cícero, esse passo lhe causou muitas reflexões e semanas de hesitação e indecisão. Também como de costume, todas as suas dúvidas e dificuldades foram compartilhadas com Ático, cujo conselho era constantemente solicitado e, de forma um tanto queixosa, criticado quando dado. Cícero estava dividido entre a ideia de que uma partida da Itália naquele momento poderia ser vista como uma deserção de seu partido e de seu país, e o temor de que, em sua ausência, algum golpe fosse desferido em nome da liberdade, e ele lamentaria não compartilhar do crédito. Por outro lado, enquanto Antônio fosse cônsul, as coisas provavelmente permaneceriam como estavam, e ele estaria pessoalmente mais seguro fora do país, além de cumprir seu dever ao visitar seu filho. Contudo, ele era um péssimo marinheiro, e a longa viagem lhe parecia odiosa, especialmente uma que teria de ser feita no final do ano, caso ele quisesse estar de volta a Roma antes do início do novo consulado. Além disso, ele gostaria de viajar com Bruto; mas Bruto a estava adiando indefinidamente e, além disso, não recebeu a sugestão com muito entusiasmo. Após uma partida frustrada (1º de agosto), em que chegou até Siracusa, ele novamente zarpa de Leucópetra no dia 6 de agosto. No entanto, o vento sul estava muito forte e o navio voltou para Régio[22].
Lá, Cícero ficou na vila de um amigo por uma noite e, no dia seguinte, ouviu o que considerava ser boas notícias[23]. Haveria uma reunião completa do senado em 1º de setembro, pois Bruto e Cássio – ainda na Itália – haviam emitido um edital incentivando a participação de seus partidários, e acreditava-se que eles haviam chegado a algum entendimento com Antônio, o que lhes permitiria retomar suas posições em Roma e assumir suas províncias ao final de seu ano como pretores. Os homens que informaram Cícero também lhe disseram que sua presença era necessária, e que sua ausência estava sendo criticada negativamente[24].
Isso era exatamente o que Cícero queria ouvir, e podemos ter certeza de que ele não fez muitas perguntas sobre a autenticidade do relato ou sobre os meios pelos quais seus informantes sabiam da verdade. Ele se considerava “reconvocado pela voz da República” e agradeceu aos ventos do sul por tê-lo salvado de abandonar seu país em momento de necessidade. Ele visitou Bruto em Vélia a caminho de Roma, e sem dúvida ouviu dele algo que esfriou um pouco seu entusiasmo. No entanto, ele decidiu continuar seu retorno a Túsculo, embora sem nenhuma intenção definida de assumir um papel de destaque na política, ou mesmo de comparecer ao senado. Mas o estado de coisas que ele encontrou em Roma ao chegar em 31 de agosto logo dissipou qualquer ideia de repouso e o arrastou para a tempestade final de lutas políticas, das quais ele não estava livre quando a correspondência cessou, e que finalmente o levou à sepultura.
A reunião do senado em 1º de setembro, pela qual Cícero alegou ter ido a Roma, não foi por ele assistida. Entre os itens da pauta dessa reunião, ele descobriu que havia uma moção de Antônio para uma supplicatio em honra à memória de César. Cícero, naturalmente, se opôs a isso por motivos políticos, mas também levantou uma objeção técnica: estava sendo confundidos ritos fúnebres com culto divino (parentalia com supplicationes). De qualquer forma, ele estava determinado a não votar a favor e não queria exasperar Antônio votando contra[25]. Também haveria uma confirmação adicional dos atos de César, igualmente inaceitável aos olhos de Cícero, pois significava a apresentação de mais memorandos e notas de César, que ele acreditava terem sido falsificados ou completamente inventados pelo próprio Antônio. Ele, portanto, absteve-se de comparecer ao senado, mas não conseguiu evitar exasperar Antônio com isso. Sua chegada a Roma, naturalmente, foi conhecida por Antônio, que considerou sua desculpa de cansaço após a viagem como mero pretexto (o que de fato era) e ameaçou abertamente no senado não apenas usar seu poder consular para obrigar Cícero a comparecer, mas também enviar um grupo de trabalhadores para demolir sua casa.
Assim, no dia 2 de setembro, Cícero compareceu e fez uma declaração sobre sua posição e seus pontos de vista, que chegou até nós como a Primeira Filípica. É uma declaração digna e comparativamente gentil de seu caso contra Antônio. Mas deixa clara sua crença quanto ao abuso por parte de Antônio da confirmação dos atos de César, aprovada pelo senado em 17 de março. Cícero recorda as próprias medidas de Antônio que ele havia aprovado – especialmente a abolição da ditadura e a supressão dos tumultos em torno da coluna memorial – e apela para que Antônio permaneça dentro dos limites da constituição, confiando no afeto, e não no medo, de seus concidadãos. Há uma ausência de ataques e insultos pessoais, o que mostra que Cícero ainda não estava disposto a se lançar por completo em sua luta contra Antônio, embora já há muito tivesse percebido que a existência de Antônio tornava o assassinato de César vão e inútil. O tirano estava morto, mas a tirania não; os assassinos haviam agido com a coragem de heróis, mas com a tolice de crianças, e deixaram vivo o herdeiro da tirania[26]. Ainda assim, Cícero manteve relações relativamente corteses com Antônio, chegando até a pedir-lhe uma legatio[27]. Mas isso logo terminaria para sempre.
A resposta de Antônio à Primeira Filípica, proferida após muita preparação em 19 de setembro, e que continha todo tipo de ataques à vida, à política e à conduta pública de Cícero, gerou a terrível Segunda Filípica de Cícero, que, embora nunca tenha sido proferida, foi amplamente distribuída entre todos que quisessem lê-la. Ela tornou qualquer reconciliação, fosse formal ou oficial, para sempre impossível. A partir de então, as cartas nos mostram Cícero em oposição determinada e inabalável a Antônio. Ainda por algumas semanas, ele permanece incerto sobre quais passos práticos tomar, mas não tem mais hesitação quanto ao seu objetivo político: esmagar Antônio por todos e quaisquer meios ao seu alcance. As cartas, a partir de então, são cada vez mais exclusivamente políticas. Embora ainda haja referências a assuntos privados e a questões literárias relacionadas ao De Officiis, até mesmo essas são quase monopolizadas pelo único assunto que importava. Cícero ainda expressa gratidão à filosofia, “que não só me desvia de pensamentos ansiosos, mas também me arma contra todos os ataques da fortuna”[28] – mas a literatura e a filosofia no sentido antigo estão acabadas para ele. E quando, por um momento, ele toca em assuntos mais leves ao escrever a Peto[29], ele se apressa em se desculpar: “Não pense que porque escrevo de forma jocosa eu me desvencilhei de toda preocupação com o estado. Esteja certo, meu caro Peto, de que eu não trabalho por nada, não me importo com nada o dia todo e a noite toda, exceto pela segurança e a liberdade de meus concidadãos.”
