Antropologia Filosófica de Ernst Cassirer

Você irá ler a seguir um trecho da obra “Antropologia Filosófica” de Ernst Cassirer. Caso deseje saber mais sobre a obra, ou como adquiri-la, clique aqui, ou na imagem da capa do livro.

Primeira Parte: O que é homem?

I. A crise no conhecimento do homem

1.           Reconhece-se, de modo geral, que o autoconhecimento constitui o objetivo supremo da investigação filosófica. Em todos os conflitos entre as diferentes escolas, esse objetivo permaneceu inalterado e inabalável: provou ser o ponto arquimediano, o centro fixo e imutável de todo pensamento. Nem mesmo os pensadores mais céticos negaram a possibilidade e a necessidade do autoconhecimento. Desconfiavam de todos os princípios gerais sobre a natureza das coisas, mas essa desconfiança buscava inaugurar novos e mais seguros modos de investigação. Na história da filosofia, o ceticismo foi, muitas vezes, apenas o reverso de um humanismo resoluto. Ao negar e destruir a certeza objetiva do mundo exterior, o cético espera conduzir todos os pensamentos do homem para si mesmo. O autoconhecimento, declara ele, é o requisito prévio e principal para a realização que nos conecta ao mundo exterior e nos permite desfrutar de nós mesmos.

Devemos buscar romper a cadeia de nossa verdadeira liberdade. “A maior coisa do mundo é saber ser de si mesmo”, escreve Montaigne. No entanto, nem mesmo essa abordagem do problema – o método introspectivo – nos protege contra as dúvidas céticas. A filosofia moderna começou com o princípio de que a evidência de nosso próprio ser é invencível e invulnerável. Porém, o progresso do conhecimento psicológico mal tem confirmado esse princípio cartesiano. A tendência geral do pensamento, atualmente, dirige-se para o polo oposto. Poucos psicólogos modernos reconheceriam ou recomendariam um método puramente introspectivo. Em geral, afirmam que um método assim é, na verdade, bastante precário. Estão convencidos de que não é possível empreender uma psicologia científica sem adotar uma postura estritamente comportamentalista e objetiva. Mas um comportamentalismo consistente e radical também não atinge seu objetivo. Ele pode nos alertar contra possíveis erros metodológicos, mas não resolve todos os problemas da psicologia humana. Podemos criticar ou desconfiar do ponto de vista puramente introspectivo, mas não podemos suprimi-lo ou eliminá-lo. Sem introspecção, sem uma percepção imediata dos sentimentos, emoções, percepções e pensamentos, sequer poderíamos definir o campo da psicologia humana.

No entanto, é preciso reconhecer que, seguindo exclusivamente esse caminho, jamais alcançaremos uma visão abrangente da natureza humana. A introspecção nos revela apenas aquele pequeno setor da vida humana que é acessível à nossa experiência individual; jamais poderá abarcar completamente todo o campo dos fenômenos humanos. Mesmo que conseguíssemos reunir e combinar todos os dados, teríamos em mãos um retrato pobre e fragmentado, um mero torso da natureza humana.

Aristóteles nos diz que todo conhecimento tem origem em uma tendência fundamental da natureza humana, que se manifesta nas ações e reações mais elementares do homem. Toda a esfera da vida sensorial é determinada e impregnada por essa tendência:

Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Uma prova disso está no prazer que os sentidos nos proporcionam; pois, além de sua utilidade, eles são desejados por si mesmos, e, acima de todos, o sentido da visão. Porque, não apenas quando buscamos fazer algo, mas também na ociosidade, preferimos o ver a qualquer outra coisa. Isso se deve ao fato de que esse sentido, mais que qualquer outro, nos permite conhecer e revelar muitas diferenças entre as coisas. (Metafísica, Livro A, I, 980a 21).

Essa passagem é muito característica do conceito de conhecimento que Aristóteles, diferentemente de Platão, apresenta. Um elogio filosófico à vida sensorial do homem como esse seria impossível na obra de Platão; esse jamais compararia o desejo de conhecimento ao prazer que os sentidos nos proporcionam. Em Platão, a vida dos sentidos está separada da vida do intelecto por um amplo e intransponível abismo. Conhecimento e verdade pertencem a uma ordem transcendental, ao reino das ideias puras e eternas. O próprio Aristóteles está convencido de que o conhecimento científico não é possível apenas pelo ato de percepção; porém, ao negar a separação que Platão estabelece entre o mundo ideal e o empírico, fala como um biólogo. Ele tenta explicar o mundo ideal, o mundo do conhecimento, em termos de vida. Segundo Aristóteles, em ambos os reinos encontramos a mesma continuidade ininterrupta. Na natureza, assim como no conhecimento humano, as formas superiores se desenvolvem a partir das inferiores. Percepção sensível, memória, experiência, imaginação e razão estão conectadas por um vínculo comum; não são senão etapas diferentes e expressões diversas de uma única e mesma atividade fundamental, que atinge sua perfeição suprema no ser humano, mas da qual, de algum modo, participam os animais e todas as formas de vida orgânica.

Se adotarmos esse ponto de vista biológico, imaginaríamos que a primeira etapa do conhecimento humano teria que tratar exclusivamente do mundo exterior. No que diz respeito às suas necessidades imediatas e interesses práticos, o ser humano depende de seu ambiente físico. Ele não pode viver sem adaptar-se constantemente às condições do mundo que o cerca. Os primeiros passos rumo à vida intelectual e cultural podem ser descritos como atos que implicam uma espécie de adaptação mental ao ambiente. Contudo, no progresso da cultura, muito cedo encontramos uma tendência oposta à vida. Desde os primeiros momentos da consciência humana, vemos que a perspectiva extrovertida é acompanhada e complementada por uma visão introvertida da vida. Quanto mais avançamos no desenvolvimento da cultura em relação às suas origens, mais essa visão introvertida ganha destaque. Só gradualmente a curiosidade natural do homem começa a mudar de direção. Podemos estudar esse desenvolvimento gradual em quase todas as formas de sua vida cultural. Nas primeiras explicações míticas do universo, encontramos sempre uma antropologia primitiva ao lado de uma cosmologia primitiva. A questão da origem do mundo está inextricavelmente entrelaçada com a questão da origem do homem.

A religião não destrói essas primeiras explicações mitológicas; pelo contrário, preserva a cosmologia e a antropologia míticas, dotando-as de uma nova forma e maior profundidade. Portanto, o autoconhecimento não é considerado um interesse puramente teórico; não é um simples tema de curiosidade ou especulação; ele é reconhecido como a obrigação fundamental do homem. Os grandes pensadores religiosos foram os primeiros a inculcar essa exigência moral. Em todas as formas superiores de vida religiosa, a máxima “conhece-te a ti mesmo” é considerada como um imperativo categórico, como uma lei moral e religiosa definitiva.

Sentimos com esse imperativo, por assim dizer, uma inversão súbita do primeiro instinto natural de conhecimento; percebemos uma transmutação de todos os valores. Podemos observar o curso concreto desse desenvolvimento na história de todas as religiões universais: no judaísmo, no budismo, no confucionismo e no cristianismo.

O mesmo princípio se manifesta na evolução geral do pensamento filosófico. Em suas etapas primitivas, a filosofia grega parece interessar-se exclusivamente pelo universo físico; a cosmologia claramente predomina sobre todos os outros ramos da investigação filosófica. Contudo, o que caracteriza a profundidade e a amplitude do espírito grego é o fato de que quase todo novo pensador representa, ao mesmo tempo, um novo tipo geral de pensamento. Após a filosofia física da escola de Mileto, os pitagóricos descobrem uma filosofia matemática, enquanto os eleatas são os primeiros a conceber o ideal de uma filosofia lógica. Heráclito se encontra na fronteira entre o pensamento cosmológico e o antropológico; embora continue falando como um filósofo natural e pertença ao grupo dos antigos fisiólogos, está convencido de que não se pode penetrar no segredo da natureza sem antes estudar o segredo do homem. É necessário cumprir a exigência da autorreflexão se quisermos apreender a realidade e compreender seu sentido; por isso, Heráclito conseguiu caracterizar toda a sua filosofia com estas duas palavras: ἑδιζησάμην ἐμεωυτόν (“busquei-me a mim mesmo”)[1]. Mas essa nova tendência do pensamento, embora de certo modo inerente à primitiva filosofia grega, não chegou à sua plena maturidade até a época de Sócrates. É, portanto, o problema do homem que separa o pensamento socrático do pré-socrático.

