Peregrinações de uma Pária, de Flora Tristán

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Prefácio

Pois, em verdade vos digo, se tivésseis fé do tamanho de um grão de mostarda, diríeis a esta montanha: “Move-te daqui para lá”, e ela se moveria, e nada vos seria impossível.

O Cristo.

São Mateus, xvii, 20.

Deus não fez nada em vão; até os perversos entram na ordem de sua providência: tudo está coordenado e tudo progride em direção a um objetivo. Os homens são necessários à terra que habitam, vivem da sua vida e, como parte dessa agregação, cada um tem uma missão para a qual a Providência os chamou. Sentimos arrependimentos inúteis, somos assediados por desejos impotentes por termos desconhecido essa missão, e nossa vida é atormentada até que finalmente sejamos reconduzidos a ela. Da mesma forma, na ordem física, as doenças provêm da falsa apreciação das necessidades do organismo na satisfação de suas exigências. Descobriremos, portanto, as regras a seguir para alcançar neste mundo a maior soma de felicidade pelo estudo do nosso ser moral e físico, da nossa alma e da organização do corpo ao qual ela foi chamada a comandar. Os ensinamentos não nos faltam para ambos os estudos: a dor, essa rude mestra, os prodigaliza continuamente; mas ao homem foi dado progredir apenas lentamente. No entanto, se comparássemos os males que assolam as tribos selvagens com aqueles que ainda existem entre os povos mais avançados em civilização, as satisfações das primeiras com as dos segundos, ficaríamos surpresos com a imensa distância que separa essas duas fases extremas de agregações humanas. Mas não é necessário, para constatar o progresso, comparar dois estados de sociabilidade tão distantes um do outro. O progresso gradual de século em século é fácil de verificar pelos documentos históricos que nos representam o estado social dos povos em tempos anteriores. Para negá-lo, é preciso não querer ver, e o ateu, para ser consistente consigo mesmo, é o único interessado em fazê-lo.

Todos nós contribuímos, mesmo sem saber, para o desenvolvimento progressivo de nossa espécie: mas, em cada século, em cada fase de sociabilidade, vemos homens que se destacam da multidão e marcham como pioneiros à frente de seus contemporâneos; agentes especiais da Providência, eles traçam o caminho no qual, depois deles, a humanidade se engaja. Esses homens são mais ou menos numerosos, exercem sobre seus contemporâneos uma influência mais ou menos significativa, em razão do grau de civilização ao qual a sociedade chegou. O ponto mais alto de civilização será aquele em que cada um terá consciência de suas faculdades intelectuais e as desenvolverá conscientemente no interesse de seus semelhantes, que ele não verá diferentes de si mesmo.

Se a apreciação de nós mesmos é o pré-requisito necessário para o desenvolvimento de nossas faculdades intelectuais; se o progresso individual é proporcional ao desenvolvimento e à aplicação que essas mesmas faculdades recebem, é incontestável que as obras mais úteis aos homens são aquelas que os ajudam no estudo de si mesmos, mostrando o indivíduo nas diversas posições da existência social. Os fatos por si só não são suficientes para fazer conhecer o homem. Se o grau de seu avanço intelectual não nos é representado; se as paixões que o motivaram não nos são mostradas, os fatos nos chegam apenas como enigmas dos quais a filosofia tenta, com mais ou menos sucesso, encontrar a solução.

A maioria dos autores de memórias contendo revelações não quis que elas fossem publicadas senão quando a sepultura os tivesse colocado a salvo da responsabilidade de seus atos e palavras, seja por serem retidos pela susceptibilidade do amor-próprio ao falarem de si mesmos, seja pelo medo de fazerem inimigos ao falarem de outros; seja pelo receio de recriminações ou desmentidos. Agindo assim, enfraqueceram seus testemunhos, aos quais só se dá crédito quando os autores da época os confirmam. Também não se pode supor que o aperfeiçoamento tenha sido o objetivo dominante de seus pensamentos. Vê-se que eles queriam ser falados, fornecendo alimento à curiosidade, aparecer aos olhos da posteridade de maneira diferente do que eram aos olhos de seus contemporâneos, e que escreveram com um objetivo pessoal. Depoimentos recebidos por uma geração que não mais se interessa por eles podem bem oferecer a pintura dos costumes de seus antepassados, mas dificilmente terão grande influência sobre os seus próprios costumes. De fato, em geral, é a opinião de nossos contemporâneos que nos serve de freio, e não a que a posteridade poderá ter de nós; somente as almas de elite ambicionam seus sufrágios; as massas são indiferentes a isso.

Hoje em dia, os corifeus fazem com que suas revelações testamentárias sejam publicadas imediatamente após sua morte. É então que desejam que sua sombra arranque bravamente a máscara daqueles que os precederam na sepultura e de alguns de seus sobreviventes que a velhice já tirou de cena. Assim fizeram Rousseau, Fouché, Grégoire, Lafayette, etc.; assim farão Talleyrand, Chateaubriand, Béranger, etc. A publicação de memórias, feita ao mesmo tempo que a nota necrológica ou o elogio fúnebre, oferece sem dúvida mais interesse do que se, como as do duque de Saint-Simon, só aparecessem um século após a morte dos autores; mas sua ação repressiva é quase nula: são ramos de uma árvore abatida, os frutos não sucedem ao perfume de suas flores, o solo não os fará mais reverdecer.

O interesse que se prende aos grandes eventos geralmente leva os escritores a representar os homens no meio desses grandes eventos, e os faz negligenciar em nos mostrar como são em seu ambiente interno. Os autores de memórias nem sempre estão isentos desse defeito, embora, muito mais do que os historiadores propriamente ditos, eles nos façam conhecer as pessoas de quem falam e os costumes de seu tempo. Mas a maioria desses escritores escolheu os grandes da ordem social como tema de seus escritos, e raramente nos descreveram os homens das diversas profissões que compõem as sociedades humanas. O duque de Saint-Simon nos mostra bem os cortesãos e suas intrigas; mas ele nem sequer pensa nos costumes do burguês de Paris ou de qualquer outra parte da França. O caráter moral de um homem do povo não apresentava, aos olhos de um grande senhor da época, nenhum interesse. No entanto, o valor de um indivíduo não está na importância das funções que ele exerce, na posição que ocupa, nas riquezas que possui. Seu valor, aos olhos de Deus, é proporcional ao seu grau de utilidade em suas relações com toda a espécie humana, e é por essa medida que a moral deverá julgar o elogio ou a crítica daqui em diante. No tempo do duque de Saint-Simon, ainda se estava muito longe de conhecer essa medida das ações humanas. É o homem que lutou contra a adversidade, que, na desgraça, enfrentou o poder de posição ou riqueza, cujas memórias, se uma crença religiosa o colocasse acima de qualquer temor, fariam conhecer os homens tal como são, e os apreciariam segundo seu valor real. Aquele que vê em todo ser humano um semelhante, que sofre com suas dores e se alegra com suas alegrias, esse deve escrever memórias, quando esteve em posição de fazer observações, e essas memórias farão conhecer os homens sem distinção de classe, como a época e o país os apresentam.

Acaso se tratasse apenas de relatar fatos, os olhos seriam suficientes para vê-los; mas, para apreciar a inteligência e as paixões do homem, a instrução não é suficiente, é preciso também ter sofrido e muito; pois só a desgraça pode nos ensinar a conhecer exatamente o que valemos e o que valem os outros. Além disso, é preciso ter visto muito, para que, despojados de todo preconceito, consideremos a humanidade de um ponto de vista diferente do nosso próprio. Finalmente, é necessário ter no coração a fé do mártir. Se a expressão do pensamento é contida por consideração à opinião dos outros; se a voz da consciência é sufocada pelo medo de fazer inimigos ou por outras considerações individuais, falhamos em nossa missão, renegamos Deus.

