Heptamerão, de Margarida de Navarra

Você irá ler, a seguir, os primeiros contos da obra “Heptemerão”, de Margaria de Navarra. Caso deseje saber mais sobre a obra, ou deseja adquiri-la, clique aqui, ou na capa do livro abaixo.

Prólogo

No primeiro dia de setembro, quando os banhos nas montanhas dos Pirineus começam a adquirir sua virtude, havia nos de Cauterets[1] muitas pessoas tanto da França quanto da Espanha, algumas para beber a água, outras para se banhar nela, e ainda outras para experimentar a lama; todos esses sendo remédios tão maravilhosos que pessoas desenganadas pelos médicos voltam de lá completamente curadas. Meu propósito não é falar a você sobre a situação ou a virtude dos referidos banhos, mas apenas expor o que se relaciona ao assunto sobre o qual desejo escrever.

Todas as pessoas doentes permaneceram nos banhos por mais de três semanas, até que, com a melhora de sua condição, perceberam que poderiam retornar para casa. Mas, enquanto se preparavam para fazê-lo, caíram chuvas tão extraordinárias que parecia que Deus havia esquecido a promessa feita a Noé de nunca mais destruir o mundo com água; pois cada cabana e cada alojamento em Cauterets estava tão inundado de água que não era mais possível permanecer lá. Aqueles que vieram do lado da Espanha voltaram para lá através das montanhas como puderam, e os que conheciam o destino das estradas tiveram mais sorte em escapar.

Os senhores e senhoras franceses pensaram em retornar a Tarbes tão facilmente quanto haviam chegado, mas encontraram os ribeirões tão profundos que eram quase intransponíveis. Quando chegaram para atravessar o Gave de Béarn[2], que na ocasião de sua passagem anterior tinha menos de dois pés de profundidade, encontraram-no tão largo e volumoso que se desviaram para procurar as pontes. Mas estas, sendo apenas de madeira, haviam sido arrastadas pela turbulência da água.

Então, alguns dos companheiros pensaram em conter a força da corrente atravessando em conjunto, mas foram rapidamente arrastados, e os outros que estavam prestes a seguir perderam toda a disposição para fazê-lo. Assim, separaram-se, porque não estavam todos de acordo quanto a encontrar outro caminho. Alguns atravessaram as montanhas e, passando por Aragão, chegaram ao condado de Roussillon e, a partir daí, a Narbona; enquanto outros foram diretamente a Barcelona, e de lá pelo mar, alguns para Marselha e outros para Aigues-Mortes.

Mas uma senhora viúva de longa experiência, chamada Oisille, resolveu deixar de lado todo o medo de estradas ruins e se dirigir a Nossa Senhora de Serrance[3].

Ela não era, de fato, tão supersticiosa a ponto de acreditar que a gloriosa Virgem deixaria seu lugar à direita de Seu Filho para vir habitar uma terra desolada, mas desejava ver o local sagrado do qual ouvira falar tantas vezes. Além disso, estava certa de que, se houvesse um meio de escapar de um perigo, os monges certamente o encontrariam. Finalmente, chegou, após passar por lugares tão estranhos e tão difíceis de subir e descer que, apesar de seus anos e peso, teve que percorrer a maior parte do caminho a pé. O mais lamentável foi que a maior parte de seus servos e cavalos ficou morta pelo caminho, e ela chegou a Serrance apenas com um homem e uma mulher, onde foi recebida caritativamente pelos monges.

Entre os franceses, havia também dois cavalheiros que foram aos banhos mais para estar na companhia das damas de quem eram amantes do que por qualquer problema de saúde. Esses cavalheiros, vendo que o grupo estava partindo e que os maridos de suas damas as estavam levando embora, resolveram segui-los à distância sem revelar seu plano a ninguém. Mas numa noite, enquanto os dois cavalheiros casados e suas esposas estavam na casa de um homem mais ladrão do que camponês, os dois amantes, que estavam hospedados em uma casa de campo nas proximidades, ouviram à meia-noite um grande alvoroço. Eles se levantaram, junto com seus servos, e perguntaram o que significava aquele tumulto. O pobre homem, com grande medo, disse-lhes que era causado por alguns malfeitores que vinham para compartilhar o saque na casa de seu colega bandido. Imediatamente, os cavalheiros pegaram suas armas e, com seus servos, partiram para socorrer as damas, considerando ser mais feliz morrer por elas do que sobreviver a elas.

Quando chegaram à casa, encontraram a primeira porta arrombada e os dois cavalheiros com seus servos se defendendo bravamente. Mas, como estavam em menor número que os ladrões e também gravemente feridos, começaram a recuar, tendo já perdido muitos de seus servos. Os dois cavalheiros, olhando pelas janelas, viram as damas gritando e chorando tão amargamente que seus corações se encheram de pena e amor ao vê-las; e, como dois ursos enfurecidos descendo das montanhas, atacaram os bandidos com tanta fúria que muitos deles foram mortos, enquanto os restantes, não querendo esperar pelo ataque, fugiram para um esconderijo conhecido por eles.

Quando os cavalheiros derrotaram esses malfeitores e mataram o próprio anfitrião entre os demais, souberam que a esposa do homem era ainda pior que o marido; e, portanto, a enviaram para se juntar a ele com uma punhalada. Então, entraram em um andar inferior, onde encontraram um dos cavalheiros casados à beira da morte. O outro não tinha sofrido ferimentos, exceto que suas roupas estavam todas furadas por golpes e que sua espada estava quebrada ao meio. O pobre cavalheiro, percebendo a ajuda que os dois lhe prestaram, os abraçou e agradeceu, e pediu-lhes que não o abandonassem, o que foi para eles um pedido muito agradável. Depois de sepultar o cavalheiro morto e confortar sua esposa o melhor que puderam, tomaram o caminho que Deus lhes havia mostrado, sem saber para onde estavam indo.

Se desejar saber os nomes dos três cavalheiros, o casado se chamava Hircan e sua esposa Parlamente, e a viúva era Longarine; dos dois amantes, um se chamava Dagoucin e o outro Saffredent. Depois de terem passado o dia inteiro a cavalo, ao anoitecer avistaram um campanário, para onde, com muito esforço, seguiram o melhor que puderam, e ao chegarem foram bem recebidos pelo Abade e pelos monges. A abadia é chamada St. Savin[4].

O Abade, que vinha de uma linhagem antiga, hospedou-os com honra e, ao levá-los para seus aposentos, perguntou-lhes sobre suas aventuras. Quando ouviu a verdade, informou-lhes que outros haviam sofrido tão mal quanto eles, pois em um de seus quartos tinha duas damas que haviam escapado de um perigo semelhante, ou talvez maior, na medida em que haviam enfrentado bestas, e não homens[5]. A meia légua deste lado de Peyrechitte[6], as pobres damas encontraram um urso descendo da montanha, diante do qual fugiram com tal rapidez que seus cavalos morreram sob elas nas portas da abadia. Além disso, duas de suas mulheres, que chegaram muito tempo depois, relataram que o urso havia matado todos os servos.

Então, as duas damas e os três cavalheiros entraram no quarto onde esses infelizes viajantes estavam, e os encontraram chorando. Reconheceram-nas como Nomerfide e Ennasuite, momento em que todos se abraçaram e contaram o que lhes havia acontecido. Sob as exortações do bom Abade, começaram a se confortar por terem se reencontrado, e pela manhã assistiram à missa com muita devoção, louvando a Deus pelos perigos dos quais haviam escapado.

Enquanto todos estavam na missa, entrou na igreja[7] um homem vestido apenas com uma camisa, fugindo como se estivesse sendo perseguido, e clamando por ajuda. Imediatamente, Hircan e os outros cavalheiros foram ao seu encontro para ver o que estava acontecendo, e perceberam dois homens atrás dele com espadas desembainhadas.

Esses, ao verem tão grande companhia, tentaram fugir, mas foram perseguidos com fervor por Hircan e seus companheiros, e acabaram perdendo a vida. Quando Hircan voltou, descobriu que o homem com a camisa era um de seus companheiros chamado Geburon, que lhes contou como, enquanto estava deitado em uma casa de campo perto de Peyrechitte, três homens subiram as escadas e como ele, apesar de estar apenas com a camisa e sem outra arma além da sua espada, havia derrubado um deles no chão, mortalmente ferido. Enquanto os outros dois estavam ocupados em levantar seu companheiro, ele, percebendo-se nu e os outros armados, pensou que não poderia enfrentá-los, a não ser pela fuga, por estar menos carregado de roupas. E assim escapuliu, agradecendo a Deus e aos que o haviam vingado.

Depois de ouvir a missa e almoçar, enviaram alguém para verificar se era possível atravessar o rio Gave, e ao saberem que não era, ficaram muito aflitos. No entanto, o Abade os implorou urgentemente para que ficassem com ele até que a água abaixasse, e concordaram em permanecer por aquele dia.

À noite, enquanto iam se deitar, chegou um monge idoso que costumava ir todos os anos em setembro a Nossa Senhora de Serrance. Perguntaram-lhe sobre sua viagem, e ele lhes contou que, devido às enchentes, havia atravessado as montanhas e os piores caminhos que já conhecera. No caminho, ele havia visto uma cena muito lamentável. Encontrara um cavalheiro chamado Simontault, que, cansado de esperar a água do rio baixar e confiando na bondade de seu cavalo, tentara forçar a passagem e colocara todos os seus servos ao seu redor para quebrar a força da corrente. Mas quando estavam no meio do leito do rio, aqueles que estavam com piores montarias foram arrastados corrente abaixo, cavalos e homens, e nunca mais foram vistos. O cavalheiro, encontrando-se sozinho, virou seu cavalo para voltar, mas antes que pudesse chegar à margem, seu cavalo afundou. No entanto, Deus quis que isso acontecesse tão perto da margem que o cavalheiro foi capaz, arrastando-se de quatro e não sem engolir uma grande quantidade de água, de se arrastar para as pedras duras, embora estivesse tão fraco e cansado que não conseguiu ficar em pé.

Por sorte, um pastor, trazendo suas ovelhas ao final da tarde, encontrou-o sentado entre as pedras, encharcado e triste não apenas por si mesmo, mas pelos servos que vira perecer diante de seus olhos. O pastor, que compreendeu melhor a sua necessidade pela aparência do que pelas palavras, tomou-o pela mão e o levou para sua humilde moradia, onde acendeu alguns gravetos e o secou da melhor maneira que pôde. Na mesma noite, Deus guiou até lá este bom monge, que lhe mostrou o caminho para Nossa Senhora de Serrance, assegurando-lhe que seria melhor hospedado lá do que em qualquer outro lugar, e que encontraria lá uma viúva idosa chamada Oisille, que havia sido tão infeliz quanto ele.