O passo final por parte de Antônio que tornou a guerra inevitável, na visão de Cícero, estava relacionado com as seis legiões macedônicas. Ele havia, como já mencionei, obtido no início do ano do senado o comando dessas legiões sob o pretexto de que os getas estavam ameaçando a Macedônia. Ele entregou uma dessas legiões ao seu colega Dolabela, uma deveria ficar para proteger a Macedônia, que ele pretendia que fosse governada por seu irmão Caio ao final de sua pretoria. As outras quatro ele considerava estarem à sua disposição para o governo provincial, que começaria em janeiro de 43 a.C. Ele então resolveu que essa província seria a Gália Cisalpina. O senado recusou-se a lhe atribuir essa província, mas ele a obteve por meio de uma lex aprovada apesar da oposição do senado; e Caio foi enviado para trazer as legiões. No dia 9 de outubro, ele partiu para encontrá-las em Brundísio[30]. Lá, ele as encontrou em estado de motim e recorreu a uma severidade extrema para reduzi-las à obediência. Duas delas, a legião Márcia e a quarta legião, foram ordenadas a marchar pela estrada costeira até Ariminum, em preparação para entrar na Gália Cisalpina com ele; as restantes ele liderou em direção a Roma, acampando em Tíbur.
Em resposta a essa medida, Otaviano, que agora estava em constante comunicação com Cícero, começou por sua própria autoridade, e às suas próprias custas, a recrutar tropas entre os veteranos na Campânia. Ele teve muito sucesso, “e não é de se admirar,” diz Cícero, “pois ele oferece uma gratificação de 500 denários por cabeça.”[31] Cícero, então em Puteolos, inicialmente teve sérias dúvidas quanto aos efeitos dessa ação. Ele não tinha certeza das verdadeiras intenções de Otaviano, desconfiava de sua juventude e de seu nome, mas ainda assim estava inclinado a aceitar sua ajuda e ajudá-lo a obter a sanção do senado[32]. Pouco depois, tendo terminado seu De Officiis, ele começou uma viagem tranquila para Arpino e, de lá, para Túsculo. Ele concorda com a sugestão de Ático de que “se Otaviano obtiver muito poder, os acta de César serão confirmados de maneira mais decisiva do que foram no templo de Telo”, mas, ao mesmo tempo, percebe que “se ele for derrotado, Antônio se tornará intolerável”[33]. No entanto, os eventos logo deixaram Cícero sem escolha. A quarta legião e a legião Márcia, em vez de irem para Ariminum, como ordenado, desviaram-se para Alba Fucentia e fecharam seus portões. Antônio, que nesse meio tempo havia chegado a Roma e convocado uma reunião do senado para o dia 23 de novembro, soube disso e apressou-se para Alba Fucentia a fim de recuperar a lealdade das legiões, mas foi repelido das muralhas da cidade por uma chuva de pedras. Ele então retornou a Roma, realizou apressadamente a reunião do senado adiada, na qual foi realizada um sorteio que atribuiu a Macedônia a Caio Antônio, e em seguida juntou-se ao seu próprio acampamento em Tíbur. A legião Márcia e a quarta legião logo declararam sua adesão a Otaviano, que, agora reforçado, marchou nos calcanhares de Antônio em direção ao norte, rumo a Ariminum.
Cícero chegou a Roma no dia 9 de dezembro[34], um dia antes da posse dos novos tribunos, um dos quais era Casca, o tiranicida. A situação do Império em relação ao governo das províncias era a seguinte: a Hispânia Ulterior (Bética) estava nas mãos de Pólio, a Gália Narbonense e a Hispânia Citerior estavam sob o controle de Lépido, e o restante da Gália Transalpina estava nas mãos de Planco. Não estava claro de que lado esses três homens tomariam partido, e Cícero estava em constante correspondência com eles, instando-os a permanecer leais ao senado. A África estava nas mãos de Cornifício, cuja lealdade era certa. Caio Antônio estava a caminho para assumir a Macedônia. Trebônio, um forte aliado de Cícero, estava no controle da Ásia; Dolabela – cujos sentimentos eram incertos – estava a caminho da Síria; enquanto Marco Bruto e Cássio também estavam a caminho, o primeiro com a intenção de disputar o controle da Macedônia com Caio Antônio, o segundo com o objetivo de substituir Dolabela na Síria.
No entanto, o ponto imediato em que a guerra parecia certa era a Gália Cisalpina. Lá, Décimo Bruto havia sido governador desde abril, e restava saber se ele reconheceria a validade da lei que nomeava Antônio como seu sucessor. Essa questão foi resolvida com a publicação de seu edital em Roma no dia 19 de dezembro, no qual proibia qualquer pessoa com imperium de entrar em sua província[35]. Mas, a essa altura, Antônio já estava prestes a cercá-lo em Mutina, e Otaviano a caminho para socorrê-lo. Esse era o estado das coisas quando os tribunos convocaram uma reunião do senado no dia 20, na qual Casca apresentou aos senadores a situação da República. Foi proposta e aprovada uma moção por Cícero, dando aos cônsules eleitos autoridade para proteger o senado em sua reunião de 1º de janeiro, e ordenando que todos os governadores de províncias permanecessem em seus cargos até que o senado nomeasse sucessores; aprovando o edital de Décimo Bruto; e elogiando formalmente as ações de Otaviano, da quarta legião e da legião Márcia. O discurso de Cícero é o que agora chamamos de Terceira Filípica, e o decreto do senado foi explicado ao povo em uma contio, agora chamada de Quarta Filípica.
O leitor das cartas, em combinação com as demais Filípicas, agora poderá acompanhar o curso dos eventos quase passo a passo: as negociações infrutíferas com Antônio, a autoridade e o posto concedidos a Otaviano, a derrota de Antônio em Mutina, sua retirada magistral através dos Alpes Marítimos até Vada, a perseguição vã por parte de Décimo Bruto, seu reforço por Ventídio Basso e a traição de Lépido, que, após algumas semanas de hesitação, uniu suas forças a ele. Ali, também, verá prenunciada, embora não completada, a traição semelhante de Planco e de Pólio, a futura destruição de Décimo Bruto e o desdobramento da verdadeira política de Otaviano em relação aos Optimates. No Oriente, encontrará M. Bruto dominando a Macedônia, com Caio Antônio prisioneiro em seu acampamento; Trebônio sendo morto em sua província da Ásia por Dolabela, e Dolabela sendo lentamente, mas de forma segura, encurralado por Cássio. A derrota de Antônio em Fórum Gallorum e Mutina (13 e 15 de abril) foi o prelúdio de uma série de amargas decepções para Cícero. Quando o relatório chegou a Roma, ele e seu partido acreditavam confiantemente que a guerra havia terminado, que Antônio estava completamente derrotado, que a antiga liberdade estava restaurada. Essa exultação foi muito pouco abalada pela notícia subsequente de que ambos os cônsules haviam caído. Expressões decentes de pesar e votos elogiosos em sua honra pareciam tudo o que era necessário. No entanto, despacho após despacho de Décimo Bruto revelava o quão pouco havia sido realmente alcançado e quão forte Antônio ainda era. Cícero, cuja energia ainda não havia se abatido, voltou-se com entusiasmo frenético para a tarefa de induzir Lépido e Planco a permanecerem leais ao senado; e, como uma última esperança, persuadir Bruto e Cássio de que era seu dever voltar à Itália com seus exércitos vitoriosos e proteger Roma de Antônio. A correspondência mostra Cícero ainda esperançoso e ansioso, antes de Planco ter declarado apoio a Antônio, ou de Décimo Bruto ter sido finalmente derrotado; e antes que ficasse evidente que Otaviano pretendia voltar-se contra o senado, sob cuja autoridade ele vinha agindo.