Talvez seja possível questionar se as ações dos homens, no momento em que são cometidas, são sempre úteis de serem publicadas. Sim, responderei eu, todas aquelas que prejudicam, todas aquelas que provêm do abuso de uma superioridade qualquer, seja de força ou de autoridade, seja de inteligência ou de posição, que fere os outros na independência que Deus concedeu sem distinção a todas as criaturas, fortes ou fracas. Mas se a escravidão existe na sociedade, se há hilotas em seu seio, se as leis não são iguais para todos, se preconceitos religiosos ou outros reconhecem uma classe de párias, oh! então, o mesmo devotamento que nos leva a apontar o opressor ao desprezo deve nos fazer lançar um véu sobre a conduta do oprimido que busca escapar ao jugo. Existe uma ação mais odiosa do que a daqueles homens que, nas florestas da América, vão à caça dos negros fugitivos para trazê-los de volta ao chicote do mestre? Há quem possa afirmar que a servidão é abolida na Europa civilizada. Não se realiza mais, é verdade, o mercado de escravos em praça pública; mas nos países mais avançados, não há um em que numerosas classes de indivíduos não sofram uma opressão legal. Os camponeses na Rússia, os judeus em Roma, os marinheiros na Inglaterra, as mulheres em toda parte; sim, em toda parte onde a cessação do consentimento mútuo, necessário para a formação do casamento, não é suficiente para rompê-lo, a mulher está em servidão. O divórcio obtido pela vontade expressa de uma das partes pode, sozinho, libertá-la completamente, colocá-la no mesmo nível do homem, pelo menos no que diz respeito aos direitos civis. Portanto, enquanto o sexo fraco, submetido ao mais forte, se encontrar constrangido nas afeições menos controláveis de nossa natureza, enquanto não houver reciprocidade entre os dois sexos, publicar os amores das mulheres é expô-las à opressão. Da parte de um homem, é uma ação covarde, pois, nesse aspecto, ele goza de toda sua independência.

Observou-se que o grau de civilização alcançado pelas diversas sociedades humanas sempre foi proporcional ao grau de independência desfrutado pelas mulheres. Certos escritores, no caminho do progresso, convencidos do papel civilizador da mulher e vendo-a constantemente regida por códigos excepcionais, tentaram revelar ao mundo os efeitos desse estado de coisas. Com esse propósito, nos últimos dez anos, fizeram vários apelos às mulheres para que publicassem suas dores e necessidades, os males resultantes de sua sujeição, e o que deveria ser esperado da igualdade entre os sexos. Até onde sei, nenhuma delas respondeu a esses apelos. Os preconceitos que reinam no meio da sociedade parecem ter congelado sua coragem; enquanto os tribunais ressoam com os pedidos das mulheres, seja por pensões alimentícias de seus maridos, seja por separação, nenhuma ousa levantar a voz contra uma ordem social que, deixando-as sem profissão, as mantém na dependência, ao mesmo tempo que prende seus grilhões pela indissolubilidade do casamento. Engano-me: uma escritora que se destacou desde o início pela elevação do pensamento, dignidade e pureza do estilo, ao usar a forma do romance para destacar a infelicidade da posição que nossas leis reservam à mulher, foi tão veraz em sua representação que seus próprios infortúnios foram percebidos pelo leitor. Mas essa escritora, sendo mulher, não satisfeita com o véu sob o qual se escondeu em seus escritos, os assinou com um nome masculino. Que repercussões podem ter queixas envoltas em ficção? Que influência poderiam exercer quando os fatos que as motivam são desprovidos de realidade? As ficções agradam, ocupam a mente por um momento, mas nunca são os motivos das ações humanas. A imaginação está entorpecida, decepcionada consigo mesma, e só com verdades palpáveis, fatos irrefutáveis, podemos esperar influenciar a opinião. Que as mulheres cujas vidas foram atormentadas por grandes infortúnios expressem suas dores; que exponham os males que sofreram devido à posição que as leis lhes reservaram e aos preconceitos que as acorrentam; mas sobretudo que nomeiem… Quem melhor do que elas estaria em posição de revelar injustiças que se escondem nas sombras, ignoradas pelo público? Finalmente, que todo indivíduo que tenha visto e sofrido, que tenha lutado com pessoas e coisas, considere um dever relatar completamente os eventos em que foi ator ou testemunha, e mencione aqueles dos quais tem que reclamar ou elogiar; pois, repito, a reforma não pode ocorrer, e só haverá probidade e franqueza nas relações sociais por meio de revelações semelhantes.

Ao longo de minha narrativa, falo frequentemente de mim mesma. Eu me retrato em minhas dores, pensamentos e afeições: tudo resulta da organização que Deus me deu, da educação que recebi e da posição que as leis e preconceitos me impuseram. Nada é completamente semelhante, e sem dúvida existem diferenças entre todas as criaturas da mesma espécie, do mesmo sexo; mas também há semelhanças físicas e morais sobre as quais os costumes e as leis agem da mesma forma, produzindo efeitos análogos. Muitas mulheres vivem separadas de fato de seus maridos nos países onde o catolicismo romano proibiu o divórcio[1]. Portanto, não é sobre mim pessoalmente que eu quis chamar a atenção, mas sim sobre todas as mulheres que estão na mesma situação, e cujo número aumenta diariamente. Elas enfrentam tribulações, sofrimentos de natureza semelhante aos meus, estão preocupadas com a mesma ordem de ideias e experimentam as mesmas afeições.

Os requisitos da vida afetam igualmente ambos os sexos; porém, ambos não são afetados pelo amor no mesmo grau. Na infância das sociedades, o cuidado com sua defesa absorve a atenção do homem; em uma época mais avançada da civilização, cuidar de sua fortuna: em todas as fases sociais, o amor é para a mulher a paixão central de todos os seus pensamentos e o motivo de todos os seus atos. Não se surpreenda, portanto, com o lugar que lhe dou neste livro. Falo dele segundo minhas próprias impressões e do que observei. Em outra obra, explorando mais profundamente a questão, apresentarei o quadro dos males que resultam de sua escravidão e da influência que ela adquiriria por sua libertação.

Todo escritor deve ser verdadeiro: se ele não se sente corajoso o suficiente para sê-lo, deve renunciar ao sacerdócio que assume de instruir seus semelhantes. A utilidade de seus escritos resultará das verdades que eles contêm, e, deixando para a meditação da filosofia a descoberta das verdades gerais, aqui só pretendo falar do verdadeiro no relato das ações humanas. Essa verdade está ao alcance de todos, e se o conhecimento das ações dos homens de diferentes graus de desenvolvimento intelectual, e nas incontáveis circunstâncias da vida que os chamam a agir, é indispensável para o conhecimento do coração humano e para o estudo de si mesmo, a publicidade dada às ações dos homens vivos é o melhor freio que se pode impor à perversidade e a mais bela recompensa a oferecer à virtude.

Seria estranho ignorar a grande utilidade moral da publicidade ao querer restringi-la às ações dos funcionários do Estado. As maneiras exercem uma influência constante sobre a organização social, sendo claro que o objetivo do que é tornado público seria perdido se as ações privadas fossem isentas dela. Não há nenhuma que possa ser útil para escapar dela; nenhuma é indiferente; todas aceleram ou retardam o movimento progressivo da sociedade. Se refletirmos sobre o grande número de injustiças que ocorrem todos os dias e que as leis não conseguem alcançar, iremos nos convencer da melhoria imensa nos costumes que resultaria da publicidade dada às ações privadas. Não haveria mais hipocrisia possível, e a deslealdade, a perfídia, a traição não usurpariam constantemente, por meio de aparências enganosas, a recompensa da virtude: haveria verdade nos costumes, e a franqueza se tornaria habilidade.