Quando toda a companhia ouviu falar da boa senhora Oisille e do gentil cavaleiro Simontault, ficaram extremamente felizes e louvaram o Criador, que, satisfeito com o sacrifício dos servos, preservara seus senhores e senhoras. E mais do que todos os outros, Parlamente deu calorosos louvores a Deus, pois Simontault havia sido seu devotado amante por muito tempo.

Então, fizeram uma diligente investigação sobre o caminho para Serrance, e embora o bom velho declarasse que era muito difícil, eles não se deixaram desanimar e decidiram partir para lá naquele mesmo dia. Partiram bem equipados com tudo o que era necessário, pois o Abade os forneceu vinho e abundantes víveres[8], e com companheiros dispostos a guiá-los com segurança pelas montanhas.

Esses eles cruzaram mais frequentemente a pé do que a cavalo, e após muito trabalho e suor chegaram a Nossa Senhora de Serrance. Ali, o Abade, embora um tanto maldoso, não se atreveu a negar-lhes hospedagem por receio do Senhor de Béarn[9], que, como sabia, os estimava muito. Sendo um verdadeiro hipócrita, mostrou-lhes a melhor face que podia e os levou para ver a Senhora Oisille e o gentil cavaleiro Simontault.

A alegria de toda essa companhia, que havia sido miraculosamente reunida, era tão grande que a noite lhes pareceu curta enquanto louvavam a Deus na Igreja pela bondade que Ele havia mostrado a eles. Quando, perto da manhã, haviam descansado um pouco, foram todos ouvir a missa e receber o santo sacramento da comunhão, no qual todos os cristãos são unidos como um só, implorando a Ele que, por Sua misericórdia, os uniu assim, que Ele favorecesse sua jornada para Sua glória. Depois de almoçarem, enviaram alguém para saber se as águas haviam baixado, e descobriram que, pelo contrário, estavam ainda mais altas e não podiam ser atravessadas com segurança por um bom tempo. Determinaram, então, construir uma ponte apoiada em duas rochas que ficam muito próximas uma da outra, e onde ainda há tábuas para os pedestres que, vindo de Oléron, desejam evitar a travessia pelas encostas. O Abade ficou muito satisfeito por eles fazerem essa construção, para que o número de peregrinos aumentasse, e forneceu-lhes trabalhadores, embora fosse avarento demais para dar um único centavo.

Os trabalhadores declararam que não poderiam terminar a ponte em menos de dez ou doze dias, e toda a companhia, tanto damas quanto cavaleiros, começou a ficar cansada. Mas Parlamente, que era esposa de Hircan e que nunca estava ociosa ou melancólica, pediu permissão ao marido para falar e disse à senhora Oisille:

“Estou surpresa, madame, que você, que tem tanta experiência e agora ocupa o lugar de mãe para todas nós mulheres, não invente algum passatempo para aliviar o tédio que sentiremos durante nossa longa estadia; pois, se não tivermos alguma ocupação agradável e virtuosa, corremos o risco de adoecer.”

“Não,” acrescentou a jovem viúva Longarine, “pior do que isso, nos tornaremos de mau humor, o que é uma doença incurável; pois não há uma entre nós que não tenha motivos para estar extremamente desanimada, considerando nossas diversas perdas.”

Ennasuite, rindo, respondeu:

“Cada uma não perdeu seu marido como você, e a perda de servos não precisa trazer desespero, já que outros podem ser facilmente encontrados. No entanto, também sou da opinião de que deveríamos ter algum exercício agradável para passar o tempo, pois, caso contrário, estaremos mortas até amanhã.”

Todos os cavalheiros concordaram com o que essas damas disseram e pediram a Oisille que lhes dissesse o que deveriam fazer.

“Meus filhos,” ela respondeu, “vocês me pedem algo que considero muito difícil de ensinar, ou seja, um passatempo que possa aliviar o seu tédio. Procurei por tal remédio toda a minha vida e só encontrei um, que é a leitura das Sagradas Escrituras. Nelas a mente pode encontrar aquela verdadeira e perfeita alegria da qual provêm o repouso e a saúde corporal. Se vocês querem saber por que continuo tão alegre e saudável na minha velhice, é porque, ao me levantar, imediatamente pego as Sagradas Escrituras e as leio, e assim percebo e contemplo a bondade de Deus, que enviou Seu Filho ao mundo para nos proclamar a Palavra Sagrada[10] e as boas novas pelas quais Ele promete a remissão de todos os pecados e a satisfação de todas as dívidas pelo dom que nos fez de Seu amor, paixão e méritos.”

“O pensamento disso me dá tanta alegria que pego meu Saltério e, com toda humildade, canto com o coração e pronuncio com os lábios os doces salmos e cânticos que o Espírito Santo colocou no coração de Davi e de outros autores. E tão aceitável é o contentamento que isso me traz, que qualquer mal que possa me atingir durante o dia eu considero uma bênção, visto que tenho em meu coração, através da fé, Aquele que suportou todos eles por mim. Da mesma forma, antes do jantar, retiro-me para alimentar minha alma com a leitura, e então, à noite, lembro-me de tudo o que fiz durante o dia, para pedir perdão pelos meus pecados, agradecer-Lhe por Suas misericórdias e, sentindo-me protegida de todo mal, descansar em Seu amor, temor e paz. Este, meus filhos, é o passatempo que tenho praticado há muito tempo, após experimentar todos os outros e não encontrar em nenhum deles contentamento espiritual. Acredito que, se vocês dedicarem uma hora todas as manhãs à leitura e depois fizerem orações devotas durante a missa, encontrarão neste lugar solitário toda a beleza que qualquer cidade poderia oferecer. Aquele que conhece a Deus vê todas as coisas belas Nele, e sem Ele tudo parece desfeio; por isso, peço-vos que aceitem meu conselho, se desejarem viver com alegria.”

Então Hircan tomou a palavra e disse:

“Esses, madame, que leram as Sagradas Escrituras, como acredito que todos nós fizemos, reconhecerão que o que você disse é verdade. No entanto, deve considerar que ainda não estamos tão mortificados que não necessitamos de algum passatempo e exercício físico. Quando estamos em casa, temos a caça e a falcoaria, que nos fazem deixar de lado mil pensamentos tolos, e as damas têm suas preocupações domésticas, seu trabalho e, às vezes, a dança, em tudo o que encontram um exercício honroso. Portanto, falando em nome dos homens, proponho que você, que é a mais velha, nos leia pela manhã sobre a vida que Nosso Senhor Jesus Cristo levou e as grandes e maravilhosas obras que Ele fez por nós; e que entre o almoço e as vésperas escolhemos algum passatempo que seja agradável ao corpo e, ao mesmo tempo, não prejudicial à alma. Assim, passaremos o dia alegremente.”

A Senhora Oisille respondeu que havia se esforçado para esquecer toda descrição de vaidade mundana e, portanto, temia não ter sucesso na escolha de tal entretenimento. O assunto deveria ser decidido pela maioria das opiniões, e ela pediu a Hircan que apresentasse sua própria sugestão primeiro.

“Por minha parte,” disse ele, “se eu pensasse que o passatempo que escolhesse fosse tão agradável para a companhia quanto para mim, minha opinião seria rapidamente dada. No entanto, por ora, reservo-me e me conformo com o que os demais disserem.”

Sua esposa, Parlamente, pensando que ele se referia a ela, começou a corar e, meio irritada e meio rindo, respondeu:

“Talvez, Hircan, aquela que você acha que acharia mais tedioso poderia facilmente encontrar meios de compensação se quisesse. Mas deixemos de lado um passatempo em que apenas dois possam participar e falemos de um que seja comum a todos.”

“Já que minha esposa entendeu tão bem o significado das minhas palavras,” disse Hircan a todas as damas, “e um passatempo privado não é do seu gosto, acredito que ela estará mais bem capacitada do que qualquer outra para nomear um que todos possam desfrutar; e com isso concordo com a opinião dela, não tendo outra própria.”

A toda a companhia concordou com isso.

Parlamente, percebendo que lhe cabia decidir, falou o seguinte:

“Se eu me encontrasse tão capacitada quanto os antigos que inventaram as artes, eu deveria conceber algum esporte ou passatempo para cumprir a tarefa que vocês me impõem. Mas conhecendo o meu próprio conhecimento e capacidade, que mal são capazes de recordar as dignas performances de outros, eu me consideraria feliz se puder seguir de perto aqueles que já satisfizeram seu pedido. Entre os demais, creio que não há um de vocês que não tenha lido os Cem Contos de Boccaccio, recentemente traduzidos do italiano para o francês. Tais foram os elogios feitos a estes contos por Rei Francisco, o primeiro do nome, Monsenhor o Delfim[11], Madame a Delfina e Madame Margarida, que se Boccaccio[12] tivesse ouvido apenas do lugar onde estava, o louvor dessas ilustres pessoas o teria levantado dos mortos.”

Agora, ouvi há pouco tempo que as duas damas que mencionei, juntamente com várias outras da Corte, decidiram fazer como Boccaccio, com uma exceção, no entanto – não escreveriam nenhuma história que não fosse verdadeira. E essas damas, e Monsenhor o Delfim com elas, comprometeram-se a contar dez histórias cada uma, e a reunir no total dez pessoas, entre aquelas que consideravam mais capazes de narrar algo. Foram excluídos aqueles que tinham estudado e eram pessoas de letras, pois Monsenhor o Delfim não permitiria que sua arte fosse empregada, temendo que as flores da retórica pudessem, de alguma forma, prejudicar a verdade das histórias. Mas os importantes assuntos nos quais o Rei estava envolvido, a paz entre ele e o Rei da Inglaterra, o parto da Delfina[13], e muitos outros assuntos de natureza a ocupar toda a Corte, fizeram com que a empreitada fosse completamente esquecida.