Sócrates nunca ataca ou critica as teorias de seus predecessores, nem pretende introduzir uma nova doutrina filosófica. No entanto, todos os antigos problemas são vistos por ele sob uma nova luz, porque são referidos a um novo foco intelectual. Os problemas da filosofia natural e da metafísica subitamente se veem eclipsados por uma nova questão, que parece absorver, daí em diante, todo o interesse teórico do homem. Já não encontramos em Sócrates uma nova teoria da natureza ou uma nova doutrina lógica, tampouco uma teoria ética coerente e sistemática, no sentido em que seria desenvolvida pelos sistemas éticos posteriores; há apenas uma questão: o que é o homem?

Sócrates sempre sustenta e defende o ideal de uma verdade objetiva, absoluta e universal, mas o único universo que ele conhece, ao qual todas as suas indagações se referem, é o universo do homem. Sua filosofia, se é que possui uma, é estritamente antropológica. Em um dos diálogos platônicos, Sócrates é descrito em conversa com seu discípulo Fedro. Eles passeiam e logo chegam a um lugar fora dos muros de Atenas; Sócrates está admirado com a beleza do local. Ele elogia o cenário, exaltando-o com entusiasmo. Mas Fedro o interrompe, surpreso de que Sócrates se comporte como um estrangeiro sendo guiado por um cicerone. “Você alguma vez ultrapassou os portões da cidade?”, pergunta Fedro. Sócrates responde, com um sentido simbólico:

Certamente não, meu bom amigo, e espero que me desculpe ao ouvir minha razão, a saber, que sou um amante do conhecimento, e os homens que habitam na cidade são meus mestres, não as árvores ou os campos (Platão, Fedro, 230).

Contudo, se estudarmos os diálogos socráticos de Platão, em nenhuma parte encontraremos uma solução direta para esse novo problema. Sócrates nos oferece uma análise detalhada e meticulosa das diversas qualidades e virtudes humanas. Ele pretende determinar a natureza dessas qualidades e defini-las: bondade, justiça, temperança, coragem e assim por diante, mas nunca avança para definir o que é o homem. Como explicar essa aparente lacuna? Será que Sócrates adotou deliberadamente um caminho indireto, um método que lhe permitia apenas arranhar a superfície de seu problema, sem jamais penetrar em seu núcleo? Nesse ponto, porém, mais do que em qualquer outro, precisamos desconfiar da ironia socrática.

Curiosamente, a resposta negativa de Sócrates lança uma luz inesperada sobre a questão e nos fornece a chave positiva de sua concepção do homem. A natureza do homem, segundo Sócrates, não pode ser descoberta da mesma forma que desvelamos a natureza das coisas físicas. Enquanto descrevemos as coisas físicas em termos de suas propriedades objetivas, o homem só pode ser descrito e definido em termos de sua consciência. Esse fato levanta um problema inteiramente novo e insolúvel para nossos modos habituais de investigação. A observação empírica e a análise lógica, no sentido em que esses termos foram empregados na filosofia pré-socrática, mostraram-se ineficazes e inadequadas, pois apenas no contato direto com os seres humanos é possível penetrar no caráter do homem. Para compreendê-lo, é necessário enfrentá-lo, encará-lo face a face. Não se trata, portanto, de um novo conteúdo objetivo, mas de uma nova atitude e função do pensamento que constitui o traço distintivo da filosofia socrática. A filosofia, que até então havia sido concebida como um monólogo intelectual, transformou-se em diálogo.

Somente por meio do pensamento dialógico ou dialético podemos nos aproximar do conhecimento da natureza humana. Antes, a verdade podia ser concebida como uma espécie de objeto acabado, apreensível por meio do esforço de um pensador individual e passível de ser apresentada e comunicada aos outros. Sócrates já não compartilha dessa visão. É impossível, segundo Platão na República, implantar a verdade na alma de alguém, assim como é impossível implantar a visão em uma pessoa cega de nascença.

A verdade, por sua própria natureza, é uma criação do pensamento dialético; ela só pode ser alcançada pela constante cooperação entre sujeitos, numa troca mútua de perguntas e respostas. Não é um objeto empírico; deve ser entendida como o produto de um ato social. Aqui encontramos a nova resposta, indireta, à pergunta: o que é o homem? Diz-se que ele é um ser em constante busca de si mesmo, que em todo momento de sua existência deve examinar e escrutinar as condições de sua própria vida. É nesse escrutínio, nessa atitude crítica em relação à vida humana, que reside o valor dessa existência. “Uma vida não examinada”, afirma Sócrates na Apologia, “não vale a pena ser vivida”. Podemos resumir o pensamento socrático dizendo que ele define o homem como aquele ser que, ao receber uma pergunta racional, é capaz de dar uma resposta racional. Tanto seu conhecimento quanto sua moralidade estão contidos nesse círculo. Por meio dessa faculdade fundamental de “responder” a si mesmo e aos outros, o homem se torna um ser “responsável”, um sujeito moral.

2.           Essa primeira resposta foi, em certo sentido, uma resposta que se tornou clássica. O problema socrático e o método socrático jamais podem ser esquecidos ou ignorados. Por meio do pensamento platônico, eles deixaram sua marca[2] em todo o desenvolvimento subsequente da civilização. Talvez não haja caminho mais seguro ou mais breve para nos convencermos da profunda unidade e da perfeita continuidade do pensamento filosófico antigo do que comparar essas primeiras etapas da filosofia grega com um dos produtos mais tardios e nobres da cultura greco-romana: o livro dos Solilóquios do imperador Marco Aurélio.

À primeira vista, essa comparação pode parecer um tanto arbitrária, já que Marco Aurélio não foi um pensador original nem seguiu um método estritamente lógico. Ele próprio agradece aos deuses pelo fato de que, ao se apaixonar pela filosofia, não se tornou um escritor de tratados filosóficos ou um decifrador de silogismos[3]. Mas Sócrates e Marco Aurélio concordam que, para descobrir a verdadeira natureza ou essência do homem, é necessário, antes, remover todos os traços externos e acidentais de seu ser.

Não digas que é próprio do homem qualquer uma dessas coisas que não lhe pertencem como tal. Não podem ser reivindicadas por um homem; sua natureza não as garante; elas não são perfeições dessa natureza. Portanto, nem o fim pelo qual o homem vive está nessas coisas, nem o que é perfeito nesse fim, ou seja, o bem. Além disso, se alguma dessas coisas correspondesse ao homem, não aconteceria de ele desprezá-las e lhes voltar as costas […] mas acontece que, quanto mais um homem se mantém livre dessas coisas e de outras semelhantes, com equanimidade, mais virtuoso ele é. (Marco Aurélio, op. cit., Livro V, parágrafo 15).

O que chega ao homem vindo de fora é nulo e vão; sua essência não depende das circunstâncias externas, mas exclusivamente do valor que atribui a si mesmo. Riquezas, posição, distinção social, a própria saúde ou as aptidões intelectuais, tudo isso é indiferente (άδιάθορον). A única coisa que importa é a tendência, a atitude interna da alma; e este princípio interno não pode ser perturbado. “Aquilo que não pode tornar um homem pior também não pode tornar sua vida pior, nem a prejudicar de fora ou de dentro.” (idem, Livro IV, parágrafo 8).

A exigência do autoquestionamento nos é apresentada, consequentemente, no estoicismo, assim como na concepção de Sócrates, como o privilégio do homem e seu dever fundamental[4]. Porém, este dever é entendido agora de forma mais ampla; não apenas possui um fundo moral, mas também universal e metafísico. “Nunca deixes de te perguntar esta questão e de te examinares deste modo: que relação tenho com esta parte de mim mesmo que chamam de razão governante (το ήγε ονικόν)?” (idem, Livro V, parágrafo 11).