Mas, dentro de um mês a partir da data em que a correspondência termina, Cícero soube que sua última chance havia se esgotado. A inação de Otaviano após a vitória em Fórum Gallorum perplexava Décimo Bruto, Planco e Cícero quase igualmente. Ele se recusou a entregar qualquer legião a Décimo Bruto ou a se juntar a ele na perseguição a Antônio; mas também não cometeu nenhum ato de hostilidade direta contra ele. No entanto, havia rumores sinistros. Um epigrama de Cícero, no sentido de que o jovem deveria ser “elogiado, promovido e – despachado;” teria sido divulgado para Otaviano, que respondeu que não tinha a intenção de ser despachado. Outros relatos afirmavam que a ferida de Pansa havia sido envenenada por seu médico sob sugestão de Otaviano. Outros ainda alegavam que ele estava negociando com Cícero, com o objetivo de ocupar o consulado como colega[36]. Tudo o que se sabia com certeza era que ele estava mantendo toda sua força sob controle e não mostrava sinais de intenção de renunciar ao seu comando. Decretos sucessivos do senado haviam-lhe conferido o imperium, o posto de pretor, e depois o de cônsul, além de lhe conceder o privilégio de se candidatar ao consulado muito antes da idade legal. Mas, após a vitória em Fórum Gallorum, o tom do senado em relação a ele mudou. Seu nome foi ostensivamente omitido no voto de agradecimento ao exército, e quando alguns de seus oficiais apareceram no senado com um pedido formal para serem autorizados a se candidatar ao consulado imediatamente, o pedido foi rejeitado. O senado confiou a proteção a duas legiões que estavam sendo enviadas da África por Cornifício; mas Otaviano partiu imediatamente para Roma pessoalmente à frente de seu exército. Não havia tropas entre ele e Roma, ou em Roma, para resisti-lo. As legiões da África chegaram de fato quase ao mesmo tempo que ele, mas seus oficiais quase imediatamente se entregaram a ele. Cornuto, o pretor urbano, cometeu suicídio em desespero, e o senado e a cidade estavam igualmente à sua disposição. Cícero, entre outros, teve que fazer uma submissão um tanto lamentável, e após uma tentativa de organizar uma oposição, com base em um falso relatório de que a legião Márcia e a quarta legião haviam desertado Otaviano, ele se retirou para Túsculo e desapareceu da vida pública.
A única questão para ele e seu irmão agora era se eles seriam autorizados a viver sem ser molestados em uma posição privada. Otaviano logo deixou claro que pretendia punir implacavelmente os assassinos de seu tio. Ele foi eleito cônsul no dia 19 de agosto com seu primo Q. Pédio. Sob sua direção, Pédio apresentou uma lei condenando todos os assassinos de César, e o tribuno Casca foi a primeira vítima sob essa lei. A lei não atingia Cícero pessoalmente, mas eventos rapidamente se seguiram que tornaram sua morte certa. O que Otaviano tinha agora que enfrentar era a força reunida na Gália. Naquela época, Antônio havia sido unido não apenas por Lépido, mas também por Planco da Gália Celta e por Pólio da Bética. Ele, portanto, tinha uma força formidável. Décimo Bruto agora era um homem condenado e estava além de totalmente impotente; pois quando Planco se uniu a Antônio, quase todas as tropas de Décimo Bruto fizeram o mesmo. Ele estava quase sozinho e fazia esforços desesperados para encontrar seu caminho até Marco Bruto na Macedônia. Assim, quando Otaviano, deixando o cuidado da cidade para Pédio, partiu novamente para o norte, embora seu objetivo fosse nominalmente esmagar Décimo Bruto, ele não tinha nada a fazer além de impedir que ele chegasse a Ravena e forçá-lo a voltar para a Gália, onde foi preso e executado por ordem de Antônio. A verdadeira questão para Otaviano era como lidar com Antônio. Ele havia decidido chegar a um acordo com ele, e após uma certa quantidade de negociações, encontrou-se com ele e Lépido em uma pequena ilha em um dos afluentes do Pó, não longe de Bonônia, e concordou em compartilhar o Império como “triúnviros para a reconstituição do estado”. Eles seriam nomeados por cinco anos e, como preliminar, deveriam elaborar uma lista mutuamente acordada de homens que seriam declarados fora da lei e passíveis de serem mortos imediatamente. O obediente povo de Roma votou, portanto, a nomeação no dia 27 de novembro, e o primeiro exercício de seus poderes ditatoriais foi a publicação de um édito e uma lista provisória de homens a serem assim “proscritos”. A primeira lista havia sido enviada a Pédio antes da publicação real do édito[37], e Cícero, que estava em Túsculo, logo soube que seu próprio nome e os de seu irmão e sobrinho estavam nela. A última cena será contada com as palavras de Plutarco.
Enquanto a conferência entre os triúnviros estava em andamento, Cícero estava em sua vila em Túsculo com seu irmão. Quando souberam da proscrição, resolveram se deslocar para sua vila à beira-mar em Astura e, a partir de lá, embarcar para se unir a Bruto na Macedônia, pois havia grandes notícias sobre seu sucesso ali. Eles viajaram em liteiras, dominados pela angústia; e sempre que havia uma parada na jornada, as duas liteiras eram colocadas lado a lado e os irmãos misturavam suas lamentações. Quinto era o mais abatido dos dois e estava atormentado pela ideia da falta de dinheiro, pois disse que não havia trazido nada com ele, e o próprio Cícero estava mal preparado para a viagem. Assim, ele pensava que seria melhor Cícero precedê-lo em sua fuga, enquanto ele voltava para casa, recolhia o necessário e o seguia apressadamente. Esse curso foi decidido, e os irmãos se separaram com abraços e lágrimas. Poucos dias depois, Quinto foi traído por seus escravos e foi morto com seu filho. Mas Cícero chegou a Astura, encontrou um navio, embarcou e navegou com um vento favorável até Circei. Os pilotos quiseram sair para o mar daquele lugar imediatamente, mas, seja porque temia o mar ou ainda não havia desistido completamente da promessa de Otaviano, ele desembarcou e viajou cem estádios pela estrada até Roma. Mas, mais uma vez, quase fora de si com angústia e indecisão, voltou à costa em Astura e passou a noite em reflexões aterrorizadas e desesperadas. Uma de suas ideias era ir à casa de Otaviano disfarçado e se matar no altar da lareira, trazendo assim uma maldição sobre ele. Mas, também com receio de ser torturado, ele desistiu dessa viagem; e com a mente ainda atordoada por planos confusos e contraditórios, entregou-se aos seus servos para ser transportado por mar para Caieta, onde possuía propriedades e um agradável retiro de verão, quando os ventos etésios estão mais agradáveis. Nesse local, há um templo de Apolo logo acima do mar: dele, um bando de corvos se levantou e voou em direção ao navio de Cícero enquanto ele estava sendo remado para a terra, e pousando nos braços do mastro de ambos os lados, alguns começaram a emitir gritos altos e outros a bicar as extremidades das cordas. Todos consideraram isso um mau presságio. Cícero, no entanto, desembarcou e foi para a casa e deitou-se para descansar. Mas a maioria dos corvos pousou ao redor da janela, emitindo gritos de angústia, e um deles se acomodou na cama, onde Cícero estava deitado com a cabeça coberta, e gradualmente puxou a coberta do seu rosto com o bico. Os servos, vendo isso, acharam que seriam verdadeiramente indignos se suportassem ser espectadores do assassinato de seu mestre, e não fizessem nada para protegê-lo, enquanto até os animais o ajudavam e simpatizavam com sua desventura imerecida; assim, em parte por súplicas e em parte por coação, conseguiram colocá-lo novamente em sua liteira e começaram a levá-lo para o mar.