Mas onde encontraremos indivíduos de fé e inteligência cuja dedicação intrépida consente em enfrentar as recriminações, ódios e vinganças, em expor à luz do dia tanto as injustiças ocultas quanto os nomes de seus autores? Para publicar ações nas quais não se tenha interesse individual e cometidas por pessoas vivas, habitantes do mesmo país, da mesma cidade, haverá pessoas que, renunciando a todo interesse mundano, abracem a vida de mártir? Eles serão encontrados cada vez mais, responderei com a fé que tenho no coração. A religião do progresso terá seus mártires, como todas as outras tiveram os seus, e os homens não faltarão à obra de Deus. Sim, repito, tenho consciência de que haverá seres suficientemente religiosos para compreender o pensamento que me guia, e tenho consciência também de que meu exemplo terá imitadores. O reino de Deus está próximo: estamos entrando em uma era de verdade; nada que obstrua o progresso pode subsistir; e os costumes e a moral pública se adaptarão a isso. A opinião, essa rainha do mundo, produziu melhorias imensas: com os meios de esclarecimento que aumentam a cada dia, ela produzirá ainda maiores; depois de renovar a organização social, ela renovará o estado moral dos povos.

Ao entrar na nova jornada que acabo de traçar, estou cumprindo a missão que me foi confiada, obedecendo à minha consciência. Podem surgir ódios contra mim, mas sendo uma pessoa de fé acima de tudo, nenhuma consideração poderá me impedir de dizer a verdade sobre pessoas e coisas. Vou relatar dois anos da minha vida: terei a coragem de contar tudo o que sofri. Vou mencionar os indivíduos pertencentes a diversas classes sociais com os quais as circunstâncias me colocaram em contato: todos ainda estão vivos; vou fazê-los conhecidos por suas ações e palavras.

Preâmbulo

Antes de começar a narrativa da minha viagem, devo informar ao leitor sobre a situação em que me encontrava quando a empreendi e os motivos que me levaram a ela, colocando-o no meu ponto de vista para que ele possa compartilhar dos meus pensamentos e impressões.

Minha mãe é francesa: durante a emigração, ela se casou na Espanha com um peruano; devido a obstáculos, eles se casaram clandestinamente, e a cerimônia foi realizada por um padre francês emigrado na casa onde minha mãe residia. Eu tinha quatro anos quando perdi meu pai em Paris. Ele morreu repentinamente, sem regularizar seu casamento e sem providenciar disposições testamentárias. Minha mãe tinha poucos recursos para viver e nos sustentar, meu jovem irmão e eu; ela se retirou para o campo, onde vivi até os quinze anos. Após a morte de meu irmão, retornamos a Paris, onde minha mãe me obrigou a casar com um homem que eu não podia amar nem respeitar[2]. A essa união devo todos os meus infortúnios; no entanto, como minha mãe sempre demonstrou profundo pesar por isso, eu a perdoei e evitarei falar dela ao longo desta narrativa. Eu tinha vinte anos quando me separei desse homem; já se passaram seis anos desde então, em 1833, desde que ocorreu essa separação, e apenas quatro anos desde que comecei a me corresponder com minha família no Peru.

Durante esses seis anos de isolamento, aprendi tudo o que uma mulher separada de seu marido é condenada a sofrer em meio a uma sociedade que, pela mais absurda das contradições, manteve velhos preconceitos contra mulheres nessa situação, mesmo depois de abolir o divórcio e tornar quase impossível a separação legal. A incompatibilidade e muitos outros motivos sérios não reconhecidos pela lei tornam a separação dos cônjuges necessária; no entanto, a perversidade, não admitindo que uma mulher possa ter motivos que justifiquem sua decisão, a persegue com infames calúnias. Exceto por um pequeno número de amigos, ninguém acredita nela, e, excluída e difamada pela malícia, ela se torna, nesta sociedade que se vangloria de sua civilização, uma infeliz pária, considerada favorecida apenas quando não é insultada.

Ao me separar de meu marido, abandonei seu sobrenome e retomei o nome de meu pai. Bem recebida em todos os lugares como viúva ou solteira, eu sempre era rejeitada quando a verdade sobre minha situação era descoberta. Jovem, bonita e aparentemente desfrutando de algum grau de independência, essas eram razões suficientes para despertar fofocas maldosas e me excluir de uma sociedade que sofre sob o peso das correntes que ela mesma criou, não perdoando nenhum de seus membros por tentar se libertar delas.

A presença dos meus filhos me impedia de me fazer passar por solteira, e quase sempre me apresentei como viúva; no entanto, vivendo na mesma cidade que meu marido e minhas antigas relações, era muito difícil sustentar um papel do qual uma série de circunstâncias poderia me desviar. Esse papel frequentemente me colocava em situações constrangedoras, lançava um véu de ambiguidade sobre minha pessoa e constantemente me trazia os maiores desagrados. Minha vida era um tormento constante. Sensível e excessivamente orgulhosa, eu continuamente me sentia ferida em meus sentimentos, ofendida e irritada na dignidade do meu ser. Se não fosse pelo amor que eu tinha pelos meus filhos, especialmente por minha filha, cujo futuro como mulher excitava tão intensamente minha preocupação que eu permanecia ao seu lado para protegê-la e ajudá-la; sem esse dever sagrado que profundamente penetrava meu coração, que Deus me perdoe! e que aqueles que governam nosso país tremam! eu teria me matado… Vejo, ao fazer essa confissão, o sorriso indiferente do egoísmo que, em sua ignorância, não percebe a correlação existente entre todos os indivíduos de uma mesma comunidade; como se a saúde do corpo social, do qual vários membros são levados ao suicídio pelo desespero, não oferecesse nenhum motivo de apreensão. Escrevi, em 1829, para minha família no Peru, com a intenção meio formada de ir me refugiar com eles, e a resposta que recebi teria me incentivado a realizar imediatamente esse projeto, se não tivesse sido impedida pela reflexão desanimadora de que eles também poderiam rejeitar uma escrava fugitiva, porque, por mais desprezível que fosse o ser sob cujo jugo ela vivia, seu dever era morrer na dor, em vez de quebrar correntes impostas pela lei.

As perseguições do Senhor Chazal[3] me forçaram a fugir de Paris várias vezes: quando meu filho completou oito anos, ele insistiu em tê-lo e ofereceu-me paz sob essa condição. Cansada de uma luta tão prolongada e incapaz de suportá-la mais, concordei em entregá-lo chorando pelo futuro daquela criança; mas apenas alguns meses se passaram desde esse arranjo quando esse homem começou novamente a me atormentar e também quis levar minha filha, porque percebeu que eu estava feliz em tê-la ao meu lado. Nessa circunstância, fui novamente obrigada a deixar Paris: foi a sexta vez que, para escapar de perseguições incessantes, deixei a única cidade no mundo que eu já amara. Por mais de seis meses, escondida sob um nome falso, vaguei com minha pobre filhinha. Naquela época, a duquesa de Berry estava viajando pela Vendeia: três vezes fui parada; meus olhos e meus longos cabelos negros, que não poderiam ter sido descritos como os dela, serviram como meu passaporte e me salvaram de qualquer engano. A dor, combinada com fadigas, esgotou minhas forças; ao chegar a Angoulême, caí perigosamente doente.

Deus fez com que eu encontrasse nesta cidade um anjo de virtude que me deu a oportunidade de realizar o projeto que, por dois anos, eu vinha meditando e que era impedido de realizar por causa do meu afeto por minha filha. Tinham me indicado a pensão da senhorita de Bourzac como a melhor para colocar minha criança. À primeira vista, essa excelente pessoa leu na tristeza do meu olhar a intensidade das minhas dores. Ela pegou minha filha sem fazer perguntas e disse-me: “Você pode partir sem nenhuma preocupação: durante sua ausência, eu serei sua mãe, e se o infortúnio quisesse que ela nunca mais a visse, ela ficaria conosco”. Quando tive a certeza de que seria substituída ao lado da minha filha, resolvi ir para o Peru buscar refúgio junto à minha família paterna, na esperança de encontrar lá uma posição que me permitisse reintegrar-me na sociedade.