Quem vive em harmonia consigo mesmo, com seu demônio interior, vive em harmonia com o universo; pois ambos, a ordem universal e a ordem pessoal, são apenas expressões e manifestações diferentes de um princípio comum subjacente. O homem demonstra seu poder inerente de crítica, de julgamento e de discernimento ao conceber que, nessa correlação, a parte dirigente corresponde ao “eu” e não ao universo. Uma vez que o “eu” conquistou sua forma interior, esta permanece inalterável e imperturbável. “Uma vez que se tenha formado uma esfera contínua, redonda e verdadeira” (idem, Livro VIII, parágrafo 41).

Essa é, por assim dizer, a última palavra da filosofia grega, que contém e desdobra o espírito com que originalmente foi concebida. Este espírito era um espírito de julgamento, de discernimento crítico entre o ser e o não-ser, entre a verdade e a ilusão, entre o bem e o mal. A vida é, em si mesma, algo mutável e fluido, mas seu verdadeiro valor deve ser buscado em uma ordem eterna que não admite mudanças. Este valor não se encontra no mundo dos sentidos, pois só podemos apreendê-lo com o poder de nosso julgamento, que é o poder central do homem, a fonte comum da verdade e da moral. É a única coisa na qual o homem depende inteiramente de si mesmo; ele é livre, autônomo, autossuficiente[5]. Diz Marco Aurélio:

Não te disperses, não sejas demasiadamente impaciente, sê teu próprio mestre e encara a vida como um homem, como um ser humano, como um cidadão, como uma criatura mortal… As coisas não afetam a alma, pois são externas e imutáveis; nossa alteração provém apenas do julgamento que formamos em nós mesmos. Todas estas coisas que vês mudam imediatamente e já não serão mais; e tem em mente constantemente quantas dessas mudanças já testemunhaste. O universo é mudança; a vida é estabilidade.[6]

O maior mérito dessa concepção estoica do homem reside no fato de que ela lhe proporciona um profundo sentimento de sua harmonia com a natureza e, ao mesmo tempo, de sua independência moral em relação a ela. Na mente do filósofo estoico, essas afirmações não entram em conflito; são correlativas. O homem encontra-se em perfeito equilíbrio com o universo e sabe que esse equilíbrio não deve ser perturbado por nenhuma força exterior. Esse é o caráter dual da impassibilidade estoica (αταραξία), que se revelou como uma das forças formadoras mais poderosas da cultura antiga. Contudo, encontrou-se repentinamente diante de uma força nova, até então desconhecida. O conflito com essa nova força abalou os verdadeiros alicerces do ideal clássico do homem. A teoria estoica e a cristã sobre o homem não são necessariamente hostis entre si. Na história das ideias, ambas trabalharam lado a lado, e muitas vezes as encontramos intimamente ligadas em um mesmo pensador. Contudo, há sempre um ponto em que o antagonismo entre o ideal cristão e o estoico se mostra irreconciliável. A independência absoluta do homem, considerada pela teoria estoica como sua virtude fundamental, converte-se, na teoria cristã, em seu vício fundamental e em seu maior erro. Enquanto o homem perseverar nesse erro, não há possibilidade de salvação para ele. A luta entre essas duas concepções antagônicas durou vários séculos e, no início da era moderna, nos dias do Renascimento e no século XVII, ainda se fazia sentir com toda a sua força[7].

Nesse ponto, podemos captar um dos traços mais característicos da filosofia antropológica: ela não é, como outras áreas da investigação filosófica, um desenvolvimento lento e contínuo de ideias gerais. Na história da lógica, da metafísica e da filosofia natural, encontramos as oposições mais agudas. Essas podem ser descritas, em termos hegelianos, como um processo dialético no qual cada tese é seguida por sua antítese. No entanto, existe uma consistência interna, uma ordem lógica que conecta as diferentes etapas desse processo dialético. Mas a filosofia antropológica apresenta um caráter bastante diferente. Se quiséssemos captar seu significado e importância reais, precisaríamos escolher não a maneira épica de descrição, mas a maneira dramática; pois não estamos diante de um desenvolvimento pacífico de conceitos ou teorias, mas de uma luta entre poderes espirituais em conflito. A história da filosofia antropológica está impregnada das paixões e emoções humanas mais profundas. Não trata de um problema teórico singular, por mais amplo que seja o seu alcance, mas questiona todo o destino do homem e exige uma decisão final.

Esse caráter do problema antropológico encontrou sua expressão mais clara na obra de Agostinho. Ele vivia na fronteira entre duas épocas. Vivendo no século IV da era cristã, foi criado dentro da tradição da filosofia grega, e especialmente o sistema neoplatônico deixou sua marca em toda a sua filosofia. Mas, por outro lado, ele é o precursor do pensamento medieval; é o fundador da filosofia medieval e da dogmática cristã. Nas Confissões, seguimos passo a passo sua jornada da filosofia grega à religião cristã. Segundo Santo Agostinho, toda a filosofia anterior à aparição de Cristo sofre de um erro fundamental e está infestada de uma mesma heresia. Ela exaltou o poder da razão como o poder supremo do homem; mas o que o homem jamais poderia conhecer, até ser iluminado por uma especial revelação divina, é que a razão constitui uma das coisas mais duvidosas e equívocas do mundo. Ela não pode nos mostrar o caminho da luz, da verdade e da sabedoria. A razão em si é obscura em seu sentido, e suas origens estão envoltas no mistério, que só se resolve por meio da revelação cristã. De acordo com Agostinho, a razão não possui uma natureza simples e única, mas é dupla e dividida. O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e em seu estado original, tal como saiu das mãos de Deus, era igual ao seu arquétipo; tudo isso foi perdido pelo pecado de Adão. A partir desse momento, todo o poder original da razão se obscureceu, e, sozinha, abandonada às suas próprias forças, ela nunca encontrará o caminho de retorno. A razão não pode reconstruir-se por si mesma nem retornar, com suas próprias forças, à sua essência pura anterior. Para que essa restauração seja possível, é indispensável a ajuda sobrenatural da graça divina. Essa é a nova antropologia, segundo Santo Agostinho, e ela se mantém presente em todos os grandes sistemas do pensamento medieval. Nem mesmo Tomás de Aquino, discípulo de Aristóteles que retorna às fontes da filosofia grega, ousa afastar-se desse dogma fundamental. Ele concede à razão humana um poder muito maior do que Agostinho, mas está convencido de que a razão não fará bom uso desses poderes se não for guiada e iluminada pela graça de Deus. Chegamos, assim, a uma completa subversão de todos os valores sustentados pela filosofia grega. O que antes parecia ser o privilégio supremo do homem agora aparece como seu perigo e sua tentação; o que constituía seu orgulho transforma-se em sua mais profunda humilhação. O preceito estoico de que o homem deve obedecer e reverenciar seu princípio interior, o “daimon” que carrega dentro de si, agora é considerado perigosa idolatria.