Enquanto isso, os executores chegaram, Herênio, o centurião, e Pópilo, o tribuno militar (a quem ele havia defendido uma vez em uma acusação de parricídio), com seus acompanhantes. Encontrando as portas trancadas, eles arrombaram a casa; mas, quando Cícero não foi encontrado e aqueles dentro da casa negaram saber qualquer coisa sobre ele, diz-se que um jovem chamado Filólogo – um liberto de Quinto, que Cícero havia educado em conhecimentos refinados e filosofia – informou o tribuno sobre a liteira que estava sendo transportada por caminhos arborizados e sombreados em direção ao mar. Então, o tribuno, levando um pequeno grupo com ele, correu para a entrada dos terrenos, enquanto Herênio descia pelo caminho. Cícero percebeu a aproximação e ordenou a seus servos que colocassem a liteira no chão. Cícero, com a mão esquerda apoiada no queixo como de costume, sentou-se olhando fixamente para os executores, desarrumado, com os cabelos em desalinho, e a testa franzida com suas ansiedades. Era mais do que os presentes podiam suportar, e eles cobriram os rostos enquanto Herênio o matava, ao empurrar sua cabeça para fora da liteira e receber o golpe. Ele estava no seu sexagésimo quarto ano. Por ordem de Antônio, o homem cortou sua cabeça e as mãos com as quais ele havia escrito as Filípicas!”[38]
O caráter e os objetivos de Cícero terão sido amplamente ilustrados para o leitor dessas cartas. É natural que controvérsias se formem em torno de sua memória, algo que sempre acontece com alguém que participa ativamente da vida política. Inimizades e suas expressões em ataques são, para muitos, mais interessantes do que os elogios, e, portanto, mais duradouras. Além disso, é fácil encontrar falhas em um caráter tão impulsivo, multifacetado e complexo quanto o de Cícero. Mas a visão que considero inadmissível é a mommseniana de puro desprezo. Talvez Cícero não tenha sido uma figura tão importante na política romana quanto ele mesmo pensava; mas que ele não teve importância é refutado tanto pelo afeto de seus amigos quanto pelo rancor de seus inimigos. Se ele faltou originalidade como escritor ou filósofo, também não fez questão de aparentar alguma. Ele desejava interpretar os filósofos gregos para seus compatriotas: fez isso imperfeitamente, mas fez isso de uma maneira que ninguém mais poderia ou fez. A magia do estilo encontrou seu caminho para a inteligência e o gosto da humanidade, como muitos homens mais eruditos e precisos falharam e falharam em fazer. Ele compôs discursos que muitas vezes são injustos, exagerados e desonestos, mas que permanecem entre os melhores do mundo. Ele escreveu cartas incessantemente: às vezes insinceras, às vezes fracas e cansativas, mas, tomadas em conjunto, mal são superadas por qualquer coleção existente. O Senhor E. Masè-Dari[39] recentemente escreveu um volume que tende a lançar dúvidas sobre sua pureza financeira, especialmente em sua administração da Cilícia. O esforço é, a meu ver, um fracasso; e embora Cícero fosse um homem habitualmente confuso em relação a dinheiro, parece que o sistema romano de investimento – de empréstimos curtos e dinheiro de acomodação – é mais responsável por isso do que extravagância pessoal ou contração imprudente de dívidas. Na política, ele sem dúvida cometeu o erro de confiar nos líderes do lado perdedor. Mas foi realmente porque acreditava que o lado deles era o lado da justiça e do direito. Ele não tinha objetivo pessoal na escolha, além das vantagens que compartilharia com todos os seus concidadãos e o desejo primordial de ser permitido viver e desfrutar da posição à qual seus talentos o haviam elevado. Sua vacilação nunca está em sua convicção sobre o certo e o errado, mas sim na sua faculdade inata de ver todos os lados de uma questão e todas as contingências possíveis. Para um temperamento nervoso como o dele, era impossível que os perigos para ele e sua família não aparecessem grandes diante de seus olhos. Mas, quando chegou a hora de agir, ele geralmente demonstrava muito mais resolução do que sua própria linguagem nos permite esperar. Se tivéssemos tanta autorrevelação dos outros homens de sua época quanto temos dele, provavelmente encontraríamos não menos vacilação e certamente nenhuma maior consciência. Suas expressões quase selvagens de alegria com o assassinato de César não apresentam seu caráter de uma maneira amável. Mas, para ele, César havia arruinado o estado. A constituição precisava de reforma: César a havia destruído. A vida social e política precisava de purificação: César havia usado alguns dos membros mais depravados da sociedade para acabar com toda a liberdade política e social. Isso pode não ser o verdadeiro estado das coisas como o vemos, mas é o que Cícero viu e acreditou. César era um tirano. Mesmo quando fazia o bem, o fazia da maneira errada, e não podia dar garantia de que não seria totalmente desfeito por um sucessor. A única garantia para a justiça era um governo respeitador da lei e constitucional, e isso César tornara para sempre impossível. Por uma convenção tão antiga quanto a República, o “linchamento” era a punição adequada para um homem que se erguia como rei, e isso César havia feito na prática, e quase até mesmo em nome.
Os últimos meses da vida de Cícero não são maculados pelas vacilações de períodos anteriores. A partir de 1º de setembro de 44 a.C., seu objetivo é único e contínuo. Ele estava decidido a resistir até a morte à tentativa de perpetuar o cesarismo após a morte de César e a usar todos os seus poderes de eloquência e persuasão para incitar o partido lealista a fazer uma defesa pela liberdade. E, quando uma após a outra suas esperanças falharam e seus apoios se desintegraram, ele enfrentou a morte com uma coragem que não traiu sua vida e sua filosofia.
Correspondentes de Cicero
Além de Ático, que ainda ocupa uma parte considerável da correspondência, a maioria das cartas nesses últimos meses é endereçada a Planco, Décimo Bruto, Lépido, Cássio e Marco Bruto. Há uma para Antônio, posteriormente citada por ele contra Cícero no Senado, e algumas poucas para Dolabela.
Marco Antônio
Este não é o momento apropriado para uma avaliação final do caráter de Antônio, pois o teste de seu verdadeiro valor como estadista e governante ocorreu no período seguinte à morte de Cícero. No entanto, apesar dos preconceitos pessoais, Cícero não parece ter feito uma avaliação equivocada dele. Em 51 a.C., ele havia previsto que Antônio e seus irmãos provavelmente seriam figuras importantes na era cesariana e havia advertido seu amigo Termo para não ofendê-los[40].