No entanto, devido ao nosso grande tempo livre agora, isso pode ser realizado em dez dias, enquanto esperamos que a nossa ponte seja concluída. Se assim lhe agradar, poderíamos ir todos os dias, do meio-dia até às quatro horas, para aquele agradável prado ao lado do rio Gave. As árvores lá são tão frondosas que o sol não consegue penetrar a sombra nem transformar o frescor em calor. Sentados lá à vontade, cada um de nós poderia contar uma história sobre algo que tenhamos visto ou ouvido de alguém digno de fé. Ao final de dez dias, teremos completado as cem histórias[14], e se Deus quiser que nosso trabalho seja considerado digno pelos senhores e senhoras que mencionei, ao voltarmos dessa viagem o apresentaremos a eles, em vez de imagens e Pai Nossos[15], acreditando que será um presente mais agradável. Se, no entanto, alguém puder conceber um plano mais agradável do que o meu, aceitarei sua opinião.

Toda a companhia respondeu que não era possível dar um conselho melhor e que aguardavam a manhã com impaciência para começar. Assim, passaram aquele dia alegremente, relembrando uns aos outros o que haviam visto em seu tempo. Assim que a manhã chegou, foram ao quarto de Madame Oisille, a quem encontraram já em suas orações. Ouviram-na ler durante uma hora inteira, depois assistiram à missa com devoção e, em seguida, foram almoçar às dez horas[16].

Após o almoço, cada um retirou-se para o seu quarto e fez o que tinha a fazer. De acordo com o plano, ao meio-dia não deixaram de voltar ao campo, que era tão bonito e agradável que só um Boccaccio poderia descrevê-lo como realmente era; basta dizer que nunca se viu um lugar mais belo.

Quando toda a companhia estava sentada na grama verde, que era tão fina e macia que não precisavam de almofadas nem tapetes, Simontault começou dizendo:

“Quem de nós deverá começar antes dos outros?”

“Como você foi o primeiro a falar,” respondeu Hircan, “é razoável que você nos dirija; pois no jogo somos todos iguais.”

“Quem dera,” disse Simontault, “eu tivesse nenhuma desgraça maior neste mundo do que poder dirigir toda a companhia presente.”

Ao ouvir isso, Parlamente, que sabia bem o que significava, começou a tossir. Hircan, portanto, não percebeu a cor que surgiu em suas bochechas, mas disse a Simontault para começar, o que ele fez conforme segue.

Primeiro Dia

No Primeiro Dia são contadas as maldades que foram feitas pelas mulheres aos homens e pelos homens às mulheres.

Conto I. A esposa de um procurador[17]

A esposa de um procurador, tendo sido solicitada de forma insistente pelo Bispo de Sées, a tomou para seu próprio proveito, e, estando tão insatisfeita com ele quanto com seu marido, encontrou um meio de ter o filho do Tenente-General de Alençon para seu prazer. Algum tempo depois, ela fez com que este último fosse miseravelmente assassinado por seu marido, que, embora tenha obtido o perdão pelo assassinato, foi posteriormente enviado para as galés com um feiticeiro chamado Gallery; e tudo isso foi causado pela maldade de sua esposa[18].

Senhoras, disse Simontault, eu fui tão mal recompensado por meus longos serviços, que, para me vingar do Amor e daquela que me trata tão cruelmente, me esforçarei para fazer uma coleção de todos os maus-tratos que as mulheres fizeram a homens infelizes; e, além disso, contarei apenas a pura verdade.

Na cidade de Alençon, durante a vida de Carlos, o último Duque[19], havia um procurador chamado St. Aignan, que havia casado com uma dama da vizinhança. Ela era mais bonita do que virtuosa e, devido à sua beleza e comportamento leve, era muito desejada pelo Bispo de Sées[20], que, para alcançar seus objetivos, manipulou tão bem o marido que este não apenas não percebeu a conduta viciosa de sua esposa e do Bispo, mas também foi levado a esquecer o afeto que sempre demonstrou no serviço de seu senhor e senhora.

Assim, de servo leal, ele tornou-se totalmente adverso a eles e, por fim, procurou feiticeiros para procurar a morte da Duquesa[21]. Agora, por um longo tempo, o Bispo manteve relações com essa infeliz mulher, que se submetia a ele mais por avareza do que por amor, e também porque seu marido a incentivava a mostrar-lhe favor. Mas havia um jovem na cidade de Alençon, filho do Tenente-General[22], a quem ela amava tanto que estava quase louca por ele; e frequentemente ela recorria ao Bispo para que ele confiasse algum encargo ao seu marido, para que ela pudesse ver o filho do Tenente, chamado Du Mesnil, à vontade.

Esse modo de vida durou muito tempo, durante o qual ela tinha o Bispo para seu proveito e o referido Du Mesnil para seu prazer. A este último, ela jurava que mostrava uma aparência afável ao Bispo apenas para que seu próprio amor pudesse continuar mais livremente; que o Bispo, apesar das aparências, não havia obtido mais do que palavras dela; e que ele, Du Mesnil, podia estar certo de que nenhum outro homem, além dele próprio, receberia algo mais.

Um dia, quando seu marido estava prestes a visitar o Bispo, ela pediu permissão para ir ao campo, dizendo que o ar da cidade era prejudicial para ela; e, ao chegar à sua propriedade, imediatamente escreveu a Du Mesnil para que ele viesse vê-la, sem falta, por volta das dez horas da noite. O jovem fez isso; mas, ao entrar pelo portão, encontrou a criada que costumava deixá-lo entrar, e que lhe disse: “Vá para outro lugar, amigo, pois seu lugar já está ocupado.”

Presumindo que o marido havia chegado, ele perguntou como estavam as coisas. A mulher, vendo que ele era tão bonito, jovem e bem-educado, e ao mesmo tempo tão amoroso e ainda tão pouco amado, teve pena dele e lhe contou sobre a lascívia de sua amante, pensando que ao ouvir isso ele se curaria de amá-la tanto. Ela lhe contou que o Bispo de Sées acabara de chegar e estava agora na cama com a senhora, algo que ela não esperava, pois ele não deveria ter chegado até o dia seguinte. No entanto, ele havia detido seu marido em sua casa e tinha escapado à noite para vê-la secretamente. Se algum homem estava em desespero, era Du Mesnil, que, no entanto, não conseguia acreditar na história. No entanto, ele se escondeu em uma casa próxima e observou até três horas após a meia-noite, quando viu o Bispo sair disfarçado, mas não de modo tão completo que não pudesse reconhecê-lo mais facilmente do que desejava.

Desesperado, Du Mesnil retornou a Alençon, para onde, igualmente, sua pérfida amante logo veio e foi falar com ele, pensando em enganá-lo conforme seu costume. Mas ele lhe disse que, tendo tocado coisas sagradas, ela era muito santa para falar com um pecador como ele, embora seu arrependimento fosse tão grande que ele esperava que seu pecado fosse perdoado muito em breve. Quando ela soube que seu engano havia sido descoberto, e que desculpas, juramentos e promessas de nunca mais agir de maneira semelhante não serviam para nada, ela se queixou ao seu Bispo. Então, tendo ponderado sobre o assunto com ele, ela foi até seu marido e lhe disse que não podia mais residir na cidade de Alençon, pois o filho do Tenente, a quem ele tinha tão em alta consideração entre seus amigos, a perseguia incessantemente para roubar sua honra. Ela, portanto, pediu que ele permanecesse em Argentan[23], a fim de que toda suspeita fosse removida.

O marido, que se deixava guiar pela esposa, consentiu; mas eles não estavam em Argentan há muito tempo quando essa má mulher enviou uma mensagem a Du Mesnil, dizendo que ele era o homem mais perverso do mundo, pois ela sabia muito bem que ele tinha falado mal dela e do Bispo de Sées; no entanto, ela se esforçaria ao máximo para fazê-lo se arrepender disso.

O jovem, que nunca tinha falado do assunto exceto para ela mesma, e que temia cair em desgraça com o Bispo, foi a Argentan com dois de seus servos e, encontrando sua amante nas vésperas na igreja dos Jacobinos[24], foi ajoelhar-se ao lado dela e disse:

“Vim até aqui, senhora, para jurar diante de Deus que nunca falei sobre sua honra para ninguém além de você. Você me tratou tão mal que nem fiz metade das censuras que você merecia; mas se houver homem ou mulher disposto a dizer que falei do assunto a eles, estou aqui para desmenti-los em sua presença.”

Vendo que havia muitas pessoas na igreja e que ele estava acompanhado por dois robustos servos, ela se esforçou para falar da maneira mais graciosa possível. Disse-lhe que não duvidava de que ele estivesse dizendo a verdade e que o considerava um homem honrado demais para falar mal de alguém, muito menos dela, que lhe tinha tanta amizade. No entanto, como seu marido tinha ouvido falar do assunto, ela lhe pediu que dissesse, na presença dele, que não havia falado mal dela e que não acreditava nisso.

Ele concordou de bom grado e, desejando acompanhá-la até sua casa, ofereceu-se para pegar no braço dela; mas ela lhe disse que não seria conveniente, pois seu marido poderia pensar que ela havia colocado essas palavras em sua boca. Então, segurando um dos servos dele pela manga, disse:

“Deixe-me este homem, e assim que for o momento, eu o mandarei buscar você. Enquanto isso, vá descansar em sua hospedaria.”

Ele, sem suspeitar da conspiração que estava sendo tramada contra ele, foi para lá. Ela deu o jantar ao servo que havia ficado com ela, e que perguntava frequentemente quando seria o momento de buscar seu mestre; mas ela sempre respondia que ele chegaria em breve. Quando a noite chegou, ela enviou um de seus próprios servos para buscar Du Mesnil; e ele, sem suspeitar do mal que estava sendo preparado, foi corajosamente à casa de St. Aignan. Como sua amante ainda estava entretendo seu servo ali, ele estava com apenas um servo consigo.

Quando estava entrando na casa, o servo que havia sido enviado disse-lhe que a senhora queria falar com ele antes que ele visse o marido dela, e que o esperava em um quarto onde estava a sós com seu próprio servo; por isso, seria prudente enviar seu outro servo embora pela porta da frente. Ele assim o fez. Enquanto subia uma pequena escada escura, o procurador St. Aignan, que havia colocado alguns homens em emboscada em um armário, ouviu o barulho e perguntou o que era. Disseram-lhe então que um homem estava tentando entrar secretamente em sua casa.

Nesse momento, um tal Thomas Guérin, um assassino profissional, contratado pelo procurador para esse fim, avançou e deu ao pobre jovem tantos golpes de espada que, por mais que ele tentasse se defender, não pôde evitar cair morto em meio a eles.