No final de janeiro de 1833, fui a Bordeaux e me apresentei na casa do Sr. de Goyeneche, com quem estava em correspondência. O Sr. de Goyeneche (Mariano) é primo de meu pai; ambos nascidos em Arequipa, uma amizade de infância os uniu de maneira íntima. Ao me ver, o Sr. de Goyeneche ficou impressionado com a extrema semelhança dos meus traços com os de meu pai; eles lhe lembravam seu antigo amigo, e essa lembrança se ligava à sua juventude, sua família e, finalmente, sua terra natal, que ele constantemente lamentava. Ele imediatamente transferiu para mim parte do afeto que tinha por seu primo, e esse idoso, de maneiras nobres, me recebeu com deferência que mostrava o quanto me distinguia; ele me apresentou a toda sua sociedade como sua sobrinha e me encheu de demonstrações de bondade. Recebi também uma excelente recepção do Sr. Bertera (Philippe), jovem espanhol que morava com o Sr. de Goyeneche e cuidava dos negócios de meu tio Pio de Tristán. Anunciei a esses senhores minha decisão de partir para o Peru. Fiquei dois meses e meio em Bordeaux, fazendo minhas refeições na casa do meu parente e hospedando-me ao lado, na casa de uma senhora que alugava um apartamento mobiliado para mim. Enfrentei atrasos antes de poder partir, e uma série de circunstâncias fortuitas ainda complicou minha situação.

Em 1829, em Paris, em uma pensão onde estava hospedada ao chegar de uma viagem, conheci um capitão de navio que acabara de vir de Lima. Surpreso com a semelhança do meu nome com o da família Tristán, que ele conhecia no Peru, esse capitão perguntou se éramos parentes. Respondi que não, como costumava fazer. Havia dez anos que eu renegara essa família por motivos que, mais tarde, revelarei, e foi por acaso desse encontro que comecei a corresponder com meus parentes no Peru, a fazer minha viagem e tudo o que se seguiu. Após uma longa conversa com o Sr. Chabrié (esse era o nome do capitão), escrevi uma carta ao meu tio Pio, uma carta que está lá para atestar a nobreza dos meus sentimentos e a honestidade do meu caráter, mas que me prejudicou ao revelar a irregularidade do casamento de meu pai. No hotel, eu era considerada viúva e tinha minha filha comigo; foi nessa posição que o capitão Chabrié me conheceu; ele partiu, e pouco depois eu também deixei aquela casa, nunca mais tendo ouvido falar dele desde então.

Em fevereiro de 1833, em Bordeaux, havia apenas três navios partindo para Valparaíso: o Charles-Adolphe, cujo camarote não me agradava; o Flétès, do qual tive que desistir porque o capitão não aceitou uma ordem de pagamento de meu tio para minha passagem; e o Mexicano, um belo novo brigue que todos elogiavam. Eu me apresentei como solteira ao Sr. de Goyeneche e toda a sua sociedade; portanto, pode-se imaginar o efeito surpreendente que o nome do capitão do Mexicano teve sobre mim, quando meu parente me disse que ele se chamava Chabrié; era o mesmo capitão que eu tinha encontrado em 1829 em Paris, na pensão.

Fiz o que pude para evitar partir no Mexicano; mas, temendo que meu comportamento fosse considerado extraordinário na casa do meu parente, onde o Sr. Chabrié era fortemente recomendado pelo capitão Roux, há muito tempo em relação comercial com minha família, não ousei recusar a visita ao navio.

Passei dois dias e duas noites em uma perplexidade da qual não sabia como sair. Tinha visto o Sr. Chabrié apenas duas ou três vezes, jantando com ele na mesa do hotel; ele falava apenas do Peru, e enquanto o ouvia, só pensava na família cujo abandono me causara tantas dores, sem me preocupar com o homem que, sem saber, discutia meus interesses mais queridos. Eu o tinha completamente esquecido e agora fazia esforços penosos para lembrar que tipo de homem eu teria que enfrentar. Estava atormentada por vivas inquietações: temia perder minha viagem se a adiasse, e tudo o que ouvia sobre capitães de navio não me tranquilizava quanto à confiança que deveria depositar no capitão do Mexicano. Não podia mais resistir aos apelos do meu parente, impelido pelo Sr. Chabrié para saber minha decisão, para poder dispor, se eu não partisse em seu navio, da cabine que ele me destinara. Quando me encontrava em situações constrangedoras, nunca pedi conselho a ninguém além do meu coração. Mandei chamar o Sr. Chabrié, que, assim que entrou, me reconheceu e ficou surpreso. Eu estava emocionada: assim que ficamos sozinhos, estendi-lhe a mão: “Senhor”, disse-lhe, “não o conheço, no entanto, vou confiar-lhe um segredo muito importante para mim e pedir-lhe um serviço notável”. “Qualquer que seja a natureza deste segredo”, respondeu ele, “dou-lhe minha palavra, senhorita, de que sua confiança não será traída; quanto ao serviço que você espera de mim, prometo realizá-lo, a menos que seja totalmente impossível”. “Oh! obrigada, obrigada”, disse-lhe, apertando-lhe fortemente a mão, “Deus lhe recompensará pelo bem que me faz. A expressão e o tom sinceros do Sr. Chabrié me convenceram de imediato de que eu poderia confiar nele. “O que peço”, continuei, “é simplesmente que esqueça que me conheceu em Paris como senhora e com minha filha; explicarei a razão a bordo. Em duas horas irei visitar seu navio; escolherei minha cabine, Sr. Bertera acertará o preço com você, e até a partida, não mencione que me conheceu antes de hoje…” Sr. Chabrié me entendeu e apertou minha mão com calor; já éramos amigos. “Coragem!”, disse-me ele, “vou apressar nossa partida. Compreendo, na sua situação, tudo o que você deve estar sofrendo…”

Posso dizer que esta primeira visita do Sr. Chabrié é uma das lembranças mais felizes que guardo no coração. Durante os dois meses e meio que passei em Bordeaux, fui profundamente afetada por preocupações alarmantes. Tinha vivido nesta cidade em duas ocasiões diferentes com minha filha, antes de eu sequer pensar na minha família do Peru, e havia conhecido muitas pessoas aqui, de modo que, toda vez que saía, sentia-me exposta a encontrar um desses velhos conhecidos vindo perguntar notícias de minha filha, a mim, a senhorita Flora Tristán. Estava em constante ansiedade; então, com que impaciência aguardava o dia em que deveríamos zarpar.