Marco Antônio havia passado pelo circuito oficial regular. Ele serviu com Gabínio na Síria e no Egito (57-56 a.C.), foi questor e legado de Júlio César na Gália (54-52 a.C.) e foi um dos tribunos de 50-49 a.C. que vetou a fatal proposta de janeiro de 49 a.C. para o retorno de César. A partir desse ponto, sua grandeza começou. Após a fuga de Pompeu e a partida de César para a Hispânia, ele ficou encarregado da Itália com o posto de propretor. Em 48 a.C., ele se juntou a César na Etólia com reforços, lutou em Farsalos e foi enviado de volta após a vitória para retomar a administração de Roma e da Itália; e quando César foi nomeado Ditador em 47 a.C., Antônio foi nomeado seu Mestre dos Cavalos. Até então, sua energia e coragem o colocaram na linha de frente dos jovens oficiais de César. Mas a partir desse momento, suas fraquezas, assim como suas forças, começaram a se manifestar. Ele não teve sucesso em seu governo em Roma durante a ausência de César em Alexandria, e os distúrbios que cresceram a níveis perigosos sob sua administração, tanto na cidade quanto entre as legiões veteranas, foram apenas suprimidos pelo retorno do Ditador. Seus excessos selvagens parecem ter contribuído para enfraquecer sua influência, e suas dificuldades financeiras, pelo menos em parte atribuíveis a esses excessos, fizeram com que ele tentasse aliviá-las lidando com propriedades confiscadas de uma forma que entrou em colisão com César. Uma frieza parece ter surgido entre eles, e Lépido assumiu seu lugar como Mestre dos Cavalos. Mas essa frieza, seja qual for sua natureza e causa, desapareceu com o retorno de César da Hispânia em 45 a.C., e Antônio foi nomeado cônsul como colega de César para 44 a.C. Apesar dos ataques de Cícero contra ele nos últimos meses da vida do orador, Antônio não parece tê-lo tratado com desrespeito pessoal ou dureza: e isso Cícero frequentemente reconhece, escandalizado como estava com sua conduta enquanto estava encarregado da Itália. De fato, ele não era cruel por natureza, capaz de afeto genuíno e até mesmo paixão (ele acabou, como todos sabemos, trocando o mundo pelo sorriso de uma mulher), era de bom caráter e afável tanto em aparência quanto em estilo de fala e escrita. Mas, apesar de algumas qualidades amáveis, ele carecia de virtudes. Em um governante, a indulgência bondosa para com os seguidores muitas vezes significa sofrimento para os governados. Em um competidor pelo império, a galanteria imprudente, por si só, não se compara ao autocontrole e à astúcia. No final, o jovem impassível, a quem encontramos tratando com certo desdém, superou-o e o venceu na busca pelo favor popular, e finalmente até mesmo na guerra. Nessas cartas, apesar da hostilidade, aprendemos sobre o que talvez tenha sido sua maior conquista militar, sua retirada magistral de Mutina e sua reorganização na Gália Narbonense.
P. Cornélio Dolabela
Dolabela está em um plano muito inferior ao de Antônio e não mereceria muita atenção se não fosse por sua conexão peculiar com Cícero. Ele era um dos jovens nobres mais extravagantes e desregrados da época, mas aparentemente possuía alguma habilidade oratória. Como era a moda da época, ele confiava nessa habilidade para conseguir cargos e meios para escapar de seus embaraços, e, para fazer um nome como orador e homem de negócios, começou uma acusação contra um homem de alta posição por malversação em sua província. A pessoa que ele selecionou foi Ápio Cláudio, predecessor de Cícero na Cilícia. Isso acabou sendo particularmente inconveniente para Cícero, que, além de desejar manter boas relações com Cláudio, descobriu que, exatamente na época em que a acusação deveria começar (no início de 50 a.C.), sua esposa havia consentido com o casamento de Dolabela com Túlia. Não está muito claro quais eram as opiniões de Cícero sobre o assunto. Ele foi consultado e escreveu para Terência deixando o assunto em suas mãos. No entanto, quando descobriu que o casamento já havia ocorrido, ficou bastante aborrecido, especialmente porque, enquanto isso, havia sido visitado por Tibério Nero com uma proposta para a mão de Túlia, e teria preferido ele. O casamento, no entanto, havia acontecido, e ele foi obrigado a se conformar com a situação, consolando-se em 50-49 a.C. com a reflexão de que, como Dolabela tomou o lado de César na Guerra Civil, ele poderia proteger a família de sua esposa, o que talvez tenha se concretizado. Mas o casamento não foi feliz, devido ao comportamento grosseiro de Dolabela, e Cícero não tinha razões para aprovar a conduta pública de seu genro. Ele foi tribuno em 47 a.C., enquanto César estava em Alexandria, e causou muito alvoroço em Roma ao propor uma lei para a abolição das dívidas. Embora sua conduta tenha sido condescendida por César, que o levou em suas campanhas na África e na Hispânia (46-45 a.C.), ele nunca demonstrou qualidades que o qualificassem para a vida pública. No entanto, seu comportamento no campo pode ter conquistado o respeito de César, pois ele prometeu-lhe o consulado para metade do ano de 44 a.C., quando ele próprio deveria ter ido nas expedições contra os getas e os partos. Antônio se opôs a tal colega e chegou a tentar invalidar a eleição – como havia ameaçado fazer – anunciando maus presságios. A decisão dos áugures sobre o ponto não foi dada quando César foi assassinado, e, na confusão que se seguiu, Dolabela assumiu as insígnias do consulado. Dois anos antes, sua conduta havia sido tão escandalosa que Cícero havia induzido Túlia – um tanto relutante, parece – a se divorciar dele. Mas a parte mais estranha do assunto para nossos sentimentos é a maneira cordial e quase afetuosa com que Cícero continua a se dirigir a ele. Isso é elevado a uma adulação absoluta – apesar de um ressentimento privado quanto à falha em devolver o dote de Túlia – pela crença de que, após a morte de César, Dolabela pretendia tomar o lado constitucional. Inicialmente, ele havia mostrado abertamente sua simpatia pelos assassinos, e algumas semanas depois havia reprimido os tumultos que ocorreram em torno da coluna e altar colocados sobre o local onde o corpo de César havia sido queimado, executando – de maneira aparentemente muito arbitrária – um número de cidadãos e escravos. Mas essa demonstração de ardor republicano logo desapareceu. Ele participou com Antônio do saque do templo de Ops, obteve uma nomeação para a província da Síria, deixou Roma ainda como cônsul para tomar posse antes que Cássio pudesse chegar lá, e, a caminho da Ásia, barbaramente assassinou o governador da Ásia, Trebônio (fevereiro de 43 a.C.). Trebônio estava na Ásia com o entendimento expresso de que deveria arrecadar forças e dinheiro para o partido republicano; e esse ato de Dolabela foi uma declaração de hostilidade contra ele. O senado declarou-o hostis e Cássio foi incumbido de derrotá-lo. Rumores sobre sua queda (ele cometeu suicídio enquanto estava bloqueado em Laodiceia) chegaram a Roma antes do término da correspondência, mas não houve confirmação oficial disso. O caráter pessoal de Dolabela era ruim, e não há nada em sua conduta pública que o compensasse.