Enquanto isso, o servo que estava com a senhora disse a ela:

“Ouço meu mestre falando na escada. Vou até ele.”

Mas a senhora o impediu, dizendo:

“Não se preocupe; ele virá logo.”

Pouco tempo depois, o servo, ouvindo seu mestre dizer: “Estou morrendo, que Deus receba minha alma!”, quis ir ajudá-lo, mas a senhora novamente o impediu, dizendo:

“Não se preocupe; meu marido está apenas castigando-o por suas tolices. Vamos ver o que está acontecendo.”

Então, inclinando-se sobre o corrimão no topo da escada, ela perguntou ao marido:

“Bem, está feito?”

“Venha ver”, ele respondeu. “Agora me vinguei do homem que te envergonhou tanto.”

Dizendo isso, ele enfiou uma adaga que segurava de dez a doze vezes no ventre de um homem que, se estivesse vivo, ele não teria ousado enfrentar.

Quando o assassinato foi consumado e os dois criados do morto fugiram para levar a notícia ao infeliz pai, St. Aignan pensou que o assunto não poderia ser mantido em segredo. Mas imaginou que ninguém acreditaria no testemunho dos criados do morto e que ninguém em sua casa havia visto o ato, exceto os assassinos, uma velha criada e uma menina de quinze anos de idade. Ele secretamente tentou prender a velha senhora, mas ela, encontrando meios de escapar, buscou refúgio com os jacobinos[25], e foi posteriormente a testemunha mais confiável do assassinato. A jovem empregada permaneceu por alguns dias na casa de St. Aignan, mas ele encontrou meios de fazer com que ela fosse levada embora por um dos assassinos que a levou para um bordel em Paris, para que seu testemunho não fosse recebido[26].

Para ocultar o assassinato, ele mandou queimar o cadáver do infeliz, e os ossos que não foram consumidos pelo fogo fez com que fossem misturados com argamassa em uma parte da casa onde estava construindo. Em seguida, ele apressou-se a recorrer à Corte em busca de perdão, alegando que já havia várias vezes proibido a entrada em sua casa de uma pessoa que suspeitava estar conspirando contra a honra de sua esposa, e que, apesar dessa proibição, a pessoa havia ido à noite vê-la de maneira suspeita; ao encontrá-lo prestes a entrar no quarto dela, sua ira dominou sua razão e ele o matou.

No entanto, antes que pudesse enviar sua carta ao chanceler, o Duque e a Duquesa já haviam sido informados do ocorrido pelo pai do infeliz, e enviaram uma mensagem ao chanceler para impedir que o perdão fosse concedido. Percebendo que não poderia obtê-lo, o infeliz homem fugiu para a Inglaterra com sua esposa e vários de seus parentes. Mas, antes de partir, ele disse ao assassino que, a seu pedido, havia cometido o crime, e que recebera ordens do rei para ser capturado e morto. No entanto, em reconhecimento ao serviço prestado, desejava salvar-lhe a vida, dando-lhe dez coroas para que deixasse o reino. O assassino fez isso e nunca mais foi visto.

O assassinato foi tão bem comprovado pelos servos do falecido, pela mulher que buscou refúgio com os Jacobinos e pelos ossos encontrados na argamassa, que o processo legal foi iniciado e concluído na ausência de St. Aignan e sua esposa. Ambos foram julgados à revelia e condenados à morte. Seus bens foram confiscados pelo príncipe, e mil e quinhentas coroas foram destinadas ao pai do falecido para cobrir os custos do julgamento.

Estando na Inglaterra e percebendo que, aos olhos da lei, estava morto na França, St. Aignan, por meio de seus serviços a vários grandes senhores e pelo favor dos parentes de sua esposa, conseguiu que o rei da Inglaterra[27] solicitasse ao rei da França[28] que lhe concedesse um perdão e restaurasse suas posses e honras. Contudo, o rei da França, informado da maldade e enormidade do crime, enviou o processo ao rei da Inglaterra, pedindo-lhe que considerasse se a ofensa era digna de perdão, e informando-lhe que ninguém no reino, exceto o Duque de Alençon, tinha o direito de conceder perdão naquele ducado. No entanto, apesar de todas as desculpas, não conseguiu apaziguar o rei da Inglaterra, que continuou a insistir tão veementemente que, a seu pedido, o procurador finalmente recebeu o perdão e assim retornou à sua terra natal.[29] Lá, para completar sua maldade, ele se associou a um feiticeiro chamado Gallery, na esperança de que, por meio da arte desse homem, pudesse escapar do pagamento das mil e quinhentas coroas ao pai do falecido.

Para esse fim, ele foi disfarçado para Paris com sua esposa. Ela, percebendo que ele costumava se trancar por um longo tempo em um quarto com Gallery, sem lhe informar o motivo, decidiu espioná-lo certa manhã e viu Gallery mostrando-lhe cinco figuras de madeira, três das quais tinham as mãos abaixadas, enquanto duas as mantinham levantadas.[30]

“Devemos fazer figuras de cera como estas”, disse Gallery, falando com o procurador. “Aquelas que têm os braços abaixados serão para aqueles que desejamos causar a morte, e as outras, com os braços levantados, serão para as pessoas das quais você deseja obter amor e favor.”

“Esta aqui”, disse o procurador, “será para o rei, de quem eu desejo ser amado, e esta será para Monsenhor Brinon, chanceler de Alençon.”[31]

 – As imagens – disse Gallery – devem ser colocadas sob o altar, para ouvir a missa, com palavras que eu lhe direi a seguir.

Então, falando das imagens com os braços abaixados, o procurador disse que uma delas deveria ser para Mestre Gilles du Mesnil, pai do homem morto, pois ele sabia que enquanto o pai vivesse, não cessaria de persegui-lo. Além disso, uma das mulheres com os braços abaixados deveria ser para a Duquesa de Alençon, irmã do Rei; pois ela tinha muito amor por seu antigo servo, Du Mesnil, e havia conhecido tantas outras maldades do procurador que, a menos que ela morresse, ele não poderia viver. A segunda mulher com os braços abaixados era sua própria esposa, que era a causa de toda sua desgraça e que, ele estava certo, nunca mudaria sua vida perversa.

Quando sua esposa, que podia ver tudo pelo buraco da fechadura, o ouviu colocá-la entre os mortos, decidiu enviá-lo primeiro para lá. Sob o pretexto de emprestar algum dinheiro, foi a um tio seu, chamado Neaufle, que era Mestre dos Pedidos do Duque de Alençon, e informou-o sobre o que havia visto e ouvido. Neaufle, como o velho e digno servidor que era, foi imediatamente ao Chanceler de Alençon e contou-lhe toda a história.

Como o Duque e a Duquesa de Alençon não estavam na Corte naquele dia, o Chanceler relatou esse estranho caso à Regente[32], mãe do Rei e da Duquesa, e ela enviou com urgência o Provost de Paris[33], que se apressou tanto que imediatamente prendeu o procurador e seu feiticeiro, Gallery. Sem constrangimento ou tortura, eles confessaram livremente sua culpa, e seu caso foi documentado e apresentado ao Rei.

Certas pessoas, desejando salvar suas vidas, disseram ao rei que só haviam buscado seu favor por meio de encantamentos; mas o Rei, considerando a vida de sua irmã tão preciosa quanto a sua própria, ordenou que a mesma sentença fosse aplicada a eles como se tivessem tentado contra sua própria pessoa.

No entanto, sua irmã, a Duquesa de Alençon, suplicou para que a vida do procurador fosse poupada, e a sentença de morte comutada para algum castigo severo. Esse pedido foi concedido, e St. Aignan e Gallery foram enviados para os galés de St. Blancart em Marselha[34], onde passaram seus dias em cativeiro severo e tiveram tempo para refletir sobre a gravidade de seus crimes. A perversa esposa, na ausência do marido, continuou com seus pecados ainda mais do que antes e, por fim, morreu em miséria.

“Rogo-vos, senhoras, que considerem o mal causado por uma mulher perversa, e quantos males surgiram dos pecados daquela de quem falei. Encontrareis que, desde que Eva fez Adão pecar, todas as mulheres se empenharam em provocar o tormento, o massacre e a condenação dos homens. Por mim, tive tanta experiência de sua crueldade que espero morrer e ser condenado simplesmente pelo desespero em que uma delas me lançou. E ainda assim, sou tão grande tolo que não posso deixar de confessar que o inferno vindo de sua mão é mais agradável do que o Paraíso viria da mão de outra pessoa.”

Parlamente, fingindo não entender que ele falava dela, disse-lhe:

“Já que o inferno é tão agradável como dizes, não deverias temer o diabo que te colocou nele.”

“Se o meu diabo se tornasse tão negro quanto foi cruel comigo,” respondeu Simontault com raiva, “ele causaria à presente companhia tanto medo quanto eu encontro prazer em olhá-los; mas os fogos do amor fazem-me esquecer os deste inferno. No entanto, para não falar mais sobre este assunto, dou meu voto à Madame Oisille para contar a segunda história. Tenho certeza de que ela apoiaria minha opinião se estivesse disposta a dizer o que sabe sobre as mulheres.”

Imediatamente toda a companhia se voltou para Oisille, e pediu-lhe que prosseguisse, ao que ela consentiu e, rindo, começou da seguinte forma:

“Parece-me, senhoras, que aquele que me deu seu voto falou tão mal do nosso sexo em sua verdadeira história de uma mulher perversa, que devo recordar todos os anos da minha longa vida para encontrar uma cuja virtude seja suficiente para contrariar sua opinião malévola. No entanto, como me lembrei de uma que merece ser lembrada, agora contarei sua história para vocês.”

Conto II. A esposa de um tropeiro

A esposa de um carreteiro de Amboise preferiu morrer cruelmente às mãos de seu servo a cair em seu propósito maligno[35].

Na cidade de Amboise havia um carreteiro ao serviço da Rainha de Navarra, irmã do Rei Francisco, o primeiro desse nome. Ela estava em Blois, onde havia dado à luz um filho, e o referido carreteiro foi até lá para receber seu pagamento trimestral, enquanto sua esposa permanecia em Amboise, em um alojamento além das pontes[36].

Agora, aconteceu que um dos servos de seu marido a havia amado intensamente há muito tempo, e um dia não conseguiu se conter e falou sobre isso com ela. Ela, no entanto, sendo uma mulher verdadeiramente virtuosa, o repreendeu tão severamente, ameaçando fazê-lo espancar e demitir por seu marido, que a partir daquele momento ele não se atreveu a falar com ela de tal maneira novamente nem a deixar seu amor ser percebido, mas manteve o fogo escondido em seu peito até o dia em que seu mestre havia saído de casa e sua senhora estava nas vésperas em São Florentim[37], a igreja do castelo, um longo caminho da casa do carreteiro.