Eu estava ansiosa para sair da casa do Sr. de Goyeneche; no entanto, lá fui tratada com a maior distinção, e especialmente com demonstrações de afeto que teriam me deixado muito feliz se estivesse em uma posição verdadeira. Mas eu tinha muito orgulho para me deleitar com cortesias destinadas a um título que não era o meu, e meu coração, saturado de longos sofrimentos, não podia ser seduzido pelos encantos do mundo e seu luxo. Aquela sociedade, organizada para a dor, onde o amor é um instrumento de tortura, não tinha atrativos para mim; seus prazeres não me iludiam, eu via a vacuidade deles e a realidade da felicidade que haviam sacrificado. Minha existência estava quebrada, e eu aspirava apenas a uma vida tranquila. O descanso era o sonho constante da minha imaginação, o objeto de todos os meus desejos. Eu só me resolvia a contragosto a fazer minha viagem ao Peru: sentia, como por instinto, que isso atrairia novas desventuras sobre minha cabeça. Deixar meu país, que eu amava com predileção; deixar minha filha, que só tinha a mim para apoio; expor minha vida, que me era pesada porque eu sofria, porque só podia desfrutá-la furtivamente, mas que teria parecido bela e radiante se eu fosse livre; enfim, fazer todos esses sacrifícios, enfrentar todos esses perigos, porque eu estava ligada a um ser vil que me reclamava como sua escrava! Oh! Essas reflexões faziam meu coração se encher de indignação; eu amaldiçoava essa organização social que, em oposição à Providência, substitui a corrente do forçado pelo vínculo do amor e divide a sociedade em servos e senhores. A esses movimentos de desespero sucedia o sentimento da minha fraqueza; lágrimas corriam dos meus olhos: eu caía de joelhos e implorava fervorosamente a Deus que me ajudasse a suportar a opressão. Era durante o silêncio da noite que, assediada por essas reflexões, o irritante quadro dos meus infortúnios passados se desenrolava em minha mente: o sono fugia de mim, ou, por breves momentos apenas, aliviava minhas penas. Eu me exauria em projetos vãos; tentava penetrar o caráter do meu parente, o Sr. de Goyeneche: ele é religioso, dizia a mim mesma, não falha um único dia em ir à missa; é pontual no cumprimento de todos os deveres que a religião impõe; Deus, a quem ele constantemente invoca em suas conversas, deve estar em seus pensamentos; ele é rico, e meu parente tão próximo poderia se recusar a nos acolher, a mim e a minha filha, sob sua proteção? Oh não, pensava eu, ele não poderia me rejeitar; ele não tem filhos; eu sou aquela que Deus lhe envia. Hoje, esta manhã mesmo, vou confiar a ele todas as minhas tristezas, contar-lhe o martírio da minha vida e suplicar-lhe que nos guarde em sua casa, minha pobre filha e eu: seria, ai de mim, um fardo que estaríamos impondo a ele, velho solteirão, sem família, abundante em tudo, habitando sozinho uma casa imensa (o Hotel Schicler), onde sua sombra se perde e onde nossas vozes amigas ecoariam incessantemente em tons de gratidão? Mais, de manhã, quando chegava à casa do velho, o coração palpitando de emoção, logo nas primeiras palavras que ele me dirigia, eu era golpeada pela expressão seca e egoísta do velho solteirão, do homem rico e avarento que só pensa em si mesmo, tornando-se o centro de todas as coisas, acumulando sempre para um futuro que jamais alcançará: essa expressão de frieza me gelava. Eu ficava em silêncio, recomendava minha filha a Deus e desejava ardentemente estar longe no mar. Assim, nunca fiz essa tentativa, e é certo, apesar da devoção de meu parente, que teria sido sem sucesso: tive a prova disso desde meu retorno. O catolicismo de Roma nos deixa com todos os nossos inclinações e intensifica o egoísmo: ele nos separa do mundo, mas é para concentrar todas as nossas afeições na Igreja: declaramos amar a Deus, e é através da observância das práticas religiosas impostas pela Igreja que acreditamos demonstrar nosso amor por Ele; longe de nos sentirmos obrigados a socorrer nossos pais, parentes, amigos, ou qualquer próximo, quase sempre encontramos razões religiosas na conduta daqueles que pedem ajuda, para negá-la; é através de doações para a Igreja, e ao confiar-lhe algumas esmolas, que nos imaginamos, de maneira bastante generalizada, satisfazer à caridade pregada por Jesus Cristo.

Sr. Bertera, embora espanhol e bom católico, chegara jovem demais à França, onde fora criado sob os mesmos preconceitos religiosos que o Sr. de Goyeneche. No entanto, não lhe confiei meu segredo, tinha por ele uma amizade desinteressada e não quis envolvê-lo na mentira que contava à minha família. Desde que o conhecia, esse jovem não cessara de me dar provas de afeto. Acreditava na sinceridade do seu amor por mim e gostava de lhe mostrar minha gratidão. O prazer que tinha em fazê-lo amenizou as muitas tribulações que enfrentei durante minha estadia em Bordeaux. Até então, a maioria das pessoas com quem circunstâncias me puseram em contato só me causou mal, enquanto o Sr. Bertera sentia satisfação em ser-me útil: confidenciava-me seus dolorosos arrependimentos e aborrecimentos. Vira morrer de uma mesma doença toda a sua família, à qual era ternamente ligado: ficara sozinho, vivendo no isolamento, no meio do mundo e de seu frio egoísmo. A dor se compadece da dor, por mais diversas que sejam suas causas. Desde a primeira conversa, estabeleceu-se entre nossas almas uma intimidade melancólica que, piedosa em suas aspirações, não tocava a terra por nenhum ponto. Amava esse jovem pela simpatia terna e afetuosa que os seres sensíveis, na desventura, sentem uns pelos outros. Sua companhia era para minha alma um doce perfume: ao seu lado, respirava mais livremente, e o horrível pesadelo que continuamente me oprimia pesava menos sobre meu peito. Gostava de sair com ele e, quase todas as noites, íamos fazer longos passeios enquanto meu velho parente dormia a sesta. Por sua vez, o Sr. Bertera procurava ansiosamente todas as oportunidades para me agradar; seu afeto por mim se mostrava nas pequenas coisas.

Nunca na minha vida hesitei em sacrificar um momento de prazer pessoal pelo maior prazer de contribuir para a felicidade ou para poupar sofrimento àqueles que realmente amava. A sinceridade do afeto que o Sr. Bertera me dedicava me dava a convicção de que ele teria sentido minha dor se eu lhe confiasse o segredo da minha cruel situação, e a impossibilidade de mudá-la teria aumentado ainda mais seu pesar. Além disso, a falsa posição em que o engano imposto pelos preconceitos da sociedade me colocava era demasiadamente dolorosa para permitir que um homem que eu amava e a quem devia tanto sofresse qualquer parte das consequências desse engano. Guardei meu segredo; tive a coragem de calar quando sabia que encontraria no coração desse jovem uma profunda simpatia por meus infortúnios. Fiz esse sacrifício pela amizade que lhe havia jurado, e apenas de Deus espero a recompensa.

Parti, confiando minha filha à senhorita de Bourzac e ao único amigo que tinha; ambos prometeram amá-la como se fosse sua própria filha, e levei comigo a doce e pura satisfação de não deixar nenhum triste lembrança após mim.

I. O Mexicano

O dia 7 de abril de 1833, aniversário do meu nascimento, foi o dia da nossa partida. Sentia uma agitação tão intensa à medida que o momento se aproximava que, nas últimas três noites, não consegui dormir por uma hora sequer. Meu corpo estava exausto: mesmo assim, levantei-me ao amanhecer para ter tempo de finalizar todos os preparativos. Essa ocupação acalmou a febril emoção que minha mente causava. Às sete horas, o Sr. Bertera veio me buscar de fiacre; nós nos dirigimos, com o restante de meus pertences, para o vapor. Quantas reflexões não me agitaram durante o curto trajeto de casa até o porto? O crescente barulho das ruas anunciava o retorno à vida ativa; eu mantinha a cabeça fora da janela, ávida por ver mais uma vez essa bela cidade onde, tempos atrás, passei dias tão tranquilos. O sopro morno da brisa tocava meu rosto; eu sentia um excesso de vida, enquanto a dor, o desespero estavam na minha alma: parecia um paciente levado à morte; eu invejava o destino daquelas mulheres que vinham do campo vender seu leite na cidade, daqueles trabalhadores que se dirigiam ao trabalho: testemunha do meu próprio cortejo fúnebre, talvez visse pela última vez essa população laboriosa. Passamos pelo jardim público; despedi-me de suas belas árvores. Com que sentimento de pesar eu recordava minhas caminhadas sob sua sombra. Não ousava olhar para o Sr. Bertera, temendo que ele lesse nos meus olhos a atroz dor que me consumia. Chegando ao vapor, a visão de todas aquelas pessoas reunidas, algumas para se despedir de seus amigos, outras alegremente indo para as áreas circundantes, aumentou minha emoção. O momento fatal tinha chegado: meu coração batia tão forte que duvidei por um momento se conseguiria me manter firme. Só Deus pode avaliar a força que precisei invocar para resistir ao impetuoso desejo de dizer ao Sr. Bertera: “Pelo amor de Deus, salve-me! Oh, por piedade, leve-me daqui!” Dezenas de vezes, durante aquele momento de espera, fiz menção de tomar a mão do Sr. Bertera e fazer-lhe esse apelo; mas a presença de toda aquela gente me lembrava como um espectro horrível a sociedade que me havia rejeitado. Com essa lembrança, minha língua ficou presa, um suor frio cobriu meu corpo, e, usando as poucas forças que me restavam, implorei a Deus fervorosamente pela morte, pela morte, como único remédio para meus males.