Outros correspondentes
Mas as figuras principais na última etapa da correspondência são os dois Brutos, Marco e Décimo, Cássio Longino, Plâncio e Lépido[41]. Com Cássio, a intimidade de Cícero parece ter começado em 46 a.C., quando ambos viviam em Roma por indulgência de César, e ambos com sentimentos de lealdade muito duvidosa ao seu regime. Cássio havia se destacado após a queda de Crasso – de quem fora questor – por ter conseguido trazer de volta os restos do exército romano para Antioquia e repelido um ataque dos partas a essa cidade no ano seguinte (52 a.C.). Seu sucesso tornou o ano de Cícero na Cilícia (51-50 a.C.) seguro no que diz respeito aos partos. Mas ele não fala com muita cordialidade sobre isso, ou como se conhecesse Cássio de forma íntima. Cássio estava no comando de uma frota na Sicília quando ocorreu a batalha de Farsalos. Quando soube dela, navegou em direção ao Helesponto; aparentemente com o objetivo de interceptar César, mas quase imediatamente se rendeu a ele. Após a guerra de Alexandria, parece ter retornado a Roma e voltado sua atenção para a filosofia, adotando as doutrinas da Escola Epicurista. Sua carta (vol. iii., DXLI) mostra o zelo de um converso tardio, como Cícero implica que ele era (vol. iii., DXXX). Ele nunca foi um célebre partidário de César, embora, como outros, tenha se submetido. Em 46-45 a.C., quando César foi para a Hispânia atacar os filhos de Pompeu, ele parece ter se desculpado de lutar contra antigos amigos e, consequentemente, recebido uma sugestão para fazer uma viagem que o mantivesse fora de Roma durante a ausência de César. No entanto, com o retorno de César, no meio de 45 a.C., ele parece ter sido tratado com respeito e nomeado como pretor para 44 a.C., embora estivesse irritado com a preferência dada ao seu cunhado M. Bruto, que era pretor urbano. Eles também deveriam ser cônsules em 41 a.C., seu ano adequado. Atribuir sua irritação pessoal com o pretor urbano como motivo para sua promoção da conspiração não parece razoável, diante das evidências de seu profundo descontentamento com o regime cesariano. Ele, é claro, aceitou o cargo por favor de César, mas provavelmente considerava aquele cargo como nada mais do que seu direito, e a influência que lhe concedeu como um exercício inconstitucional de prerrogativa, do qual ele poderia ter dispensado se o estado da República tivesse sido normal. No geral, sua participação no crime dos Idos de Março não é agravada pelo estigma adicional de ingratidão na mesma medida que alguns dos outros. Suas cartas da Síria são curtas e militares. Sem ser um homem de grande inventividade, ele evidentemente possuía energia e capacidade militar.
Plâncio foi de interesse para Cícero apenas acidentalmente. Ele foi um dos legados de César na Gália que o apoiou na Guerra Civil. Lutou com sucesso em Ilerda em 49 a.C. (César, A Guerra Civil, i. 40) e na Campanha Africana de 46 a.C. (César, A Guerra da África, iv.), e seria recompensado com o governo da Gália Cisalpina em 44-43 a.C. e o consulado em 42 a.C. Sua posterior conexão com Antônio, sua longa residência com ele no Egito e sua traição final de seus segredos a Augusto fizeram com que o historiador de corte Patérculo fosse particularmente feroz ao denunciá-lo como acometido por uma espécie de doença de traição, e como o mais astuto dos homens. Suas cartas para Cícero não fazem muito para melhorar seu caráter, embora sejam inteligentes e explícitas. Ele parece ter sido influenciado quase inteiramente por considerações pessoais. Se não resistisse a Antônio, temia perder sua província; se o fizesse sem sucesso, temia perder o consulado de 42 a.C. Portanto, ele é veemente em suas profissões de lealdade ao senado, desde que pareça que seus generais estavam vencendo. Ele permitiu que Décimo Bruto se juntasse a ele e insistiu para que Otaviano fizesse o mesmo. Mas quando descobriu que Antônio havia se unido a Lépido e Pólio, ele aceitou o compromisso oferecido e salvou seu consulado, se não sua honra.
Lépido foi outro homem que as chances da guerra civil trouxeram a uma posição mais alta do que ele tinha força ou caráter para manter. Ele era pretor em 49 a.C. e prestou algum serviço a César na garantia de sua nomeação como Ditador para realizar a eleição consular. Foi recompensado com o governo da Hispânia Citerior em 48-47 a.C. e o consulado de 46 a.C. como colega de César. César não parece tê-lo empregado em uma capacidade militar, mas o deixou em casa para manter a ordem em Roma: e quando César foi novamente nomeado Ditador após Tapso, e novamente ditador vitalício após Munda, Lépido foi nomeado seu segundo em comando ou Mestre do Cavalo. Embora ainda ocupasse esse cargo em 44 a.C., ele não deveria acompanhar César na Guerra Parta, mas deveria manter as províncias combinadas da Gália Narbonense e da Hispânia Citerior. Ele usou as tropas reunidas para essas províncias para manter a ordem em Roma após o assassinato. No entanto, ele não permaneceu muito tempo em Roma. Tendo garantido sua própria eleição como Pontífice Máximo em sucessão a César, foi para sua província. Se tinha algum entendimento com Antônio ou não, ele parece ter estado inicialmente engajado em negociações com Sexto Pompeu, ostensivamente no interesse do partido senatorial. Em relação às ações de Antônio em 44 a.C., e sua determinação final de desalojar Décimo Bruto da Gália, ele manteve-se à parte. Quando o cerco de Mutina começou, ele parece ter enviado oficiais nominalmente para comunicar-se com Bruto, mas com ordens secretas para não participar da luta; e quando Antônio entrou na Gália Narbonense, após sua retirada de Mutina, seus oficiais na fronteira não ofereceram resistência, e embora ele fingisse estar descontento e os punisse, eles evidentemente estavam agindo com sua cumplicidade. Ele era – diz Décimo Bruto – “o mais astuto dos homens” (homo ventosissimus[42]), e suas cartas a Cícero e ao senado professando lealdade, quando estava à beira de se unir a Antônio, são curiosas por sua engendrada traição[43]. Como ocorre usualmente com traidores, ele foi pouco valorizado pelo lado ao qual se uniu. Antônio e Otaviano acharam conveniente admiti-lo ao triunvirato, mas ele sempre foi tratado com desdém por seus dois colegas, e após sua tentativa inútil em 36 a.C. de minar a autoridade de Otaviano na Sicília, foi forçado a viver em retiro ignominioso até sua morte em 13 a.C. Cícero fez o melhor que pode com lisonjas e exortações para mantê-lo leal, mas nunca pensou muito bem dele[44].
De todos os que participaram do assassinato de César, Décimo Bruno parece ter tido o menor motivo pessoal e a menor justificativa. César evidentemente o apreciava muito e o considerava com afeição pessoal. Ele havia servido com alguma distinção na Gália. Comandou a frota contra os Venetos em 56 a.C., foi deixado no comando das tropas na Auvergne e lutou em Alesia em 52 a.C. César sempre o chama de adulescens nessas ocasiões: ele provavelmente tinha menos de trinta anos e não havia ocupado o cargo de questor. Quando a Guerra Civil eclodiu, foi colocado no comando da frota construída por ordem de César para bloquear Marselha (49 a.C.), e parece ter se mostrado eficiente. Não temos informações sobre os anos em que ocupou cargos, mas ele estava em Roma em 50 a.C.[45] e pode ter sido questor. Não parece ter participado de outras batalhas da Guerra Civil. Pouco depois de 49 a.C., foi nomeado governador da Gália Transalpina e lutou com sucesso contra os Belóvacos. Parece ter permanecido lá por cerca de três anos e, ao retornar a Roma, por volta do mesmo tempo em que César voltou da Hispânia (45 a.C.), foi recebido por César com grande honra e afeição, sendo admitido a viajar em uma carruagem com Otaviano e Antônio, atrás da do Ditador, quando ele entrou em Roma[46]. Também foi nomeado para a província da Gália Cisalpina para 44-43 a.C. e para o consulado de 42 a.C. com Plâncio. Finalmente, como se revelou após a morte de César, foi nomeado “segundo herdeiro” no testamento do Ditador. Parece não haver explicação para sua participação na conspiração, exceto possivelmente seu casamento com Paula Valéria, irmã de um forte pompeiano. Sua influência conhecida com César permitiu-lhe desempenhar um papel particularmente traiçoeiro. Quando a habitual procissão honorária de senadores visitou a casa de César nos fatais Idos de Março, encontraram-no relutante em ir à Cúria, devido a vários avisos, sonhos e presságios. Décimo Bruto foi, portanto, designado para persuadi-lo a alterar sua resolução. A carta escrita por Décimo imediatamente depois da ação não demonstra nenhum sinal de remorso ou arrependimento[47]. Portanto, ele estava completamente convencido de que estava cumprindo um dever público. Não ganhou nada com isso e dificilmente poderia ter esperado por algo. A princípio, parecia provável que fosse impedido de assumir sua província. Mas Antônio parece ter achado impossível impedir sua ida para lá; e como o complemento regular de homens já o aguardava, assim que ele entrou na província, foi capaz de agir em todos os aspectos como um governador legalmente nomeado[48]. Mas ele também estava decidido a manter a província até 43 a.C., na véspera de seu consulado, e recusou-se a reconhecer a lex obtida por Antônio autorizando-o a suceder Bruto em janeiro daquele ano. Esta foi a origem da guerra de Mutina, que ocupa uma grande parte das cartas deste volume. As cartas de Cícero para ele em 44 a.C. ilustrarão sua posição antes da guerra aberta de Antônio contra ele, e suas próprias correspondências após Mutina (abril de 43 a.C.) nos levam passo a passo ao longo da estrada naquela busca fútil por Antônio, que finalmente trouxe a própria destruição de Décimo.