Enquanto ele estava sozinho, a ideia lhe ocorreu de que poderia obter à força o que nem a oração nem o serviço haviam conseguido lhe proporcionar. Assim, ele rompeu uma divisória de madeira que separava o quarto onde sua amante dormia do seu próprio. As cortinas da cama do mestre de um lado e da cama do criado do outro cobriam tanto as paredes que escondiam a abertura que ele havia feito; e assim sua maldade não foi percebida até que sua amante estivesse na cama, junto com uma menina de onze ou doze anos.

Quando a pobre mulher estava em seu primeiro sono, o criado, apenas de camisa e com sua espada nua na mão, entrou pelo buraco que havia feito na parede para a cama dela. Mas assim que ela o sentiu ao seu lado, saltou para fora, dirigindo a ele todas as reprovações que uma mulher virtuosa poderia proferir. No entanto, seu amor era apenas bestial, e ele entenderia melhor a linguagem de suas mulas do que os argumentos honoráveis dela; de fato, ele mostrou-se ainda mais bestial do que os animais com os quais havia convivido. Vendo que ela corria tão rapidamente ao redor de uma mesa que ele não conseguia pegá-la, e que ela era forte o suficiente para se soltar dele duas vezes, ele desesperou-se de a possuir viva e desferiu nela um terrível golpe de espada nos flancos, pensando que, se o medo e a força não a fizeram ceder, a dor certamente o faria.

No entanto, aconteceu o contrário, pois assim como um bom soldado, ao ver seu próprio sangue, se enfurece mais para se vingar dos inimigos e ganhar renome, o coração casto dela encontrou novas forças enquanto ela corria fugindo das mãos do vilão, dizendo-lhe tudo o que podia pensar para fazê-lo ver sua culpa. Mas ele estava tão cheio de raiva que não prestava atenção às palavras dela. Ele lhe deu vários outros golpes, para os quais ela continuou correndo enquanto suas pernas aguentavam.

Quando, após grande perda de sangue, ela sentiu que a morte estava próxima, levantou os olhos ao céu, juntou as mãos e agradeceu a Deus, chamando-O de sua força, sua paciência e sua virtude, e orando para que aceitasse seu sangue que havia sido derramado pela observância de Seu mandamento e em reverência a Seu Filho, através do qual ela acreditava firmemente que todos os seus pecados haviam sido lavados e apagados da lembrança de Sua ira.

Enquanto pronunciava as palavras: “Senhor, recebe a alma que foi redimida por Tua bondade”, ela caiu com o rosto no chão.

Em seguida, o criminoso lhe desferiu vários golpes e, quando ela perdeu a fala e a força do corpo e não conseguiu mais se defender, ele a violentou[38].

Depois de satisfazer assim sua luxúria perversa, ele fugiu apressadamente e, apesar de todas as buscas, nunca mais foi visto.

A menina, que estava na cama com a esposa do tropeiro, havia se escondido sob a cama, assustada; mas, ao ver que o homem havia ido embora, ela se aproximou de sua senhora. Encontrando-a sem fala e movimento, chamou os vizinhos pela janela para pedir socorro; e, como amavam e estimavam sua senhora tanto quanto qualquer mulher da cidade, vieram imediatamente, trazendo cirurgiões com eles. Estes encontraram que ela havia recebido vinte e cinco ferimentos mortais em seu corpo e, embora tentassem fazer o que podiam para ajudá-la, tudo foi em vão.

No entanto, ela sobreviveu por mais uma hora sem falar, mas fazendo sinais com os olhos e as mãos para mostrar que não havia perdido a compreensão. Perguntada por um padre em que fé ela morria, ela respondeu, com sinais tão claros quanto qualquer discurso, que depositava sua esperança de salvação somente em Jesus Cristo; e assim, com o semblante alegre e os olhos voltados para o céu, seu corpo casto entregou sua alma ao Criador.

Justamente quando o cadáver, tendo sido preparado e envolto[39], foi colocado à porta para aguardar a companhia para o sepultamento, o pobre marido chegou e viu o corpo de sua esposa em frente à sua casa, antes mesmo de ter recebido notícias de sua morte. Ele perguntou a causa disso e descobriu que tinha motivos duplos para lamentar; e seu sofrimento foi tão grande que quase o matou.

Esta mártir da castidade foi enterrada na Igreja de São Florentin, e, como era seu dever, todas as mulheres virtuosas de Amboise não deixaram de prestar-lhe todas as honras possíveis, considerando-se afortunadas por pertencerem a uma cidade onde uma mulher tão virtuosa havia sido encontrada. E vendo a honra prestada à falecida, as mulheres que eram libertinas e impuras resolveram emendar suas vidas.

“Esta, senhoras, é uma história verdadeira, que deve nos inclinar mais fortemente a preservar a bela virtude da castidade. Nós, que somos de sangue nobre, deveríamos morrer de vergonha ao sentir em nossos corações aquela luxúria mundana da qual a pobre esposa do tropeiro não hesitou em enfrentar uma morte tão cruel. Algumas se consideram mulheres virtuosas que nunca, como esta, resistiram até o derramamento de sangue. É adequado que devemos nos humilhar, pois Deus não concede Sua graça aos homens por seu nascimento ou riquezas, mas conforme Sua própria boa vontade. Ele não faz acepção de pessoas, mas escolhe de acordo com Seu propósito; e aqueles que Ele escolhe, Ele honra com todas as virtudes. E frequentemente, Ele escolhe os humildes para confundir aqueles que o mundo exalta e honra; pois, como Ele mesmo nos disse: ‘Não devemos nos regozijar em nossos méritos, mas sim porque nossos nomes estão escritos no Livro da Vida, do qual nem a morte, nem o inferno, nem o pecado podem apagá-los.’”[40]

Não havia uma única dama no grupo que não tivesse lágrimas de compaixão nos olhos pela morte triste e gloriosa da esposa do tropeiro. Cada uma pensava consigo mesma que, caso a fortuna lhe concedesse a mesma sorte, se esforçaria para imitar aquela pobre mulher em seu martírio. Oisille, porém, percebendo que o tempo estava sendo perdido elogiando a falecida, disse a Saffredent:

“A menos que você possa nos contar algo que faça o grupo rir, creio que nenhuma delas me perdoará pelo erro que cometi ao fazê-las chorar; portanto, dou meu voto para que você conte a terceira história.”

Saffredent, que teria gostado de narrar algo agradável para o grupo, e acima de tudo para uma das damas, disse que não era sua vez de falar, visto que havia outros mais velhos e mais instruídos do que ele, que deveriam, por direito, falar primeiro. No entanto, uma vez que a escolha recaíra sobre ele, preferia terminar logo, pois quanto mais numerosos fossem os bons narradores antes dele, pior pareceria a sua própria história.

Conto III. A rainha de Nápoles

A rainha de Nápoles, ao ser injustiçada pelo rei Alfonso, seu marido, vingou-se com um cavalheiro cuja esposa era amante do rei; e esse relacionamento durou toda a vida de ambos, sem que o rei suspeitasse disso em momento algum[41].

Tenho muitas vezes desejado, senhoras, compartilhar a boa sorte do homem cuja história estou prestes a relatar a vocês. Saibam que, na época do rei Alfonso[42], cujo desejo era o cetro de seu reino[43], vivia na cidade de Nápoles um cavalheiro tão honrado, atraente e agradável que suas perfeições levaram um velho cavalheiro a dar-lhe sua filha em casamento.

Ela rivalizava com o marido em graça e beleza, e havia grande amor entre eles, até um certo dia durante o Carnaval, quando o Rei saiu mascarado de casa em casa. Todos se esforçavam para lhe dar a melhor recepção possível, mas quando ele chegou à casa deste cavalheiro, foi recebido melhor do que em qualquer outro lugar, com doces, cantores, música e, além disso, a mulher mais bela que, na opinião dele, ele havia visto. Ao final do banquete, ela cantou uma canção com o marido de forma tão graciosa que parecia ainda mais bonita.

O Rei, percebendo tantas perfeições reunidas em uma só pessoa, não ficou muito satisfeito com a harmonia gentil entre o marido e a esposa e ponderou sobre como poderia destruí-la. A principal dificuldade que encontrou foi o grande afeto que observou entre eles, e por isso escondeu sua paixão no coração o mais profundamente possível. Para aliviar-se um pouco, deu muitos banquetes aos senhores e damas de Nápoles, e, nesses eventos, o cavalheiro e sua esposa não foram esquecidos. Agora, na medida em que os homens acreditam facilmente no que desejam, parecia ao Rei que os olhares desta dama lhe prometiam um futuro feliz, se ela não fosse restringida pela presença do marido. Assim, para descobrir se sua suposição era verdadeira, o Rei confiou uma missão ao marido e enviou-o em uma viagem a Roma por quinze dias ou três semanas.

Assim que o cavalheiro partiu, sua esposa, que nunca antes havia sido separada dele, ficou em grande angústia; mas o Rei a confortou sempre que pôde, com persuasões gentis e presentes, de modo que, por fim, ela não apenas foi consolada, mas também ficou bem satisfeita com a ausência do marido. Antes que as três semanas terminassem, quando ele deveria voltar para casa, ela havia se apaixonado tanto pelo Rei que o retorno do marido foi tão desagradável para ela quanto sua partida havia sido. Não querendo ser privada da companhia do Rei, ela concordou com ele que, sempre que o marido fosse para sua casa de campo, ela o avisaria. Assim, ele poderia visitá-la com segurança e com tal segredo que sua honra, que ela valorizava mais do que sua consciência, não sofreria[44].

Tendo essa esperança, a dama continuou com o espírito muito alegre, e quando o marido chegou, ela o recebeu com tanto ardor que, mesmo que lhe dissessem que o Rei a havia procurado na sua ausência, ele não teria suspeitado de nada. Com o tempo, porém, a chama, que é tão difícil de esconder, começou a se manifestar, e o marido, tendo uma forte intuição da verdade, manteve uma vigilância rigorosa, o que o levou a quase estar convencido. No entanto, como temia que o homem que o havia prejudicado o tratasse ainda pior se aparentasse notar isso, resolveu dissimular, achando melhor viver com o incômodo do que arriscar sua vida por uma mulher que havia deixado de amá-lo.