Não seria oportuno continuar descrevendo o caráter dessa nova antropologia, analisando seus motivos fundamentais e acompanhando seu desenvolvimento. Para compreender seu alcance, podemos escolher uma abordagem diferente e mais breve. No início dos tempos modernos, surgiu um pensador que deu a essa antropologia um novo impulso e esplendor: Pascal, em cuja obra encontramos sua expressão última e talvez a mais impressionante. Pascal estava preparado para essa tarefa como nenhum outro escritor esteve. Possuía dons incomparáveis para elucidar as questões mais obscuras e para condensar e concentrar sistemas complexos e dispersos de pensamento. Nada parecia impenetrável à sensibilidade de seu raciocínio e à clareza de seu estilo. Em Pascal, todas as vantagens da literatura e da filosofia modernas se unem, mas ele as utiliza como armas contra o espírito moderno, representado pelo espírito cartesiano e pela filosofia de Descartes. À primeira vista, Pascal parece aceitar todos os pressupostos do cartesianismo e da ciência moderna. Não há nada na natureza que resista ao esforço da razão científica, pois nada na natureza resiste à geometria. Um dos fatos mais curiosos da história das ideias é que um dos maiores e mais profundos geômetras tenha se tornado o mais fervoroso defensor da antropologia filosófica da Idade Média. Aos 16 anos, Pascal escreveu o tratado sobre as seções cônicas, que abriu ao pensamento geométrico um campo verdadeiramente rico e fecundo. Contudo, ele não era apenas um grande geômetra; era também um filósofo. E, como filósofo, não se limitava aos problemas geométricos, mas buscava compreender o uso verdadeiro, a extensão e os limites da geometria. Essa busca o levou a fazer a distinção fundamental entre o “espírito geométrico” e o “espírito de fineza”. O espírito geométrico se destaca em todos os temas que são suscetíveis de uma análise perfeita, podendo ser divididos até seus primeiros elementos[8]. Ele parte de axiomas certos e deriva deles inferências cuja verdade pode ser demonstrada por leis lógicas universais. A vantagem desse espírito está na clareza de seus princípios e na necessidade de suas deduções. Contudo, nem todos os objetos são suscetíveis a esse tipo de tratamento. Existem coisas que, devido à sua sutileza e infinita variedade, desafiam qualquer tentativa de análise lógica. Se há algo no mundo que deve ser tratado por essa segunda abordagem, é o espírito humano. Pois o que caracteriza o espírito humano é a riqueza, a sutileza, a variedade e a versatilidade de sua natureza. Nesse campo, a matemática jamais poderá se converter em um instrumento para uma verdadeira doutrina sobre o homem, para uma antropologia filosófica. É ridículo falar do homem como se ele fosse uma proposição geométrica. Uma filosofia moral nos termos de um sistema de geometria – uma Ethica more geométrico demonstrata – representa para Pascal um absurdo, um devaneio filosófico. A lógica tradicional e a metafísica também não estão em melhor posição para compreender e resolver o enigma do homem; sua primeira lei e seu princípio fundamental é o princípio da não contradição. O pensamento racional, o pensamento lógico e metafísico, só consegue compreender objetos que estão livres de contradição e possuem uma verdade e natureza consistentes; mas essa homogeneidade é precisamente o que jamais encontramos no homem. O filósofo não pode construir um homem artificial; deve descrever o homem verdadeiro. Todas as chamadas definições do homem não passam de especulações abstratas enquanto não forem fundamentadas e confirmadas por nossa experiência sobre ele. Não há outro caminho para conhecê-lo que não seja compreender sua vida e seu comportamento. Porém, ao fazer isso, nos deparamos com algo que desafia toda tentativa de ser incluído em uma fórmula única e simples. A contradição é o verdadeiro elemento da existência humana. O homem não possui uma natureza simples ou homogênea; ele é uma estranha mistura de ser e não ser. Sua posição está entre esses dois polos opostos.

Portanto, há apenas uma maneira de nos aproximarmos do segredo da natureza humana: a religião. Ela nos revela que existe um homem duplo, o homem antes e depois da queda. Ele foi destinado ao mais alto propósito, mas traiu sua posição; com a queda, perdeu seu poder, e sua razão e vontade foram corrompidas. A máxima clássica conhece-te a ti mesmo, entendida em seu sentido filosófico, como em Sócrates, Epicteto ou Marco Aurélio, não é apenas ineficaz, mas também falsa e enganosa. O homem não pode confiar em si mesmo ou ouvir a si mesmo; ele deve silenciar para ouvir uma voz mais elevada e verdadeira:

O que será de ti, ó homem, que buscas tua verdadeira condição apoiando-te na razão natural? […] Reconhece, homem soberbo, o paradoxo que és para ti mesmo. Humilha-te, razão impotente; cala-te, natureza insensata; aprende que o homem supera infinitamente o homem e escuta de teu mestre tua verdadeira condição, que ignoras. Ouve a Deus (Pensées, cap. x, sec. 1).

O que nos é oferecido não é uma solução teórica para o problema. A religião não pode oferecê-la. Seus adversários sempre a acusaram de ser obscura e incompreensível; mas essa acusação se torna o maior elogio assim que consideramos seu verdadeiro propósito. A religião não pode ser clara e racional; ela nos conta uma história sombria e misteriosa: a história do pecado e da queda do homem. Ela nos revela um fato para o qual não há explicação racional possível. Não podemos explicar o pecado do homem, pois ele não foi causado ou produzido por nenhuma causa natural. Da mesma forma, não podemos explicar a salvação do homem, pois ela depende de um ato inescrutável da graça divina. Ela é concedida e negada livremente; não há ação ou mérito humano que possa merecê-la. Por isso, a religião jamais pretende esclarecer o mistério do homem; ela corrobora e aprofunda esse mistério.

O Deus de quem ela fala é um Deus absconditus, um Deus oculto; portanto, sua imagem, o homem, também não pode ser outra coisa senão um mistério. O homem é igualmente um homo absconditus. A religião não é uma teoria sobre Deus, sobre o homem ou sobre sua relação mútua; a única resposta que recebemos da religião é que é da vontade de Deus ocultar-se a si mesmo.

Assim, estando Deus oculto, nenhuma religião que não diga que Deus está oculto é verdadeira; e nenhuma religião que não explique isso é instrutiva. Eis tudo para nós: Vere tu es Deus absconditus […] (Idem, cap. XII, sec. 5). Pois a natureza é tal que, por toda parte, nos indica um Deus perdido, tanto no homem quanto fora do homem (Idem, cap. XIII, sec. 3).

A religião, portanto, se constitui, se pudermos explicá-la assim, em uma lógica do absurdo; pois só assim pode captar o absurdo, a contradição interna, o ser quimérico do homem.

Certamente, nada nos choca com maior rudeza do que esta doutrina; e, no entanto, sem esse mistério, o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis para nós mesmos. O nó de nossa condição se retorce e desemboca nesse abismo, de tal maneira que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério é inconcebível para o homem (Idem, cap. x, sec. 1).

3.           O exemplo de Pascal nos ensina que, no início da era moderna, o antigo problema ainda se fazia sentir com toda a sua força. Após a aparição do Discurso sobre o Método, o espírito moderno continuava lutando com as mesmas dificuldades. Ele se encontrava dividido entre duas soluções completamente incompatíveis; mas ao mesmo tempo, começava um lento desenvolvimento intelectual, pelo qual a questão o que é o homem? se transforma e, por assim dizer, se eleva a um nível superior. O decisivo neste ponto não é tanto o descobrimento de novos fatos, mas o de um novo instrumento de pensamento. É a primeira vez em que o espírito científico, no sentido moderno da palavra, entra em cena. Busca-se agora uma teoria geral do homem baseada em observações empíricas e em princípios lógicos gerais. O primeiro postulado desse novo e científico espírito consistiu na remoção das barreiras artificiais que até então separavam o mundo humano do resto da natureza. Para entender a ordem das coisas humanas, devemos começar com o estudo da ordem cósmica, e essa ordem cósmica agora aparece sob uma luz completamente nova. A cosmologia, o sistema heliocêntrico introduzido pela obra de Copérnico, representa a única base sólida e científica para uma nova antropologia.

Nem a metafísica clássica, nem a religião, nem a teologia medieval estavam preparadas para essa tarefa. Ambos os corpos doutrinários, embora muito diferentes em seus métodos e propósitos, estavam baseados em um princípio comum; ambos concebiam o universo como uma ordem hierárquica, na qual o homem ocupa o lugar supremo. Tanto na filosofia estoica quanto na teologia cristã, ele era descrito como o fim do universo. Ambas as doutrinas estão convencidas de que existe uma providência geral que governa o mundo e o destino do homem. Esse conceito constitui uma das suposições básicas do pensamento estoico e cristão[9], e é repentinamente posto em questão pela nova cosmologia. A pretensão do homem de constituir o centro do universo perdeu todo o seu fundamento; ele se encontra colocado em um espaço infinito, no qual seu ser não parece ser outra coisa senão um ponto singular e evanescente; está cercado por um universo mudo, por um mundo hermético para seu sentimento religioso e para suas exigências morais mais profundas.