A figura mais notável nesta última seção da correspondência é Marco Bruto. Ele há muito desfruta de uma reputação única, fundada em parte em seu nome e na descendência imaginária do herói que expulsou o último rei de Roma, em parte na suposta elevação de seus motivos e em sua pureza estoica. Ele era o primeiro membro da conspiração, um Bayard ou um Sidney[49], que agia apenas como um cavalheiro, patriota e estoico estava obrigado a agir. Até mesmo Antônio reconheceu que ele, sozinho entre os assassinos, estava isento de objetivos egoístas; e Shakespeare capturou fielmente o espírito de suas fontes ao torná-lo o herói de seu Júlio César. Claro que não faltaram críticos a adotar uma visão diferente sobre o caráter e a carreira de Bruto. Ele é, por exemplo, um objeto de aversão para os editores da grande edição de Dublin das cartas, que não apenas se referem aos seus modos rígidos e desajeitados, dos quais Cícero próprio parece se queixar, e à sua pedantaria superficial, mas o acusam de opressão grosseira e usura na Ásia e em Chipre, de ter traído a César a intenção de Pompeu de ir ao Egito após Farsalos, de motivos mesquinhos e ingratidão grosseira no assassinato de César, e, ao tentar negociar com os antonianos, de ter falhado com seu partido em seu momento de maior necessidade ao não se dirigir à Macedônia com seu exército. Assim, não resta nada de heroico nele, nem mesmo do que é decentemente honroso. Se ignorar os erros dos vilões da história é uma ocupação insatisfatória, uma atitude ainda menos satisfatória é a de dissipar nossas ilusões sobre seus heróis. Seus contemporâneos admiravam Bruto, até seus opositores admitiam suas qualidades elevadas, e uma tradição quase constante concordava em exaltar seu caráter. Se Dante o colocou no último círculo de seu inferno, foi pela severa condenação do assassinato, qualquer que seja a desculpa que se possa apresentar para o assassino. Não havia mais perdão para ele do que para o adultério de Francesca[50], apesar da infinita compaixão. É obviamente impossível absolver Bruto por ter decaído ao nível de sua época e por trair sua filosofia nas práticas usurárias em Chipre[51], e de agir pelo menos indiferença quanto à severidade com que seus agentes exigiam o dinheiro. No entanto, era uma prática muito comum entre a nobreza romana chocar seus contemporâneos, ou surpreender os modernos que sabem como frequentemente a prática não condiz com a teoria. No governo da Gália Cisalpina (56 a.C.), ele parece ter sido irrepreensível em relação ao dinheiro e demonstrado considerável habilidade. A alegada traição da intenção de Pompeu de ir ao Egito não é realmente corroborada por Plutarco, e parece quase impossível pelo fato de que Pompeu não havia decidido ainda o que faria quando escapou de Farsália; e Bruto, que partiu do acampamento depois dele, dificilmente poderia saber disso, se o soubesse.
No que diz respeito ao assassinato de César, ele era tão culpado quanto os demais – nem mais nem menos. Provavelmente não sentia uma gratidão especial por César, que dificilmente poderia ter feito outra coisa senão poupá-lo após Farsalos, em vista de suas próprias relações com sua mãe Servília. O boato de que Bruto era, na realidade, filho de César é extremamente improvável, embora talvez não absolutamente impossível. Ele não tinha razão para amar Pompeu, que havia matado traiçoeiramente seu pai, mas amava seu tio Catão, cuja morte seria responsabilidade de César. Sua partida para a Itália em 43 a.C., como Cícero o exortou a fazer, mesmo que fosse possível com o transporte que ele tinha, dificilmente teria sido sábia. Seus oponentes estavam então em grande força; não há razão para acreditar que a Itália estava – como alegava Cícero – pronta para se levantar em seu apoio, e uma batalha malsucedida contra Antônio, Lépido e Otaviano, que certamente teriam se unido para se opor a ele, não apenas teria implicado a perda final da causa, mas teria dado a desculpa para um massacre pior do que as proscrições. A acusação de flertar com os antonianos repousa em sua leniência com relação a Caio Antônio, que ele havia feito prisioneiro. No dia 13 de abril, pouco antes de se saber o resultado das batalhas de Mutina, chegou um despacho de Bruto, acompanhado de um de Caio Antônio, que começava com “Caio Antônio, Procônsul”[52]. Eles foram trazidos por Pílio Célere, sogro de Ático, e entregues a um tribuno. O tribuno os passou para Cornuto, o pretor urbano que presidia o senado na ausência dos cônsules. O despacho de Bruto referia-se a Antônio em termos indulgentes, e o fato de ter permitido que ele se intitulasse de Procônsul foi considerado pelos ciceronianos como um abandono prático de sua alegação de que Bruto era o único procônsul legal da Macedônia. Cícero ficou tão constrangido que não disse nada. Mas na reunião do dia seguinte, ele falou severamente sobre essa atribuição do título de Procônsul, e alguns membros do partido tentaram insinuar que o despacho de Bruto era uma falsificação. No entanto, não há evidências de que Bruto tenha tentado desmentir o despacho, e mesmo após as batalhas de Mutina, ele continuou a tratar Caio Antônio com consideração, que, segundo a versão mais provável, não foi executado até o final do ano, e então não diretamente por ordem de Bruto. Alguns membros do partido de Cícero estavam alarmados com a possível posição de seus parentes se eles tivessem tomado armas contra um “procônsul”, e estavam, portanto, ansiosos para marcar a rejeição da reivindicação implícita pelo uso do título. Mas não poderia haver dúvida sobre o direito de Caio Antônio a essa designação, já que ele certamente havia sido investido com imperium da maneira usual. A questão era realmente se ele tinha algum direito legal para exercer esse imperium na Macedônia. Sob esse ponto de vista, ele estava – como Cícero observou – na mesma posição que seu irmão Marco na Gália. Mas Marco havia sido proclamado pelo senado como hostis, o que não parece que tenha acontecido com Caio. Pode, portanto, ter havido margem para negociação, e em meio a tanto derramamento de sangue, é difícil censurar Bruto por hesitar em executar um prisioneiro capturado em combate aberto e estar disposto a permitir que ele obtivesse termos do senado. No entanto, para Cícero, tudo, exceto guerra total contra os antonianos, era traição, e ele pressiona constantemente Bruto sobre a necessidade de se livrar dele.