Na sua irritação, decidiu, se pudesse, retaliar contra o Rei, e sabendo que as mulheres, especialmente aquelas de mentes nobres e honoráveis, são mais movidas pelo ressentimento do que pelo amor, teve a audácia, um dia, enquanto conversava com a Rainha[45], de lhe dizer que o movia à piedade vê-la tão pouco amada pelo Rei.

A Rainha, que tinha ouvido falar da afeição existente entre o Rei e a esposa do cavalheiro, respondeu:

“Não posso ter tanto a honra quanto o prazer juntos. Sei bem que tenho a honra enquanto outra tem o prazer; e da mesma forma, aquela que tem o prazer não tem a honra que é minha.”

Então o cavalheiro, que compreendeu perfeitamente a quem essas palavras eram dirigidas, respondeu:

“Senhora, a honra é inata em você, pois sua linhagem é tal que nenhum título, seja de rainha ou imperatriz, poderia aumentar a sua nobreza; ainda assim, sua beleza, graça e virtude merecem muito prazer, e quem a priva do que é seu faz um mal maior a si mesma do que a você, pois, por uma glória que se volta para sua vergonha, ela perde tanto prazer quanto você ou qualquer dama do reino poderia desfrutar. Posso lhe dizer, senhora, que se o Rei deixasse de lado sua coroa, ele não teria nenhuma vantagem sobre mim para satisfazer uma dama; ao contrário, estou certo de que, para contentar uma pessoa tão digna quanto você, ele realmente ficaria satisfeito em trocar seu temperamento pelo meu.”

A Rainha riu e respondeu:

“O Rei pode ter um temperamento menos vigoroso que o seu, mas o amor que ele me dedica me satisfaz bem, e eu prefiro isso a qualquer outro.”

“Senhora,” disse o cavaleiro, “se assim fosse, eu não teria pena de você. Tenho certeza de que você ficaria bem satisfeita se encontrasse no coração do Rei um amor semelhante ao seu; mas Deus o retirou de você para que, ao não encontrar o que deseja em seu marido, você não o faça seu deus na terra.”

“Confesso a você,” disse a Rainha, “que o amor que sinto por ele é tão grande que não se poderia encontrar algo semelhante em nenhum outro coração além do meu.”

“Perdoe-me, senhora,” disse o cavalheiro; “você não conhece o amor de todos os corações. Serei ousado em lhe dizer que você é amada por alguém cujo amor é tão grande e imensurável que o seu próprio amor é nada comparado a isso. Quanto mais ele percebe que o amor do Rei falha com você, mais o seu próprio amor cresce e se aumenta, a ponto de, se assim for de seu desejo, você poder ser recompensada por tudo o que perdeu.”

A Rainha começou a perceber, tanto pelas palavras quanto pela expressão do cavalheiro, que o que ele dizia vinha do fundo de seu coração. Lembrou-se também de que há muito tempo ele havia buscado com tanto zelo servi-la que havia caído em tristeza. Até então, ela havia pensado que isso se devia à sua esposa, mas agora estava firmemente convencida de que era por amor a ela. Além disso, a própria qualidade do amor, que se impõe a ser reconhecido quando é genuíno, fez com que ela se sentisse certa sobre o que tinha sido ocultado de todos. Ao olhar para o cavalheiro, que era muito mais digno de ser amado do que seu marido, refletiu que ele era abandonado por sua esposa, assim como ela mesma era pelo Rei; e então, tomada pela irritação e ciúmes contra seu marido, bem como movida pelo amor do cavalheiro, começou com suspiros e olhos lacrimejantes a dizer:

“Ah, eu! Será que a vingança prevalecerá onde o amor não teve efeito?”

O cavalheiro, que entendeu o que essas palavras significavam, respondeu:

“Vingança, senhora, é doce quando, em vez de matar um inimigo, dá vida a um verdadeiro amante[46]. Penso que é hora de a verdade fazer com que você abandone o amor tolo que sente por alguém que não a ama, e que um amor justo e razoável afaste o medo, que não pode residir em um coração nobre e virtuoso. Venha, senhora, deixemos de lado a grandeza de sua posição e consideremos que, entre todos os homens e mulheres do mundo, somos os mais enganados, traídos e zombados por aqueles que mais verdadeiramente amamos. Vinguemo-nos, senhora, não tanto para retribuí-los como merecem, mas para satisfazer esse amor que, por minha própria parte, não posso continuar a suportar e viver. E penso que, a menos que seu coração seja mais duro que granito ou diamante, você não pode deixar de sentir alguma faísca dos fogos que só aumentam quanto mais eu busco ocultá-los. Se a pena por mim, que estou morrendo de amor por você, não a mover para me amar, pelo menos a pena por si mesma deveria. Você é tão perfeita que merece conquistar o coração de todo homem honrado do mundo, e ainda assim é desprezada e abandonada por aquele por quem você menosprezou todos os outros.”

Ao ouvir essas palavras, a Rainha ficou tão profundamente comovida que, com medo de mostrar no seu semblante a angústia de sua mente, tomou o braço do cavalheiro e dirigiu-se a um jardim próximo ao seu apartamento. Lá, ela andou para lá e para cá por um longo tempo, sem conseguir dizer uma palavra a ele. O cavalheiro percebeu que ela estava quase conquistada, e quando chegaram ao final do caminho, onde ninguém poderia vê-los, fez uma declaração muito completa do amor que havia escondido dela por tanto tempo. Descobriram que estavam de acordo quanto ao assunto e concretizaram a vingança[47] que não podiam mais adiar. Além disso, concordaram que sempre que o marido fosse para o campo e o Rei deixasse o castelo para visitar a esposa na cidade, o cavalheiro deveria sempre voltar e ir ao castelo para ver a Rainha. Assim, os enganadores, sendo eles mesmos enganados, compartilhariam todos os prazeres que dois deles haviam pensado em manter para si.

Quando o acordo foi feito, a Rainha voltou para seu apartamento e o cavalheiro para sua casa, ambos tão satisfeitos que haviam esquecido todos os problemas anteriores. O ciúme que haviam sentido anteriormente com as visitas do Rei à dama foi transformado em desejo, de modo que o cavalheiro ia mais frequentemente do que o habitual para sua casa no campo, que ficava apenas meia légua de distância. Assim que o Rei soube de sua partida, nunca deixava de ir ver a dama; e o cavalheiro, quando a noite chegava, ia ao castelo para encontrar a Rainha, onde cumpria seu dever como tenente do Rei, de forma tão secreta que ninguém jamais descobriu.

Esse modo de vida durou um longo tempo; mas como o Rei era uma pessoa de posição pública, não conseguia esconder seu amor suficientemente bem para evitar que acabasse vindo ao conhecimento de todos; e todas as pessoas honoráveis sentiam grande pena do cavalheiro, embora vários jovens maliciosos costumassem zombar dele fazendo chifres nas suas costas. Mas ele sabia das zombarias e isso lhe dava grande prazer, de modo que passou a considerar seus chifres com a mesma estima que a coroa do Rei.

Um dia, porém, o Rei e a esposa do cavalheiro, ao notarem uma cabeça de cervo que estava exposta na casa do cavalheiro, não puderam se conter e riram, dizendo que a cabeça era adequada para a casa. Pouco depois, o cavalheiro, que não era menos espirituoso que o Rei, mandou escrever as seguintes palavras sobre a cabeça do cervo: – “Io porto le corna, ciascun lo vede, Ma tal le porta che no lo crede.”[48]

Quando o Rei voltou à casa, ele observou essas linhas recém-escritas e perguntou ao cavalheiro o seu significado, que respondeu:

“Se o segredo do Rei está oculto para o súdito, não é apropriado que o segredo do súdito seja revelado ao Rei. Contentai-vos em saber que aqueles que carregam chifres nem sempre têm seus chapéus levantados da cabeça. Alguns chifres são tão suaves que nunca desencaixam um chapéu, e são especialmente leves para aquele que pensa que não os tem.”

O Rei percebeu por essas palavras que o cavalheiro sabia algo sobre seu próprio comportamento, mas nunca teve suspeita do amor entre ele e a Rainha; pois quanto mais satisfeita a Rainha estava com a vida que seu marido levava, mais ela fingia estar angustiada com isso. E assim, de ambos os lados, viveram esse amor até que, finalmente, a velhice os alcançou.

“Aqui, senhoras, está uma história pela qual podeis ser guiadas, pois, como confesso de bom grado, ela vos mostra que, quando vosso marido vos dá chifres de veado, podeis dar-lhe chifres de cervo em troca.”

“Tenho certeza, Saffredent,” começou Ennasuite rindo, “que se ainda amásseis com a ardência que costumáveis, submeteríeis a chifres tão grandes quanto carvalhos se apenas pudésseis retribuí-los como desejásseis. No entanto, agora que vosso cabelo está ficando grisalho, é hora de deixar vossos desejos em paz.”

“Bela dama,” disse Saffredent, “embora eu esteja privado de esperança pela mulher que amo, e de ardor pela velhice, não está em meu poder enfraquecer minha inclinação. Já que me censurastes por um desejo tão honroso, dou-vos meu voto para contar a quarta história, para que possamos ver se podeis apresentar algum exemplo para refutar-me.”

Durante essa conversa, uma das damas começou a rir muito, sabendo que a que tomou as palavras de Saffredent para si não era tão amada por ele a ponto de ele sofrer chifres, vergonha ou injustiça por causa dela. Quando Saffredent percebeu que a dama que riu o entendia, ficou bem satisfeito e silenciou-se, para que Ennasuite pudesse começar; e assim ela fez, como segue:

“Para que Saffredent e o resto da companhia saibam que nem todas as damas são como a Rainha de que ele falou, e que nem todos os homens temerários e aventureiros alcançam seus objetivos, contarei uma história na qual vos revelarei a opinião de uma dama que considerava a frustração no amor mais difícil de suportar do que a própria morte. No entanto, não darei nomes, porque os eventos são tão recentes na mente das pessoas que temeria ofender alguns que estão próximos.”


[1] Há nada menos que vinte e seis fontes em Cauterets, sendo as águas de caráter sulfuroso ou salino. Os banhos de lama mencionados por Margarida eram tomados antigamente na fonte de Cesar Vieux, a meio caminho do Monte Peyraute, e assim chamados devido a uma tradição de que Júlio César se banhava ali. É pelo menos certo que esses banhos eram conhecidos pelos romanos.