É compreensível, e até necessário, que a primeira reação diante dessa nova concepção do mundo não pudesse ser outra senão negativa: uma reação de desconfiança e de temor. Nem mesmo os maiores pensadores conseguiram se livrar desse sentimento. “Me espanta o silêncio eterno desses espaços infinitos”, diz Pascal (Op. cit., cap. xxv, sec. 18). O sistema copernicano tornou-se um dos instrumentos mais fortes desse agnosticismo e ceticismo filosófico que se desenvolveu no século XVI. Em sua crítica à razão humana, Montaigne emprega todos os tradicionais argumentos, bem conhecidos pelo sistema do ceticismo grego, mas adiciona uma nova arma que, em suas mãos, se mostra de grande efeito e importância. Nada melhor para nos humilhar e quebrantar o orgulho da razão humana do que um olhar sem preconceitos para o universo físico. Em um famoso trecho de sua Apologia de Raimundo Sabunde, ele pede ao homem que lhe faça compreender com a força de sua razão sobre quais bases fundamenta as grandes vantagens que se imagina possuir sobre as demais criaturas. Quem o fez acreditar que esse admirável movimento da abóbada celestial, a luz eterna dessas luminárias que giram tão acima de sua cabeça, os movimentos admiráveis e terríveis do oceano infinito, foram estabelecidos e continuam através de tantas idades para seu serviço e conveniência? Pode-se imaginar algo mais ridículo do que essa miserável e frágil criatura, que, longe de ser dona de si mesma, se encontra sujeita à injúria de todas as coisas, chamar a si mesma dona e imperatriz do mundo, quando não tem poder nem para conhecer a parte mais ínfima, e nem pensar em governar o todo? (Essais, II, cap. XII). O homem tende sempre a considerar o estreito horizonte em que vive como o centro do universo e a transformar sua vida particular e privada na medida do universo; mas ele tem que renunciar a essa vã pretensão, a essa maneira mesquinha e provinciana de pensar e julgar.

Quando os vinhedos de nossa aldeia se perdem devido à geada, o pároco conclui que a cólera de Deus se abateu sobre toda a humanidade […] E quem, vendo essas nossas guerras internas, não exclamaria que toda a máquina do mundo está sendo transtornada e que o dia do juízo se aproxima? […] Mas quem apresentar em sua imaginação, como um quadro, a grande imagem de nossa mãe natureza, retratada com toda sua majestade e esplendor; quem reconhecer em seu aspecto uma variedade tão constante e geral, ou quem se ver a si mesmo, e não só a si mesmo, mas a um reino inteiro, dentro do quadro, de tamanho não maior, em comparação com o todo, que uma pincelada, será capaz de avaliar as coisas segundo seu justo valor e tamanho[10].

Essas palavras de Montaigne nos dão a chave do desenvolvimento subsequente da teoria do homem. A filosofia e a ciência modernas têm que aceitar o desafio contido nessas palavras; elas têm que provar que a nova cosmologia, longe de enfraquecer ou obstruir o poder da razão humana, estabelece e confirma esse poder. Foi a tarefa dos esforços combinados dos sistemas metafísicos dos séculos XVI e XVII, que seguiam caminhos diferentes, mas todos se direcionavam para um mesmo objetivo. Esforçam-se, por assim dizer, para virar o curso aparente da nova cosmologia no sentido de uma bênção. Giordano Bruno foi o primeiro pensador a se aprofundar por essa rota que, em certo sentido, se tornou a de toda a metafísica moderna. O que caracteriza sua filosofia é que, nela, o termo infinito muda de significado. No pensamento clássico grego, o infinito é um conceito negativo; é o que não tem limites ou o indeterminado. Sem limites nem forma, é, portanto, inacessível à razão humana, que vive no reino das formas e não pode entender mais do que formas. Nesse sentido, o finito e o infinito, πέρας e άπειρον, são declarados por Platão no Filebo como os dois princípios fundamentais que se opõem necessariamente. Na doutrina de Bruno, o infinito já não significa uma mera negação ou limitação. Pelo contrário, significa a imensurável e inesgotável abundância da realidade e o poder ilimitado do intelecto humano. Nesse sentido, Bruno entende e interpreta a doutrina de Copérnico. Segundo ele, essa doutrina representa o primeiro passo decisivo para a autolibertação do homem, que já não vive no mundo como um prisioneiro encerrado entre os estreitos muros de um universo físico finito. Ele pode atravessar os ares e ultrapassar todas as fronteiras imaginárias das esferas celestes que foram estabelecidas por uma metafísica e uma cosmologia falsas[11]. O universo infinito não impõe limites à razão humana; pelo contrário, é o grande incentivo para ela. O intelecto humano se dá conta de sua própria infinitude ao medir seus poderes com o universo infinito.

Tudo isso está expresso na obra de Bruno com uma linguagem poética, mas não científica. Ele não conhecia o novo mundo da ciência moderna, a teoria matemática da natureza, e por isso não conseguiu seguir o caminho até sua conclusão lógica. Para superar a crise intelectual provocada pelo sistema copernicano, foram necessários os esforços combinados de todos os metafísicos e cientistas do século XVII. Todo grande pensador – Galileu, Descartes, Leibniz, Spinoza – contribui de forma especial para a solução deste problema. Galileu sustenta que, no campo da matemática, o homem alcança o ápice de todo possível conhecimento, que não é inferior ao intelecto divino. É verdade que a inteligência divina conhece e concebe um número infinitamente maior de verdades matemáticas do que nós, mas no que diz respeito à certeza objetiva, as poucas verdades conhecidas pela mente humana são conhecidas tão perfeitamente pelo homem quanto por Deus[12]. Descartes começa com sua dúvida universal, que parece encerrar o homem dentro dos limites de sua própria consciência. Não parece haver saída desse círculo mágico nem possibilidade de aproximação com a realidade. Mas assim, a ideia do infinito se revela como o único instrumento para superar a dúvida universal. Só utilizando esse conceito podemos demonstrar a realidade de Deus e, por via indireta, a realidade do mundo material. Leibniz combina essa prova metafísica com uma nova prova científica. Ele descobre um novo instrumento do pensamento matemático, o cálculo infinitesimal. Graças às suas regras, o universo físico se torna inteligível; as leis da natureza resultam ser nada mais que casos especiais das leis gerais da razão. Spinoza ousa dar o último e decisivo passo nessa teoria matemática do mundo e do espírito humano; ele constrói uma nova ética, uma teoria das paixões e dos afetos, uma teoria matemática do mundo moral. Ele está convencido de que somente com essa teoria podemos alcançar nosso fim: o de uma filosofia do homem, uma filosofia antropológica que esteja livre dos erros e preconceitos de um sistema meramente antropocêntrico. Este é o tópico, o tema geral que em suas várias formas impregna todos os grandes sistemas metafísicos do século XVII. É a solução do problema do homem. A razão matemática representa o vínculo entre o homem e o universo e nos permite passar livremente de um ao outro. A razão matemática é a chave para uma compreensão verdadeira da ordem cósmica e da ordem moral.

4.           Em 1754, Denis Diderot publicou uma série de aforismos sob o título Pensées sur l’interprétation de la nature. Neste ensaio, ele declara que já não se discute a superioridade das matemáticas no campo da ciência. A matemática alcançou um grau tão alto de perfeição que já não é possível um progresso ulterior; assim, as matemáticas seguirão estacionárias.

Estamos chegando ao momento de uma grande revolução nas ciências. Pela inclinação que os espíritos parecem ter pela moral, pelas belas letras, pela história natural e pela física experimental, eu quase ousaria assegurar que, antes de cem anos, não se contará mais de três grandes geômetras na Europa. Essa ciência parará exatamente onde os Bernoulli, Euler, Maupertuis e d’Alembert a deixaram. Eles terão colocado as colunas de Hércules, e não se irá além disso. (Sec. 4, cf. secs. 17, 21.)

Diderot é um dos grandes representantes da filosofia da Ilustração. Como editor da Enciclopédia, ele se encontrava no verdadeiro centro de todos os grandes movimentos intelectuais de sua época. Ninguém tinha uma perspectiva mais clara do desenvolvimento geral do pensamento científico; ninguém uma sensibilidade mais fina para todas as tendências do século XVIII. Por isso mesmo, é ainda mais característico e destacável em Diderot que, apesar de representar todos os ideais da Ilustração, ele tenha começado a duvidar do direito absoluto desses ideais. Espera o surgimento de uma nova forma de ciência, de um caráter mais concreto, baseada mais na observação dos fatos do que na suposição de princípios gerais, pois considera que superestimamos demais nossos métodos lógicos e racionais. Sabemos como comparar, organizar e sistematizar os fatos conhecidos; mas não cultivamos aqueles métodos com os quais somente será possível descobrir novos fatos. Somos vítimas da ilusão de que o homem que não sabe contar sua fortuna não está em melhor posição que o homem que não tem fortuna alguma, mas está próximo o dia em que superaremos esse preconceito e então alcançaremos uma nova posição de destaque na história da ciência natural.