O sinal de partida foi dado: as pessoas que vieram para se despedir de seus amigos se retiraram. O vapor se moveu e se afastou: eu fiquei sozinha na cabine onde estava alojada; todos os passageiros estavam no convés, fazendo os últimos acenos de adeus aos seus conhecidos. De repente, a indignação devolveu-me as forças, e, lançando-me para uma das janelas, exclamei com a voz sufocada:

“Insensatos! Eu os lamento e não os odeio; seus desprezos me magoam, mas não perturbam minha consciência. As mesmas leis e preconceitos dos quais sou vítima enchem igualmente suas vidas de amargura; não tendo a coragem de se libertar de seu jugo, tornam-se seus servis instrumentos. Ah! Se tratarem assim aqueles que, pela elevação de suas almas, pela generosidade de seus corações, se dedicariam à sua causa, eu lhes advirto, permanecerão por muito tempo em seu ciclo de infortúnio.”

Esse impulso me devolveu toda a minha coragem; eu me senti mais calma; Deus, sem que eu percebesse, tinha vindo habitar em mim. Os senhores do Mexicano voltaram para o quarto; apenas o Sr. Chabrié parecia emocionado; grossas lágrimas rolavam de seus olhos. Atraí-o para perto de mim com um olhar simpático, e ele me disse: “É preciso coragem para se afastar de seu país e deixar seus amigos; mas espero, senhorita, que os veremos novamente…”

Chegando a Pouillac, eu aparentava resignação. Passei a noite escrevendo minhas últimas cartas e, no dia seguinte, por volta das onze horas, subi a bordo do Mexicano.

O Mexicano era um brigue novo de cerca de 200 toneladas; pela sua construção, esperava-se que fosse um bom veleiro. Os aposentos eram bastante confortáveis, mas muito apertados. A cabine media de dezesseis a dezessete pés de comprimento por doze pés de largura: continha cinco cabines, sendo quatro muito pequenas, e uma quinta, maior, destinada ao capitão, localizada na extremidade. A cabine do segundo estava fora da cabine principal, à entrada. O tombadilho, repleto de gaiolas de galinhas, cestos e provisões de todo tipo, oferecia apenas um espaço muito pequeno onde se podia ficar. Este navio pertencia em copropriedade ao Sr. Chabrié, que o comandava, ao segundo, o Sr. Briet, e ao Sr. David. A carga, quase inteiramente, também pertencia a esses três senhores. A tripulação era composta por quinze homens: oito marinheiros, um carpinteiro, um cozinheiro, um grumete, um contramestre, o tenente, o segundo e o capitão. Todos esses homens eram jovens, vigorosos e muito competentes; exceto o grumete, cuja preguiça e falta de higiene causavam constante irritação a bordo. O navio estava bem abastecido, e nosso cozinheiro era excelente.

Éramos apenas cinco passageiros: um velho espanhol, ex-militar, que lutou na guerra de 1808[4] e, nos últimos dez anos, estabeleceu-se em Lima. Esse nobre senhor queria revisitar sua pátria antes de morrer e estava retornando ao Peru. Ele levava consigo seu sobrinho, um jovem de quinze anos, notável por sua inteligência. O tio se chamava dom José e o sobrinho Cesário. O terceiro passageiro, peruano, nascido na cidade do Sol (Cuzco), foi enviado a Paris aos dezesseis anos para completar sua educação; agora tinha vinte e quatro anos. Seu primo, um jovem biscainho de dezessete anos, o acompanhava. O peruano se chamava Firmin Miota, e seu primo simplesmente dom Fernando, pois nenhum dos dois últimos passageiros era conhecido pelo sobrenome. Dos quatro estrangeiros, apenas o Sr. Miota falava francês. Eu era a quinta pessoa passageira a bordo do Mexicano.

O capitão, Sr. Chabrié (Zacharie), tinha trinta e seis anos e nasceu em Lorient. Seu pai, oficial da marinha real, o encaminhou para seguir a mesma carreira e lhe proporcionou uma educação adequada. Após os eventos de 1815[5], o Sr. Chabrié abandonou a marinha estatal para arriscar-se na incerta marinha comercial. Desconheço os motivos que o levaram a essa decisão naquela ocasião.

O Sr. Chabrié está completamente fora do padrão dos capitães da marinha mercante, bravos marinheiros que geralmente começaram como simples marinheiros e avançaram devido à sua inteligência e bom comportamento. O Sr. Chabrié tem muito espírito natural, réplicas sempre prontas, tiradas surpreendentes de engenhosidade e originalidade: sua brusquidão surge tanto de sua franqueza quanto dos hábitos de sua profissão; mas o que mais se destaca nele é a extrema bondade de seu coração e a exaltação de sua imaginação. Quanto ao seu caráter, é verdadeiramente o mais terrível que já encontrei: sua sensibilidade, irritada pelas coisas mais pequenas, é intolerável; rude e colérico, seria em vão buscar, durante seus acessos de mau humor, vestígios da bondade de seu coração. Ele não poupa nada, fere seus amigos com a mais amarga ironia, deleita-se em torturá-los sem piedade alguma, e parece encontrar prazer no mal que lhes causa, tudo isso com uma constância que mais de uma vez me pareceu interminável.

À primeira vista, o Sr. Chabrié parece muito comum; mas ao conversar com ele por alguns momentos, rapidamente se reconhece o homem cuja educação foi cuidadosa. Ele é de estatura média e deve ter sido bem proporcionado antes de ganhar peso. Sua cabeça, quase completamente sem cabelos, apresenta no topo uma superfície cuja brancura contrasta de maneira bastante bizarra com o vermelho escuro que colore todo o seu rosto. Seus pequenos olhos azuis, afetados pelo mar, têm uma expressão indefinível de malícia, insolência e ternura. Seu nariz é um pouco torto, e seus lábios grossos, tão horríveis quando está com raiva, tão graciosos quando ri com aquele riso ingênuo das crianças, dão a esse conjunto uma expressão simultânea de franqueza, bondade e audácia. O que é admirável nele são seus dentes; eles formam, segundo sua própria expressão, uma mandíbula-modelo. Como tudo nesse homem contrasta de maneira mais estranha, sua voz afeta a audição de duas maneiras bastante opostas: ao falar, acredito que não seja possível ouvir uma voz mais rouca, mais áspera, mais discordante; mas quando essa mesma voz canta um trecho de Rossini, uma das peças de Nourrit, um tirolês ou uma bela canção romântica, oh! então, você se sente transportado aos céus. Sua voz, pura e fresca, seu tom de alma e harmonia ressoam profundamente em seu coração: você sente arrepios e experimenta uma doce emoção. O capitão Chabrié perdeu sua vocação, como tantos outros, em nossa sociedade invertida; ele estava destinado a cantar no Ópera; sua admirável voz de tenor teria encantado três mil espectadores e, durante seis horas seguidas, os teria mantido em um estado de doce beatitude, assim como faz nosso famoso Nourrit. Para completar o retrato, acrescentarei que o capitão Chabrié é muito exigente com sua aparência, sendo até mesmo coquete. Extremamente friorento desde que sentiu os primeiros sintomas de dor reumática na perna, ele cuida meticulosamente de sua saúde, cobrindo-se com todo tipo de vestuário para se proteger do frio ou da umidade, empilhando-os de maneira grotesca.