Cauterets é frequentemente mencionado pelos autores antigos, e Rabelais se refere a ele nesta passagem: “A urina de Pantagruel era tão quente que, desde aquela época, não esfriou mais, e há um pouco dela na França, em diversos lugares, em Coderetz, Limous, Dast, Ballerue, Bourbonne e outros” (Livro ii. cap. xxxiii.).

[2] Os bascos dão o nome de Gave aos cursos de água que se tornam torrentes em determinadas estações. O Gave de Bearn, assim chamado porque passa pelo território da antiga cidade de Bearn, nasce nos Pirineus e passa por Pau até Sorde, onde se junta ao Adour, que deságua no mar em Bayonne. Atualmente, é conhecido como o Gave de Pau.

[3] A Abadia de Nossa Senhora de Serrance, mais corretamente conhecida como Sarrances, localizada no vale de Aspe, era habitada por monges da Ordem de Prémontré, sob a proteção de Santa Maria. Após uma aparição da Virgem nas proximidades, peregrinações a Sarrances foram realizadas nas festas de sua natividade (8 de setembro) e de sua assunção (15 de agosto). Em 1385, Gaston de Foix, que muito contribuiu para a riqueza da abadia, construiu uma residência nas proximidades, seguida pelo exemplo de outras famílias nobres, como os Gramonts e os Miollens. As peregrinações ganharam grande notoriedade no século XV, especialmente quando Luís XI visitou Sarrances acompanhado de seu médico Coictier. No entanto, em 1569, a abadia foi saqueada e incendiada pelos huguenotes, juntamente com a residência real e outras moradias. Os monges que conseguiram escapar das chamas foram mortos à espada.

[4] A Abadia de Saint-Savin de Tarbes, localizada entre Argelèz e Pierrefitte, no antigo condado de Lavedan, foi fundada por Carlos Magno. Conta-se que o Paladino Roland matou os gigantes Alabaster e Passamont em agradecimento pela hospitalidade dos monges. A abadia recebeu o nome de uma criança, filho de um conde de Barcelona, que viveu como eremita e realizou milagres na região. Por volta de 1100, o papa, apoiando o povo do vale de Aspe em uma disputa contra o abade de Saint-Savin, emitiu uma bula que proibia as mulheres de Lavedan de conceber por sete anos, e o mesmo se aplicava aos animais e árvores. Após seis anos, o abade se comprometeu a pagar um tributo anual a Aspe, o qual foi pago até a Revolução de 1789. A abadia tinha o direito à espádua direita de cada veado, javali e camurça-dos-Pirineus morto no vale, além de receber trutas, queijos e flores, sendo estas entregues ao abade, que beijava a mais bela donzela de Argelèz. Entre os privilégios dos monges estava o de ter suas camas arrumadas pelas jovens da vizinhança em dias festivos. No século X, Raymond de Bigorre doou o vale de Cauterets à abadia, com a condição de que uma igreja fosse construída e casas fossem mantidas para o uso das termas. Em 1290, Eduardo III da Inglaterra confirmou a posse de Cauterets aos monges. Em 1316, quando os habitantes da vila quiseram mudar sua situação, o abade consentiu, mas uma mulher vetou a decisão (todas as mulheres tinham direito a voto), frustrando o plano. A abadia obtinha uma renda significativa de Cauterets, alugando banhos e casas aos visitantes, conforme comprovam os contratos de 1617 e 1697 nos arquivos de Pau. Na época da rainha Margarida, a abadia era muito rica; o abade mencionado, segundo Le Roux de Lincy, era provavelmente Raymond de Fontaine, que governou de 1534 a 1540, sob a autoridade dos abades comendadores Anthoine de Rochefort e Nicolas Dangu, bispo de Sées. Alguns comentaristas do Heptamerão acreditam que este último foi o “Dagoucin”, contador de várias histórias.

[5] Em duas cópias manuscritas do Heptamerão na Bibliothèque Nationale, Paris, numeradas respectivamente em 1520 e 1524, após as palavras “não com os homens”, segue-se “nos homens há alguma misericórdia, mas nos animais nenhuma”.

[6] Peyrechitte é evidentemente uma referência a Pierrefitte, um vilarejo na margem esquerda do Gave, entre Argelèz e Cauterets.

[7] Essa igreja ainda existe, com um estilo predominantemente românico e quase sem ornamentação. No entanto, há algumas pinturas antigas que retratam os milagres de Saint-Savin, e o túmulo do santo, preservado até hoje, teria aproximadamente mil e duzentos anos. O vilarejo se organiza em torno da igreja, formando uma rua larga cercada por casas do século XV, que Margarida e seus amigos provavelmente contemplaram durante sua visita.

[8] De acordo com o manuscrito 1520 (Bib. Nat., Paris), o abade também forneceu a eles os melhores cavalos de Lavedan e boas capas de Bearn. Os cavalos de Lavedan eram famosos por sua velocidade e espírito, e a capa de Bearn era uma vestimenta com capuz.

[9] Os reis de Navarra foram por dois séculos senhores de Bearn, mas Bearn ainda mantinha seus antigos costumes e tinha seu governo especial. O senhor de Bearn a que nos referimos aqui era Henry d’Albret, o segundo marido de Margarida.

[10] Margaret lia parte das Escrituras todos os dias, afirmando que a leitura preservava a pessoa “de todos os tipos de males e tentações diabólicas” (Histoire de Foix, Btarn, et Navarre, de P. Olhagaray, Paris, 1609. p. 502).

[11] Margarida faz referência à tradução francesa do Decamerão, realizada por seu secretário Anthoine le Maçon e publicada pela primeira vez em Paris em 1545. De Lincy e Montaiglon acreditam, portanto, que o prólogo do Heptamerão foi escrito após essa data. No entanto, Dillaye afirma que a tradução de Le Maçon já circulava na Corte em manuscrito muito antes de ser impressa. Essa alegação é, em parte, confirmada pela dedicatória de Le Maçon a Margarida, cujas passagens mais relevantes estão incluídas no Apêndice ao Prólogo.

[12] O Delfim mencionado é o segundo filho de Francisco I, que mais tarde se tornaria Henrique II. Ele assumiu o título de Delfim após a morte de seu irmão mais velho em 10 de agosto de 1536. A Delfina é Catarina de Médici, esposa de Henrique, com quem se casou em 1533. Já Madame Margarida, segundo Montaiglon, seria a própria rainha de Navarra, frequentemente chamada assim na corte de seu irmão. No entanto, Dillaye discorda, argumentando que a rainha não elogiaria a si mesma de forma tão explícita e que, na verdade, ela se referia à sua sobrinha, Margarida de Berry, nascida em 1523 e casada com o duque de Saboia.

[13] O parto mencionado é o de Catarina de Médici, que, após permanecer sem filhos durante dez anos de casamento, deu à luz um filho, posteriormente Francisco II, em janeiro de 1543. A paz anteriormente mencionada parece ter sido aquela assinada em Crespy em setembro de 1544. No entanto, tanto Montaiglon quanto Dillaye opinam que uma ou duas palavras estão faltando no manuscrito e que Margarida pretendia sugerir o rompimento da paz em 1543, quando Henrique VIII se aliou ao imperador Carlos V contra Francisco I.

[14] Essa passagem indica claramente que a rainha pretendia escrever um Decamerão.

[15] Alusão às imagens, medalhas e braceletes sacros que as pessoas traziam consigo das peregrinações.

[16] Naquela época, dez horas era o horário do almoço da Corte. Cinquenta anos antes, as pessoas costumavam almoçar às oito da manhã. Luís XII, entretanto, mudou o horário de suas refeições para agradar sua esposa, Maria da Inglaterra, acostumada a jantar ao meio-dia.

[17] Os títulos não existem na edição original do Heptamerão. Foram dados para esta edição em português.

[18] Os incidentes dessa história são históricos e ocorreram em Alençon e Paris entre 1520 e 1525.

[19] O duque Charles aqui mencionado é o primeiro marido de Margarida.

[20] Sées, ou Séez, localizada no Orne, próxima a Alençon e famosa por sua catedral gótica, é um dos bispados mais antigos da Normandia. Há quem diga que Ricardo Coração de Leão fez penitência nesse lugar e obteve absolvição por sua conduta em relação ao pai, Henrique II. Na época em questão, o bispo de Sées era Jaime de Silly. Seu pai, também chamado Jaime de Silly, era senhor de Lonray, Vaux-Pacey e outros locais, além de ser favorito e camareiro do rei Luís XII. Em 1501, ele tornou-se mestre da artilharia da França. O segundo Jaime de Silly, nascido em Caen, foi ordenado bispo de Sées em 26 de fevereiro de 1511; além disso, ele também foi abade de St. Vigor e de St. Pierre-sur-Dives, onde restaurou e embelezou a igreja abacial. Em 1519, consagrou um convento para mulheres de origem nobre, fundado por Margarida e seu primeiro marido em Essey, a cerca de trinta quilômetros de Alençon, cujas ruínas ainda são visíveis. Um ano depois, Francis Rometens dedicou a ele uma edição das cartas de Pico della Mirandola. Jaime de Silly faleceu em 24 de abril de 1539, em Fleury-sur-Aiidellé, a aproximadamente vinte e cinco quilômetros de Rouen, sendo enterrado em sua igreja episcopal. Seu sucessor na Sé de Sées foi Nicolas Danguye, ou Dangu (um filho natural do Cardeal Duprat), com quem Frank tenta identificar Dagoucin, um dos narradores do Heptamerão.

[21] Essa era, obviamente, a própria Margarida.

[22] Gilles du Mesnil, tenente-general do bailio presidencial e bailiado de Alençon.

[23] Argentan, no Orne, a pouco mais de quarenta quilômetros de Alençon, tinha sido um viscondado distinto, mas nesse período pertencia ao ducado de Alençon.

[24] O nome de jacobinos havia sido dado aos monges da Ordem Dominicana, alguns dos quais tinham um mosteiro nos subúrbios de Argentan.

[25] Naquela época, era comum que as pessoas buscassem abrigo em igrejas, mosteiros e conventos, embora houvesse pouco respeito pelos refugiados. Muitas vezes, seus esconderijos eram cercados, o que os deixava sem comida e os forçava a se render. Após um decreto de 1515 que restringiu consideravelmente esse direito, Francisco I aboliu o direito de refúgio em 1539.