A profecia de Diderot se cumpriu? O desenvolvimento das ideias científicas no século XIX confirmou suas presunções? Em um ponto, pelo menos, seu erro é patente. Sua esperança de que o pensamento matemático estacionaria, sua ideia de que os grandes matemáticos do século XVIII haviam chegado às colunas de Hércules, revelou-se completamente falsa. À constelação do século XVIII, temos que adicionar os nomes de Gauss, Riemann, Weierstrass e Poincaré. Em toda parte na ciência do século XIX, nos deparamos com a marcha triunfal de novas ideias e conceitos matemáticos. No entanto, a previsão de Diderot contém um elemento de verdade, pois a inovação da estrutura intelectual do século XIX reside no lugar que o pensamento matemático ocupa na hierarquia científica. Começa a aparecer uma nova força. O pensamento biológico toma a dianteira sobre o matemático. Na primeira metade do século XIX, ainda existem alguns metafísicos como Herbart, ou alguns psicólogos como G. Th. Fechner, que abrigam a esperança de fundar uma psicologia matemática; mas esses projetos se dissipam rapidamente após a publicação da obra de Darwin A Origem das Espécies. A partir desse momento, parece que o verdadeiro caráter da filosofia antropológica se fixou de uma vez por todas; depois de inúmeros tentativas estéreis, encontrava-se sobre solo firme. Já não precisamos nos entregar a especulações no ar, porque não buscamos uma definição geral da natureza ou essência do homem. Nosso problema consiste, simplesmente, em compilar as provas empíricas que a teoria geral da evolução colocou à nossa disposição de forma rica e abundante.

Essa era a convicção que compartilhavam os cientistas e filósofos do século XIX, mas para a história geral das ideias e para o desenvolvimento do pensamento filosófico, mais importante do que os fatos empíricos da evolução foi a interpretação teórica dos mesmos. Não estava determinada de forma unívoca pela prova empírica em si, mas sim por certos princípios fundamentais que possuíam um caráter metafísico definido. Embora raramente tenha sido reconhecido, esse cerne metafísico do pensamento evolucionista constituiu uma força motriz latente. A teoria da evolução, em um sentido filosófico geral, não era de forma alguma uma conquista recente; ela já havia recebido sua expressão clássica na psicologia de Aristóteles e em sua visão geral da vida orgânica. A distinção característica e essencial entre a versão aristotélica da evolução e a moderna reside no fato de que Aristóteles oferecia uma interpretação formal, enquanto os modernos tentavam uma interpretação material. Aristóteles estava convencido de que, para entender o plano geral da natureza, as origens da vida, era necessário interpretar as formas inferiores à luz das superiores. Em sua metafísica, em sua definição da alma como “a primeira atualização de um corpo natural que tem vida em potência”, a vida orgânica é concebida e interpretada em termos de vida humana, seu caráter teleológico se projeta a todo o reino dos fenômenos naturais. Na teoria moderna, essa ordem foi invertida; as causas finais de Aristóteles são caracterizadas como um mero asylum ignorantiae. Um dos principais objetivos da obra de Darwin consistia em liberar o pensamento moderno da ilusão das causas finais. Devemos nos esforçar para compreender a estrutura da natureza orgânica apelando exclusivamente para causas materiais ou, caso contrário, não conseguiremos compreendê-la. Mas as causas materiais são, na terminologia aristotélica, causas acidentais. Aristóteles sustentou veementemente a impossibilidade de compreender os fenômenos da vida por meio de tais causas acidentais. A teoria moderna aceita esse desafio. Os pensadores modernos afirmaram que, após inúmeras tentativas estéreis dos tempos anteriores, conseguiram explicar a vida orgânica como um mero produto da mudança. As mudanças acidentais que ocorrem na vida de todo organismo são suficientes para explicar a transformação gradual que nos leva da forma mais simples de vida, como a de um protozoário, às formas mais elevadas e complicadas. Encontramos uma das expressões mais claras desse ponto de vista no próprio Darwin, que, geralmente, é tão reticente em relação às suas concepções filosóficas. Observa Darwin no final de seu livro A Variação de Animais e Plantas sob Domesticidade:

Não só as diversas espécies domésticas, mas também os gêneros e ordens mais diversos dentro de uma mesma grande classe – por exemplo, mamíferos, aves, répteis e peixes – são todos descendentes de um progenitor comum, e devemos admitir que toda a imensa quantidade de diferenças entre essas formas surgiu primariamente da simples variabilidade. Considerar o assunto sob este ponto de vista é suficiente para nos deixar perplexos. Mas podemos diminuir essa perplexidade se refletirmos que seres em sua maioria infinitos em número, e durante um espaço de tempo quase sempre infinito, gozaram de uma organização plástica em algum grau, e que toda pequena modificação de estrutura que de algum modo fosse benéfica em condições excessivamente complexas de vida foi conservada, enquanto toda modificação que fosse de algum modo prejudicial foi rigorosamente destruída. A acumulação prolongada de variações benéficas teve que conduzir inevitavelmente a estruturas tão diversas, tão bem adaptadas a diferentes fins e tão excelentemente coordenadas como as que vemos nas plantas e animais que nos cercam. Por isso, falei da seleção como uma força extraordinária, seja aplicada pelo homem para a formação das raças domésticas, seja pela natureza para a produção das espécies […] Se um arquiteto fosse construir um edifício nobre e confortável sem fazer uso de pedras de alvenaria, selecionando dos fragmentos encontrados na base de um precipício pedras arredondadas para seus arcos, alongadas para seus lintéis e largas para seus telhados, admiraríamos sua habilidade e a consideraríamos como a força principal. Agora, os fragmentos de pedra, embora indispensáveis para o arquiteto, guardam com o edifício construído por ele a mesma relação que as variações flutuantes dos seres orgânicos guardam com as variadas e admiráveis estruturas adquiridas definitivamente por seus descendentes modificados. (The Variations of Animals and Plants under Domestication, Nova York, 1897, II, cap. XXVIII, pp. 425 ss.)

Mas é necessário dar um passo a mais, e talvez o mais importante, antes que possa se desenvolver uma verdadeira filosofia antropológica. A teoria da evolução destruiu os limites arbitrários entre as diversas formas da vida orgânica. Não existem espécies separadas; há apenas uma corrente contínua e ininterrupta de vida. Mas podemos aplicar o mesmo princípio à vida e à cultura humanas? Será que o mundo cultural, assim como o orgânico, é feito de mudanças acidentais? Não possui ele uma estrutura teleológica definida e inegável? Com isso, surgia um novo problema para os filósofos, e o ponto de partida era a teoria geral da evolução. Eles tinham que demonstrar que o mundo cultural, o da civilização humana, era redutível a um pequeno número de causas gerais, as mesmas para os fenômenos físicos que para os chamados espirituais. Este era o teor do novo tipo de filosofia da cultura introduzido por Hipólito Taine em sua Filosofia da Arte e em sua História da Literatura Inglesa. Afirma Taine:

Aqui, como em todos os lugares, nos encontramos diante de um problema mecânico: o efeito total é um resultado que depende inteiramente da magnitude e da direção das causas que o produzem […] Embora os meios de notação não sejam os mesmos nas ciências morais e nas físicas, no entanto, como em ambas a matéria é a mesma, constituída igualmente por forças, magnitudes e direções, podemos dizer que em ambas o resultado final é produzido pelo mesmo método. (Histoire de la littérature anglaise. Introdução.)