O segundo, o Sr. Briet (Louis), também nascido em Lorient, da mesma idade que o Sr. Chabrié, fazia parte da guarda do imperador em 1815: a queda da águia tirou-lhe seu belo cavalo e seu uniforme brilhante, deixando o futuro marechal da França inconsolável. Desiludido em suas esperanças de glória, ele foi tentar a sorte nas colônias espanholas. O Sr. Briet tinha se tornado marinheiro, tornou-se capitão e navegava por conta própria ou para um armador. Seu caráter era mais militar do que marítimo; ele tinha ordem em todas as coisas, o que os marinheiros não têm; era muito asseado e habilidoso em tudo o que fazia, além de possuir grande sobriedade. Falava pouco, trabalhava muito e sempre comandava com aquele tom frio e seco de um oficial que se dirige a batalhões ou esquadrões, sem parecer sentir a ansiedade dos marinheiros pela rápida execução das manobras que ordena. Sua educação tinha sido negligenciada, mas seu bom senso natural compensava tão bem que era difícil perceber antes de estudá-lo.

O Sr. Briet era um homem muito bonito, alto, bem proporcionado, com belos traços e uma fisionomia distinta. Não era de seu caráter ser atencioso ou galante com as damas, mas a bordo ele tinha atenções sempre muito polidas e perfeitamente adequadas para todos.

O Sr. David (Alfred), nascido em Paris, tinha trinta e quatro anos. Ele era o tipo de parisiense que havia viajado pelo mundo. Saindo aos quatorze anos do Colégio Bonaparte, seus pais o fizeram embarcar em um navio indo para a Índia, para que ele aprendesse um pouco na escola da vida. Chegando a Calcutá, o capitão o deixou em terra, já tendo o suficiente do incorrigível. O menino impudente, com uma cabeça ruim, mas um coração cheio de coragem, tomou a firme resolução de ganhar a vida e o fez. Foi marinheiro, professor de línguas, comerciante assistente, entre outros, permanecendo assim por cinco anos na Índia. De volta à França, tentou se estabelecer lá; porém, depois de ser empurrado por essas belas promessas das quais Paris nunca está sem, decidiu tentar novamente a sorte na carreira industrial e partiu para o Peru. Em Lima, conheceu o Sr. Chabrié, fez amizade com ele, e ambos retornaram juntos à França em 1832; o Sr. David estava ausente há oito anos.

Sr. David fez a própria educação e, sem aprofundar-se em nada, adquiriu uma grande variedade de conhecimentos. Ativo, empreendedor, infatigável, é ávido por prazeres, inacessível à tristeza, insensível à dor, e possui ao mais alto grau aquele espírito de denegrir que o autor de Cândido colocou em voga no final do século passado. Ele sempre vê a humanidade pelo lado ruim; teimoso em sua opinião, nunca está de acordo com os outros, critica tudo, debate sobre tudo; sofista por natureza, lança-se audaciosamente em uma discussão que está incapaz de sustentar, tanto seu espírito leve repugna pensamentos profundos, tanto é incapaz de uma atenção sustentada, e quando fica enredado no meio de seus argumentos, intervém com uma piada burlesca que, ao provocar risadas de sua audiência, faz com que o objetivo principal da discussão seja esquecido. Por mais superficialmente que conheça o assunto sobre o qual se baseia a conversa, Sr. David fala com uma confiança que desconcertaria até o próprio inventor desse assunto. Em uma idade muito tenra, deixado sem ajuda a enfrentar a miséria, foi na boa escola que ele conheceu o coração humano; recebido por decepções precoces, a vida para ele foi sem ilusões. O Sr. David odeia a humanidade e considera os homens como feras, sempre prontas a se degolarem mutuamente: mais de uma vez, tendo sentido seus golpes, está constantemente ocupado em se proteger contra seus ataques. O infeliz nunca amou ninguém, nem mesmo uma mulher. Nenhum ser jamais compadeceu-se de suas dores, e seu coração endureceu. A única satisfação que concebe é entregar-se a todos os seus impulsos. As doces emoções da alma foram sufocadas nele antes mesmo de se desenvolverem; as sensações corporais dominam, e a alma está como que aniquilada. Ele ama apaixonadamente uma boa refeição, encontra delícias em fumar um charuto, e alegrava-se pensando nas belas moças de qualquer cor que iria encontrar no primeiro porto onde o acaso nos fizesse atracar. Esses eram os únicos amores que ele compreendia.

Sr. David é um homem muito bonito, de estatura esbelta, saúde robusta, embora magro. A regularidade e a delicadeza de seus traços, a palidez de seu rosto, suas costeletas negras e seus cabelos brilhantes como azeviche, o brilho de seus olhos e o sorriso sempre presente em seus lábios formam um conjunto agradável de contrastes e harmonias que lhe dão uma expressão de alegria e felicidade que está longe de sentir. O Sr. David é o que o mundo chama de um homem amável, fala muito, mas com graça e alegria, e tem na conversa o tipo de amabilidade que as damas apreciam. Além disso, é um dândi que atravessa o cabo Horn de meias de seda, faz a barba todos os dias, perfuma os cabelos, recita versos, fala inglês, italiano e espanhol, e nunca se deixa cair, mesmo nas mais fortes tempestades. Esses eram os personagens que se encontravam reunidos no Mexicano.

Assim que chegamos a bordo, cada um de nós se ocupou em se acomodar em seu pequeno espaço da melhor maneira possível. O Sr. David me ajudou a fazer todos os meus arranjos, indicando, com a experiência que tinha de viagens marítimas, o que eu precisava fazer para evitar o máximo de desconfortos possível.

Senti-me acometida pelo mal do mar uma hora após entrar nesta casa flutuante. Esse mal tem sido descrito tantas vezes pelas numerosas vítimas que foram torturadas por ele, que evitarei cansar meu leitor com uma nova descrição. Direi apenas que o mal do mar é um sofrimento que não se parece em nada com nossas doenças habituais: é uma agonia permanente, uma suspensão da vida; tem o horrível poder de tirar dos infelizes que o sofrem o uso de suas faculdades intelectuais, bem como o uso de seus sentidos. As pessoas de constituição nervosa sofrem os efeitos cruéis desse mal com mais intensidade que as outras. Quanto a mim, senti-o com tal constância que não passou um só dia, durante os cento e trinta e três do viagem, sem que eu tivesse vômitos.

Nosso navio estava ancorado na foz do rio: o tempo não parecia favorecer nossa saída do perigoso Golfo da Biscaia; no entanto, o capitão, por volta das três horas, mandou levantar âncora. A pesada máquina, leve como uma pluma no meio das ondas, começou a avançar através da imensidão que o céu abrange, e, dócil ao gênio do homem, seguia na direção que ele lhe dava.