[26] As prostitutas eram proibidas de testemunhar nos tribunais franceses nessa época.

[27] Henrique VIII.

[28] Francisco I.

[29] As cartas de remissão que foram concedidas a St. Aignan nessa ocasião podem ser encontradas no Apêndice do Conto I. Deve-se notar que Margarida, em seu conto, dá vários detalhes que St. Aignan não deixou de ocultar para obter seu perdão.

[30] Trata-se da prática supersticiosa conhecida como envoûtement, que, segundo Léon de Laborde, era amplamente reconhecida na França em 1316 e continuou até o século XVI. Em 1330, o célebre Robert d’Artois, ao se refugiar em Brabant, dedicou-se a espetar imagens de cera que representavam o rei Filipe VI, seu cunhado, e a rainha, sua irmã (Mémoires de l’Académie des Inscriptions, vol. xv, p. 426). Durante a Liga Católica, ao final do século XVI, os opositores de Henrique III e do rei de Navarra ressuscitaram essa prática. Além disso, conforme um documento dos Manuscritos Harley (18.452, Bib. Nat. Paris), Cosmo Ruggieri, o astrólogo florentino e conselheiro íntimo de Catarina de Médici, foi acusado em 1574 de ter criado uma figura de cera com a intenção de lançar um feitiço sobre Carlos IX.

[31] João Brinon, conselheiro do rei, presidente do Parlamento de Rouen, chanceler de Alençon e Berry, além de senhor de Villaines (perto de Dreux), Remy e Athueuil (próximo a Montfort-l’Amaury), pertencia a uma antiga família de funcionários judiciais. Ele era muito apreciado por Margarida, a quem se dirigiu em várias cartas, e esteve presente na assinatura do contrato de casamento dela com Henrique II de Navarra (Lettres de Marguerite, de Génin, p. 444). Casou-se com Pernelle Perdrier, que lhe trouxe o senhorio de Médan, perto de Poissy, além de outros feudos significativos, que ela presenteou ao rei após sua morte. Seus méritos foram exaltados pelo poeta Le Chandelier, e Floquet, em sua História do Parlamento da Normandia, afirma que Brinon prestou serviços valiosos à França como negociador na Itália em 1521 e na Inglaterra em 1524. O Journal d’un Bourgeois de Paris menciona que ele faleceu em Paris em 1528, aos quarenta e quatro anos, e foi sepultado na Igreja de Saint-Séverin. Segundo a Bibliothèque Françoise de La Croix du Maine, Brinon foi autor de um poema intitulado Les Amours de Sydire.

[32] Luísa de Savoy.

[33] João de la Barre, um favorito de Francisco I. O “Provost de Paris” refere-se ao oficial responsável pela administração da justiça e pela segurança pública na cidade de Paris durante o Antigo Regime francês.

[34] Esse trecho é explicado por Henri Bouché, que, em sua Histoire Chronologique de Provence (vol. ii, p. 554), afirma que, após a viagem de cativeiro de Francisco I na Espanha, foi considerado conveniente para a França ter várias galés no Mediterrâneo. Assim, “foram dadas ordens para a construção de treze em Marselha – quatro para o Barão de Saint-Blancart, tantas para Andrea Doria, etc.” O Barão de Saint-Blancart mencionado aqui era Bernard d’Ormezan, Almirante dos mares do Levante, Conservador dos portos e da torre de Aigues-Mortes, além de General das galés do Rei. Em 1523, ele derrotou as forças navais do Imperador Carlos V e, em 1525, conduziu Margarida até a Espanha.

[35] Os incidentes desta história provavelmente ocorreram em Amboise, após o mês de agosto de 1530, quando Margarida deu à luz seu filho João.

[36] Amboise se localiza na margem esquerda do Loire, e à época não havia construções na margem oposta. No entanto, a ponte sobre o rio cruza a ilha de São João, coberta por casas, e é aqui que a esposa do carreteiro provavelmente residia.

[37] A Igreja de São Florentim mencionada não deve ser confundida com a de mesmo nome próxima a uma das entradas de Amboise. Erguida no século X por Foulques Nera de Anjou, era uma igreja frequentada pelos habitantes da cidade, embora estivesse situada dentro dos limites do castelo. Por essa razão, a rainha Margarida a chama de “igreja do castelo”.

[38] Brantôme, em seu relato sobre Maria, Rainha da Escócia, menciona esse conto. Após descrever que o chefe ficou sozinho com o cadáver decapitado da rainha, ele acrescenta: “Ele então tirou os sapatos dela e a manipulou como quis. Suspeita-se que ele a tenha tratado da mesma forma que aquele infeliz tropeiro, nas Cem Histórias da Rainha de Navarra, tratou a pobre mulher que matou. Tentações mais estranhas do que essa ocorrem aos homens. Depois que ele (o carrasco) fez o que quis, o corpo (da rainha) foi levado para um quarto ao lado do de seus servos.” (OEuvres de Brantôme, de Lalanne, vol. vii, p. 438).

[39] À época, as pessoas comuns eram enterradas em mortalhas, não em caixões.

[40] O trecho não apresenta as palavras exatas da Bíblia, mas uma combinação de várias passagens do Livro do Apocalipse.

[41] Trata-se de uma narrativa histórica que teria ocorrido em Nápoles por volta de 1450.

[42] O rei mencionado nesta narrativa é provavelmente Alfonso V, rei de Aragão, nascido em 1385, que sucedeu seu pai, Fernando o Justo, em 1416. Ele já havia realizado diversas expedições à Sardenha e à Córsega quando, em 1421, Joana II de Nápoles solicitou sua ajuda em um conflito contra Luís de Anjou. Alfonso atendeu ao pedido e partiu para a Itália, mas logo entrou em desavença com Joana, devido à maneira como tratou seu amante, o Grande Senescal Caraccioli. Ao falecer em 1438, Joana deixou sua coroa a Renato, irmão de Luís de Anjou, cujas reivindicações Alfonso imediatamente contestou. Durante o cerco a Gaeta, ele foi derrotado e capturado, mas acabou libertado e retornou à guerra. Em 1442, finalmente garantiu o controle de Nápoles e forçou Renato a deixar a Itália. Desde então, Alfonso nunca mais voltou à Espanha, estabelecendo-se em seus domínios italianos e adotando o título de Rei das Duas Sicílias. Ele recebeu o epíteto de Magnânimo por sua generosidade com alguns conspiradores, cuja lista rasgou sem ler, afirmando: “Mostrarei a esses nobres que me preocupo mais com suas vidas do que eles mesmos.”

O título de O Aprendiz foi mais tarde atribuído a ele, pois, assim como seu rival Renê de Anjou, ele cultivava as letras e protegia muitos dos principais intelectuais da Itália. Alfonso gostava de passear pelas ruas de Nápoles sem acompanhantes, e certa vez, quando foi advertido sobre esse hábito, respondeu: “Um pai que anda entre seus filhos não tem motivo para temer.” Embora tivesse muitas qualidades notáveis, Alfonso, como indicam Muratori e outros escritores, também possuía uma disposição extremamente libertina. Sua falta de crença na fidelidade conjugal é evidenciada por sua frase: “Para garantir a felicidade doméstica, o marido deve ser surdo e a esposa cega.” Ele teve várias amantes e vivia em conflito com sua esposa. Morreu em 1458, aos setenta e quatro anos, deixando suas possessões italianas a Fernando, Duque de Calábria, seu filho natural com uma espanhola chamada Margarida de Hijar. Adicionalmente, Brantôme faz uma breve alusão a este conto do Heptamerão em suas Vies des Dames Galantes (Disc. i.), descrevendo-a como “muito boa.”

[43] Significa que ele usou sua autoridade de soberano para a realização de seus desejos amorosos.

[44] Segue-se aqui a edição de 1558, pois os manuscritos são obscuros.

[45] Essa era Maria, filha de Henrique III de Castela, que se casou com o rei Alfonso em Valência, no dia 29 de junho de 1415. O historiador espanhol Juan de Mariana relata que a cerimônia foi realizada com grande pompa pelo cismático Papa Bento XIII. A noiva trouxe como dote 200.000 ducados e diversas posses territoriais. No entanto, o casamento foi infeliz devido à natureza libertina de Alfonso, e há relatos de que a rainha estrangulou uma de suas amantes, Margarida de Hijar, em um acesso de ciúme. Para evitar a interferência da esposa, Alfonso direcionou sua atenção para expedições no exterior. Segundo os autores de L’Art de Vérifier les Dates, a rainha Maria nunca esteve na Itália, uma afirmação corroborada por Mariana, que indica que, enquanto Alfonso governava Nápoles, sua esposa administrava o reino de Aragão, envolvendo-se em guerras e assinando tréguas e tratados de paz com Castela. Assim, no Heptamerão, Margarida se desvia da precisão histórica ao retratar a rainha como residente em Nápoles ao lado do marido. Além disso, considerando a data do casamento de Maria, ela não poderia ser jovem quando Alfonso assegurou o trono napolitano. É razoável supor que a rainha de Navarra alterou intencionalmente a cronologia de sua história e que os eventos mencionados realmente ocorreram na Espanha antes da partida de Alfonso para a Itália. Não há referência a Maria em testamento de seu marido, um documento notável que ainda existe. Uma carta que o Papa Calixto II escreveu a ela revela que, no final da vida, o rei desejava repudiá-la para se casar com uma amante italiana chamada Lucrécia Alânia. Esta última foi a Roma para tratar da questão, mas o papa recusou-se a negociar com ela, escrevendo a Maria para que fosse prudente, mas afirmando que não dissolveria o casamento, para evitar que Deus o punisse por se envolver em um crime tão grave. Maria faleceu alguns meses após seu marido, em 1458, e foi enterrada em um convento em Valência.

[46] Como a frase acima foi omitida no manuscrito. seguido nesta edição, ela foi fornecida a partir do manuscrito 1520 da Bibliothèque Nationale.

[47] Essa expressão faz alusão aos mistérios ou peças teatrais religiosas frequentemente apresentadas nos séculos XV e XVI. O Mistério da Vingança, que retratava os infortúnios que recaíram sobre aqueles que participaram da crucificação de Jesus Cristo, como Pôncio Pilatos, e terminava com a captura e a destruição de Jerusalém, vinha depois dos Mistérios da Paixão e da Ressurreição.

[48] “Todos os homens podem ver os chifres que eu tenho; Mas há um que os usa e não sabe.”

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