O mesmo cinturão de ferro da necessidade aperta nossa vida física e nossa vida cultural. Nos seus sentimentos, nas suas inclinações, nas suas ideias e pensamentos e na sua produção de obras de arte, o homem jamais pode sair deste círculo mágico. Podemos considerá-lo como um animal de espécie superior que produz filosofia e poemas da mesma forma que o bicho-da-seda produz seu casulo ou as abelhas constroem suas colmeias. No prólogo de sua grande obra As Origens da França Contemporânea, Taine nos diz que pretende estudar a transformação da França como um resultado da Revolução Francesa, assim como faria com a “metamorfose de um inseto”.

Mas neste ponto surge outra questão. Podemos nos contentar em enumerar de forma puramente empírica os diferentes impulsos que encontramos na natureza humana? Para alcançar uma visão realmente científica desses impulsos, eles precisam ser classificados e sistematizados, e é óbvio que nem todos estão no mesmo nível. Devemos supor que possuem uma estrutura definida, e uma das tarefas primeiras e mais importantes de nossa psicologia e de nossa teoria da cultura consiste em descobrir essa estrutura. Precisamos encontrar na complicada madeixa da vida humana a força motriz oculta que põe em movimento todo o mecanismo do nosso pensamento e vontade. O propósito principal de todas essas teorias consistia em provar a unidade e homogeneidade da natureza do homem. Se examinarmos as aplicações que essas teorias deveriam nos proporcionar, a unidade aparece como algo muito problemático. Cada filósofo acredita ter encontrado a faculdade mestre e principal, l’idée maîtresse, como a designava Taine; mas todas as explicações diferem enormemente no que diz respeito ao caráter dessa faculdade principal e se contradizem. Cada pensador nos fornece seu quadro especial da natureza humana. Todos esses filósofos são decididos empiristas, pois pretendem nos mostrar fatos e apenas fatos; mas sua interpretação das provas empíricas alberga desde o princípio uma suposição arbitrária que se torna mais patente à medida que a teoria se desenvolve e assume um aspecto mais “elaborado e complicado”. Nietzsche proclama a vontade de potência, Freud aponta o instinto sexual, Marx entroniza o instinto econômico. Cada teoria se torna um leito de Procusto no qual os fatos empíricos são forçados a um padrão preconcebido.

Devido a esse desenvolvimento, nossa teoria moderna do homem perde seu centro intelectual; em seu lugar, nos deparamos com uma completa anarquia de pensamento. Também em tempos anteriores houve uma grande discrepância de opiniões e teorias relativas a esse problema; mas ainda havia, pelo menos, uma orientação geral, um fundo de referência no qual as diferenças individuais se acomodavam. A metafísica, a teologia, a matemática e a biologia assumiram sucessivamente a direção do pensamento em relação ao problema do homem e determinaram a linha de investigação. A verdadeira crise do problema tornou-se evidente quando deixou de existir tal poder central capaz de dirigir todos os esforços individuais. Continuava a se sentir a importância extraordinária do problema em todas as diferentes áreas do conhecimento e da pesquisa, mas já sem uma autoridade estabelecida à qual se pudesse recorrer. Os teólogos, os cientistas, os políticos, os sociólogos, os biólogos, os psicólogos, os etnólogos e os economistas abordavam cada um o problema de seu ponto de vista particular. Era impossível combinar ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares; nem mesmo dentro dos campos específicos havia um princípio científico geralmente aceito. Foi prevalecendo o fator pessoal e começou a ter um papel decisivo o temperamento de cada autor. Trahit sua quemque voluptas: no final das contas, cada autor parecia ser guiado pela sua própria concepção e valorização da vida humana.

É inegável que esse antagonismo de ideias não representa apenas um grave problema teórico, mas também implica, ao mesmo tempo, uma ameaça iminente a todo o campo da nossa vida moral e humana. No pensamento filosófico recente, Max Scheler foi um dos primeiros a perceber esse perigo e a lançar o grito de alerta. Declara Scheler:

Em nenhum outro período do conhecimento humano o homem se tornou tão problemático para si mesmo como em nossos dias. Dispomos de uma antropologia científica, outra filosófica e outra teológica que se ignoram mutuamente. Não possuímos, portanto, uma ideia clara e consistente do homem. A multiplicidade sempre crescente de ciências particulares dedicadas ao estudo do homem tem contribuído mais para turvar e obscurecer nosso conceito do homem do que para esclarecê-lo. (Die Stellung des Menschen im Kosmos, Darmstadt, Reichl, 1928, p. 13 ss.)

Esta é a estranha situação em que se encontra a filosofia moderna. Nenhuma era anterior se encontrou em uma situação tão favorável no que diz respeito às fontes do nosso conhecimento da natureza humana. A psicologia, a etnologia, a antropologia e a história estabeleceram um impressionante repertório de fatos extraordinariamente rico e em constante crescimento. Melhoramos imensamente nossos instrumentos técnicos para a observação e a experimentação, e nossas análises se tornaram mais agudas e penetrantes. No entanto, não parece que tenhamos encontrado o método para dominar e organizar esse material. Comparado com nossa abundância, o passado pode parecer verdadeiramente pobre, mas nossa riqueza de fatos não é necessariamente uma riqueza de pensamento. Se não conseguirmos encontrar o fio de Ariadne que nos guie por esse labirinto, não teremos uma visão real do caráter geral da cultura humana e estaremos perdidos em uma massa de dados desconexos e dispersos que parecem carecer de toda unidade conceitual.

II. Uma chave para a natureza do homem: o símbolo

O biólogo Johannes von Uexküll escreveu um livro no qual realiza uma revisão crítica dos princípios da biologia. Segundo ele, trata-se de uma ciência natural que deve ser desenvolvida com os métodos empíricos usuais, como a observação e a experimentação; no entanto, o pensamento biológico não pertence ao mesmo tipo que o pensamento físico ou químico. Uexküll é um defensor resoluto do vitalismo e sustenta o princípio da autonomia da vida. A vida é uma realidade última, que depende de si mesma; não pode ser descrita ou explicada em termos de física ou química. Partindo desse ponto de vista, Uexküll desenvolve um novo esquema geral de investigação biológica. Como filósofo, é um idealista ou fenomenista, mas seu fenomenismo não se baseia em considerações metafísicas ou epistemológicas e, sim, em princípios empíricos. Como ele mesmo indica, seria uma espécie verdadeiramente ingênua de dogmatismo supor que existe uma realidade absoluta das coisas que fosse a mesma para todos os seres vivos. A realidade não é única nem homogênea; encontra-se imensamente diversificada, possuindo tantos esquemas e padrões diferentes quanto há organismos distintos. Cada organismo é, por assim dizer, um ser monádico. Possui um mundo próprio, justamente porque possui uma experiência peculiar. Os fenômenos que encontramos na vida de uma determinada espécie biológica não são transferíveis para outras espécies. As experiências, e, portanto, as realidades, de dois organismos diferentes são incomensuráveis entre si. No mundo de uma mosca, diz Uexküll, encontramos apenas “coisas de mosca”; no mundo de um ouriço-do-mar, encontramos somente “coisas de ouriço-do-mar”.

Partindo desse pressuposto geral, Von Uexküll desenvolve um esquema verdadeiramente engenhoso e original do mundo biológico. Procurando evitar qualquer interpretação psicológica, segue inteiramente um método objetivo ou behaviorista. A única chave para compreender a vida animal é fornecida pelos fatos da anatomia comparada; se conhecemos a estrutura anatômica de uma espécie animal, estamos em posse de todos os dados necessários para reconstruir seu modo particular de experiências. Um estudo minucioso da estrutura corporal do animal, do número, qualidade e distribuição dos diversos órgãos sensoriais, bem como das condições de seu sistema nervoso, fornece-nos uma imagem perfeita do mundo interno e externo do organismo. Uexküll iniciou suas investigações com o estudo de organismos inferiores e gradualmente as ampliou para todas as formas de vida orgânica. Em certo sentido, ele se recusa a falar de formas inferiores ou superiores de vida. A vida é perfeita em toda parte, sendo a mesma nos círculos mais estreitos e nos mais amplos. Cada organismo, mesmo o mais ínfimo, não apenas se encontra adaptado em um sentido vago, mas está completamente coordenado com o seu ambiente. De acordo com sua estrutura anatômica, possui um determinado sistema “receptor” e um sistema “efetor” específico. O organismo não poderia sobreviver sem a cooperação e o equilíbrio desses dois sistemas. O receptor, por meio do qual uma espécie biológica recebe estímulos externos, e o efetor, por meio do qual reage a eles, estão sempre intimamente interligados. São elos de uma mesma cadeia, descrita por Uexküll como “círculo funcional”[13].