A autenticidade das cartas a Bruto
Assim como a controvérsia tem girado em torno do caráter de Bruto, também o fez em relação à autenticidade dos dois livros de cartas entre Bruto e Cícero. A questão foi plenamente exposta e os argumentos mais recentes revisados pelos editores de Dublin, e não precisa ser discutida novamente aqui. O resultado geral é que os dois livros são parte de um único livro, o nono, de uma coleção muito maior que existia; que os livros II devem preceder os do Livro I; e que as evidências são a favor da autenticidade de todas as cartas, exceto das cartas 1.16 e 17 (DCCCLX e DCCCLXI, nesta edição). Mesmo dessas, os editores de Dublin acreditam que as evidências a favor delas são, no geral, mais fortes do que as contrárias. A autoridade manuscrita dessas duas cartas não é diferente da das demais do livro, mas acredito que há muitos pontos, tanto de estilo quanto de alusão histórica, que chamariam a atenção de um leitor da correspondência como suspeitos. A carta para Cícero é pior do que a para Ático, tanto em substância quanto em estilo, mas nenhuma é digna da reputação de Bruto. Infelizmente, não conhecemos bem os detalhes das negociações de Cícero com Otaviano para afirmar com certeza que ele não tenha escrito para ele no tom que Bruto critica. Mas sabemos que o senado – agindo sob a influência de Cícero – em sua votação de honrarias ao exército, ignorou de forma bastante estudada os serviços de Otaviano[53] e rejeitou a missão de Salvidieno quando ele pediu o consulado para ele. Se Cícero estava ao mesmo tempo escrevendo em termos elogiosos para ele e propondo uma ovação, ele estava jogando um jogo muito traiçoeiro e muito perigoso. Portanto, se as Cartas 1.16 e 17 devem ser consideradas como composições posteriores, gostaríamos de pensar que 1.15 (DCDIX) também deve seguir o mesmo caminho: e o panegírico a Messala – tão prematuro e tão provável de ter sido inserido posteriormente – torna espúria, pelo menos em parte, a carta altamente provável. Parece haver uma espécie de moda na crítica. Quarenta ou cinquenta anos atrás havia uma tendência a duvidar da autenticidade dos escritos antigos com uma espécie de ceticismo triunfante; agora, o pêndulo se alterou – na maior parte felizmente – e o impulso é defender tudo. Nenhuma das modas está completamente certa.
[1] Isso foi questionado, mas acredito que suas próprias expressões tornam isso praticamente certo.
[2] Carta DCCXVI.
[3] Cartas DCCII, DCCV, DCCXV, DCCXVI, DCCXIX.
[4] Cartas DCCXVI, DCCLX
[5] Cartas DCCIII, DCCIV, DCCV, DCCXII, DCCXVI, DCCXXIII, DCCXXVI, DCCXXXI.
[6] Carta DCCX.
[7] Carta DCCXX.
[8] Carta DCCXVI; compare com a carta DCCXX: “Parecia que não tínhamos sido libertados de uma tirania – apenas de um tirano: pois, embora o tirano tenha sido morto, obedecemos a todas as suas palavras… imunidades estão sendo concedidas; somas imensas de dinheiro esbanjadas; exilados chamados de volta; decretos forjados do senado registrados no erário”.
[9] Carta DCCX
[10] Cartas DCCI, DCCII, DCCX, DCCXXVI, DCCXXXVI, DCCXLVI.
[11] Carta DCCXXV.
[12] Carta DCCXCIV.
[13] Carta DCCXLVII.
[14] Carta DCCIV.
[15] Carta DCCX.
[16] Carta DCCXII.
[17] Cartas DCCXXV, DCCXXIX.
[18] Carta DCCXLII.
[19] Carta DCCXXVI.
[20] Carta DCCXXXV.
[21] Carta DCCLII.
[22] Filípicas, 1, §7.
[23] Carta DCCLXXX.
[24] Ver cartas DCCLXXX, DCCLXXXIV. Ele afirma que também tinha uma cópia de uma contio de Antônio, bem como o édito de Bruto e Cássio, que ele menciona na carta.
[25] Filípicas, 1, §13.
[26] Cartas DCCXXV, DCCXXX.
[27] Carta DCCXXXVIII.
[28] Carta DCCLXXXIX.
[29] Carta DCCCXVII.
[30] Carta DCCLXXXIX.
[31] Carta DCCXCIV.
[32] Carta DCCXCVI.
[33] Carta DCCCIII; compare com a carta DCCCIV: Cícero, no entanto, acreditava e aprovava a conspiração para assassinar Antônio, atribuída a Otaviano. Veja carta DCCLXXXIX.
[34] Carta DCCCVI.
[35] Carta DCCCIX.
[36] Ver carta DCCCLXII.
[37] O edital não foi publicado até que os triúnviros entrassem em Roma; mas o nome de Cícero estava entre os enviados antes (Apiano, Guerra Civil, iv. 4).
[38] Plutarco, Cícero, xlvii.-xlviii. Há também um relato um tanto semelhante de Lívio, preservado por Sêneca, Suasoriae, i. 7.
[39] Eugenio Masè Dari (1864-1961), jurista italiano [N.T.].
[40] Vol. ii., Carta CCLVII.
[41] Os laços familiares que uniam os líderes do partido anticesariano podem ser vistos na tabela:
[42] Carta DCCLXXX; Cícero fala dele como levissimus (“extremamente instável”); Carta DCDIX.
[43] Cartas DCCCLXXII, DCCCLXXXVIII.
[44] Vol. ii., Carta CCCLXIII.
[45] Vol. ii., Carta CCXLII.
[46] Plutarco, Vida de Antônio, xi.
[47] Carta DCXCVII.
[48] Veja sua expedição contra as tribos alpinas, Carta DCCXCIV.
[49] Maro Júnio Bruto se dizia descendente de Lúcio Júnio Bruto, figura lendária conhecida por ter liderado a expulsão do último rei de Roma, Tarquínio, o Soberbo. Bayard se refere a Pierre Terrail, senhor de Bayard (1473-1524), um cavaleiro francês da época das Guerras Italianas, conhecido como “o cavaleiro sem medo e sem mácula”. Sidney se refere a Sir Philip Sidney (1554-1586), lembrado por seu heroísmo e idealizado como um modelo de virtude renascentista [N.T].
[50] Francesca de Rímini, personagem da Divina Comédia, localizada no Canto V do Inferno, no círculo dos luxuriosos. Ela e seu amante, Paolo, foram condenados ao Inferno por cometerem adultério. Francesca conta a Dante como se apaixonou por Paolo, irmão de seu marido, e como ambos foram assassinados quando flagrados. Francesca está no segundo círculo do inferno, dedicado aos pecados de paixão [N.T.].
[51] Consulte o vol. ii, Carta CCLI.
[52] Carta DCCCXXXIX.
[53] Apiano, Guerra Civil, iii. 74, 86.