Não posso me deter em uma discussão dos princípios biológicos de Uexküll; refiro-me unicamente a seus conceitos e terminologia com o propósito de levantar uma questão geral. É possível empregar o esquema proposto por Uexküll para uma descrição e caracterização do mundo humano? É evidente que esse mundo não constitui uma exceção às leis biológicas que governam a vida de todos os demais organismos. No entanto, no mundo humano encontramos uma característica nova que parece constituir a marca distintiva da vida humana. Seu círculo funcional não apenas se ampliou quantitativamente, mas também sofreu uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer, descobriu um novo método para se adaptar ao seu ambiente. Entre o sistema receptor e o sistema efetor, presentes em todas as espécies animais, encontramos nele um elo intermediário que podemos identificar como sistema “simbólico”. Essa nova aquisição transforma completamente a vida humana. Comparado aos outros animais, o homem não apenas vive em uma realidade mais ampla, mas, por assim dizer, em uma nova dimensão da realidade. Há uma diferença inegável entre as reações orgânicas e as respostas humanas. No primeiro caso, uma resposta direta e imediata segue ao estímulo externo; no segundo, a resposta é retardada, interrompida por um processo lento e complicado de pensamento. À primeira vista, esse atraso poderia parecer uma vantagem questionável; alguns filósofos alertaram o homem contra esse suposto progresso. “O homem que medita,” diz Rousseau, “é um animal depravado”: ultrapassar os limites da vida orgânica não representa uma melhoria da natureza humana, mas sim sua deterioração.

Contudo, não há como escapar dessa inversão da ordem natural. O homem não pode fugir de sua própria conquista; resta-lhe apenas aceitar as condições de sua própria vida. Ele já não vive apenas em um universo puramente físico, mas em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião constituem partes desse universo, formando os diversos fios que tecem a rede simbólica, a complicada urdidura da experiência humana. Todo progresso no pensamento e na experiência refina e fortalece essa rede. O homem já não pode enfrentar a realidade de forma imediata; não pode vê-la, por assim dizer, face a face. A realidade física parece recuar na mesma proporção em que avança sua atividade simbólica. Em vez de lidar diretamente com as coisas, de certo modo, ele conversa constantemente consigo mesmo. Envolveu-se em formas linguísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou em ritos religiosos, de tal maneira que não pode ver ou conhecer nada exceto por meio da interposição desse meio artificial. Sua situação é a mesma tanto na esfera teórica quanto na prática. Também nesta última ele não vive em um mundo de fatos brutos ou de acordo com suas necessidades e desejos imediatos. Vive, antes, em meio a emoções, esperanças e temores, ilusões e desilusões imaginárias, em meio às suas fantasias e sonhos. “O que perturba e alarma o homem”, diz Epicteto, “não são as coisas, mas suas opiniões e representações sobre as coisas.”

Do ponto de vista a que acabamos de chegar, podemos corrigir e ampliar a definição clássica do homem. Apesar de todos os esforços do irracionalismo moderno, a definição do homem como animal racional não perdeu sua força. A racionalidade é um traço inerente a todas as atividades humanas. Até mesmo a mitologia não é uma massa bruta de superstições ou grandes ilusões, tampouco é puramente caótica, pois possui uma forma sistemática ou conceitual[14]; mas, por outro lado, seria impossível caracterizar a estrutura do mito como racional. A linguagem tem sido frequentemente identificada com a razão ou com a verdadeira fonte da razão, embora se perceba que essa definição não abrange toda a extensão do campo. Nela, toma-se a parte pelo todo: pars pro toto. Pois, ao lado da linguagem conceitual, temos uma linguagem emotiva; ao lado da linguagem lógica ou científica, a linguagem da imaginação poética. Primordialmente, a linguagem não expressa pensamentos ou ideias, mas sentimentos e emoções. E uma religião dentro dos limites da razão pura, tal como concebida e desenvolvida por Kant, não passa de uma abstração pura. Não nos fornece senão a forma ideal, a sombra do que é uma vida religiosa germinada e concreta. Os grandes pensadores que definiram o homem como um animal racional não eram empiristas nem tentaram jamais oferecer uma noção empírica da natureza humana. Com essa definição, expressavam, antes, um imperativo ético fundamental. A razão é um termo verdadeiramente inadequado para abarcar as formas da vida cultural humana em toda a sua riqueza e diversidade, mas todas essas formas são formas simbólicas. Portanto, em vez de definir o homem como um animal racional, devemos defini-lo como um animal simbólico. Assim, podemos designar sua diferença específica e compreender o novo caminho aberto ao homem: o caminho da civilização.


[1] Fragmento 101 na obra de Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, ed. por W. Krantz (5ª ed. Berlim, 1934), I, 173.

[2] Nas páginas que se seguem, não tento oferecer uma visão geral do desenvolvimento histórico da filosofia antropológica, mas sim destacar algumas etapas típicas para esclarecer a linha geral do pensamento. A história da filosofia do homem ainda é um belo desejo. Assim como a história da metafísica, da filosofia da natureza, do pensamento ético e científico foram amplamente estudadas, ainda estamos apenas no começo neste campo. No século passado, a importância deste problema foi cada vez mais sentida. Wilhelm Dilthey se dedicou com afinco a encontrar a solução. Mas a obra de Dilthey, tão viva e sugestiva, ficou incompleta. Um de seus discípulos, Bernhard Groethuysen, fez uma excelente descrição do desenvolvimento geral da filosofia antropológica. Infelizmente, essa descrição também se detém pouco antes da última e decisiva etapa, ou seja, antes da época moderna. Veja Bernhard Groethuysen, “Philosophische Anthropologie”, Handbuch der Philosophie (Munique e Berlim, 1931), III, 1-207. Veja também o artigo de Groethuysen, “Towards an Anthropological Philosophy”, Philosophy and History, Essays presented to Ernst Cassirer (Oxford, Clarendon Press, 1936), pp. 77-89.

[3] Marco Aurélio Antônio, Ad se ipsum, εις εαυτόν, Liv. I, par. 8.

[4] Op. cit., Liv. III, par. 6.

[5] Cf. Op. cit., Liv. V, par. 14. Ο λόγος και η λογική τέχνη δυνάμεις εισίν εαυταίς άρκουμαι και τοις καθ’ εαυτάς έρνοις.

[6] Ό κόσμος αλλοίωσις, ο βίος ΰπόληψις. Liv. IV, par. 3. O termo “afirmação” ou “juízo” me parece uma expressão mais adequada para o pensamento de Marco Aurélio do que o termo “opinião”, que encontrei em todas as versões inglesas que consultei. “Opinião” (a δόξα platônica) contém elementos de variabilidade e incerteza nos quais Marco Aurélio não pensou. O termo equivalente para ΰπόληψις que encontramos em Marco Aurélio é κρίσις, κρίμα, διάκρισις. Cf. Liv. III, par. 2; VI, par. 52; VIII, par. 28, 47.

[7] Para uma informação detalhada, veja Cassirer, Descartes (Estocolmo, 1939), pp. 215 ss.

[8] Para a distinção entre l’esprit géometrique e l’esprit de finesse, compare-se o ensaio de Pascal De l’esprit géometrique e a obra de Pascal Pensées, ed. por Charles Louandre (Paris, 1858), cap. IX, p. 231.

[9] Sobre o conceito estoico de providência, πρόνοια, veja, por exemplo, Marco Aurélio, op. cit., Liv. II, par. 3.

[10] Op. cit., I, cap. xxv.

[11] Para detalhes adicionais, veja Cassirer, Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance (Leipzig, 1927), pp. 197 ss.

[12] Galileu, Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo, I (Edição nacional), VII, 129.

[13] Veja Johannes von Uexküll, Theoretische Biologie (2ª ed. Berlim, 1938); Unwelt und Innenwelt der Tiere (1909; 2ª ed. Berlim, 1921).

[14] Veja Cassirer, Die Begriffsform im mythischen Denken (Leipzig, 1921).

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