Mal estávamos no golfo, o assobio agudo dos ventos e o tumulto das ondas anunciaram a tempestade. Logo após, ela se declarou com toda a sua violência por meio de rugidos assustadores. Esse espetáculo, ao qual assistia sem ver, era novo para mim; teria encontrado prazer em contemplá-lo se me restasse algum vestígio de força; o mal do mar absorvia então todas as minhas faculdades: eu só tinha a consciência da minha existência pelos calafrios que percorriam meu corpo e que eu acreditava serem os precursores da minha morte. Tivemos uma noite horrível. O capitão teve a sorte de conseguir retornar ao rio. Uma onda levou nossos carneiros, outra nossos cestos de legumes, e nosso pobre pequeno navio, na véspera tão charmoso, tão bem arrumado, já estava todo mutilado. O capitão, embora exausto de cansaço, desceu em terra para comprar outros carneiros e substituir os legumes que o mar nos havia levado. Durante sua ausência, o carpinteiro reparou os estragos causados pela tempestade, e os marinheiros restabeleceram a ordem, tão necessária a bordo dos navios.

Essa primeira tentativa não nos tornou mais sábios, e nos expusemos novamente a perigos certos, dos quais quase fomos vítimas, por um falso ponto de honra que muitas vezes leva os marinheiros a desafiar perigos inúteis e faz com que comprometam a vida das pessoas e a segurança dos navios a eles confiados. No dia seguinte, 10 de abril, o mar continuando tão agitado, esses senhores, que eram muito prudentes, julgaram com razão que devíamos manter o piloto até que o tempo estivesse suficientemente seguro para que pudéssemos dispensá-lo sem perigo; mas perto de nós estavam ancorados dois outros navios, que partiram de Bordéus no mesmo dia e com o mesmo destino, o Charles-Adolphe e o Flétès. Este último, por bravata sem dúvida, dispensou seu piloto e seguiu viagem; o outro não quis ficar para trás e fez o mesmo. Esses senhores do Mexicano começaram por criticar a imprudência dos outros dois navios; mas, embora fossem pouco suscetíveis de se deixar influenciar pelo exemplo alheio, o medo de serem considerados medrosos fez com que abandonassem sua primeira decisão. Por volta das quatro da tarde, dispensaram o piloto, e nos encontramos no meio das ondas iradas; como altas montanhas, elas se erguiam ao redor do nosso navio; éramos apenas um ponto no abismo, e o encontro de duas ondas nos teria sepultado.

Ficamos três dias sem conseguir sair do golfo, continuamente açoitados pela tempestade e na posição mais crítica. Todos os nossos homens, doentes ou exaustos de cansaço, estavam incapacitados de realizar seus serviços. Durante esses três longos dias de agonia, nosso valente capitão não deixou o convés de seu navio: ele me disse depois que, várias vezes, viu nosso frágil brigue prestes a se chocar contra as rochas ou ser engolido pelas ondas. Graças a Deus, saímos dessa situação com sucesso; mas não deveriam esses perigos fazer os marinheiros refletirem, já que todos os dias cometem imprudências semelhantes?

No dia 13, entre duas e três horas da tarde, nosso capitão, exausto de cansaço e encharcado como se tivesse caído no mar, desceu para a cabine, onde não entrava havia três dias. Vendo todas as cabines fechadas e não ouvindo o menor sopro humano, ele gritou com sua voz rouca e forte:

– Holá! Ei! Passageiros! Está todo mundo morto aqui?

Ninguém respondeu à sua gentil pergunta. Então, o Sr. Chabrié entreabriu a porta da minha cabine e me disse com um tom de solicitude que nunca esquecerei:

– Senhorita Flora, você esteve muito doente, disse-me David: pobre moça! Eu realmente sinto muito por você; pois, eu também, antigamente, sofri muito com o mal do mar; mas, acalme-se, finalmente saímos da boca do abismo, acabamos de entrar em mar aberto; não sente os suaves balanços que sucedem as horríveis convulsões que experimentávamos até há pouco? O tempo está magnífico; se você tivesse forças para se levantar e subir ao convés, isso lhe revigoraria; lá em cima sopra uma brisa pura e fresca que é muito agradável.

Agradeci-lhe com o olhar, estando fraca demais para sequer tentar falar.

– Pobre moça! – continuou ele com expressão de uma bondade compassiva – esse tempo vai permitir que você durma. E eu também vou dormir, pois estou precisando muito.

De fato, todos nós dormimos por vinte e quatro horas seguidas. Fui acordada pelo Sr. David, que abria todas as cabines com grande barulho, porque queria saber, segundo ele, se todos os passageiros estavam definitivamente mortos. Não estávamos mortos; mas, meu Deus! em que estado estávamos! O Sr. Chabrié, superior demais, como homem, para tentar obter um título de comando do navio confiado a seus cuidados, falava com toda a tripulação e com os passageiros mais como amigo do que como mestre após Deus. Na tempestade, ele era o primeiro marinheiro do navio, e habitualmente um homem cuja bondade se interessava pelo bem-estar de todas as pessoas a bordo: convidou-nos amigavelmente a nos levantar, trocar de roupa, subir para tomar ar e, sobretudo, comer um pouco de sopa quente. Quanto a mim, consenti, com a condição de que me dispensassem de comer qualquer coisa. Esses senhores tiveram a gentileza de me preparar uma cama na popa. Tive que reunir toda a minha coragem para me levantar e me vestir, e, sem a ajuda desses senhores, teria sido impossível para mim subir ao convés.

Os primeiros quinze dias da minha estadia a bordo foram para mim um longo entorpecimento, durante o qual tive, apenas por intervalos muito curtos, a consciência de meu ser. Desde o nascer do sol até às seis da tarde, eu estava tão sofrida que era impossível juntar duas ideias. Estava indiferente a tudo; desejava apenas que uma morte rápida pusesse fim aos meus males; mas uma voz interior me dizia que eu não morreria.

Perto das Ilhas Canárias, esses senhores perceberam que o navio estava fazendo água e decidiram parar no primeiro porto para calafetar o casco.

Estávamos no mar há apenas vinte e cinco dias; esse tempo me parecia tão longo, a vida a bordo era tão pesada para mim que, quando me anunciaram a proximidade da terra, a alegria e o contentamento que senti dissiparam imediatamente meu mal: recuperei a saúde. É preciso ter estado no mar para conhecer a intensidade da emoção contida nessa palavra: terra! terra! Não, o árabe no deserto não sente uma alegria mais intensa ao ver a fonte onde saciará sua sede ardente; o prisioneiro que, após longa detenção, recupera sua liberdade, sente menos júbilo. Terra! terra! Essa palavra, depois de longos meses passados entre o céu e o abismo, encerra tudo para o navegador: é a vida inteira em suas alegrias, é a pátria; pois, nesse momento, os preconceitos nacionais se calam, e ele só sente o vínculo que o une à humanidade; são as alegrias sociais, as sombras suaves e os prados floridos, o amor e a liberdade; enfim, essa palavra terra faz renascer nele o sentimento de segurança que, após grandes perigos, confere um encanto mágico à existência. A todas essas alegrias se une, para muitos, a impressão do prazer que sentirão ao rever seus amigos ou se reunir com sua família, abraçar mãe, esposa e filhos. Ó terra! frequentemente amaldiçoada por aqueles que te pisam, parecerias um Éden se tivessem habitado por alguns meses o seio dos mares, onde não se veem sombras frescas, nem prados floridos; onde não se encontram parentes, nem amigos pelo caminho.

Estávamos todos no convés, ávidos para descobrir essa terra que, naquele instante, cada um de nós embelezava com os sonhos de sua imaginação: nossos corações batiam enquanto dobrávamos o cabo que terminava a língua de terra que forma a baía da Praia. O que íamos ver? Foi nesse ancoradouro que me esperava a primeira decepção da minha viagem. Eu não era muito forte em geografia e, nunca tendo lido a descrição da Praia, improvisei uma na minha cabeça. Pensava que uma ilha chamada Cabo Verde deveria necessariamente oferecer aos navegadores uma paisagem verdejante; pois, se não fosse assim, a que causa se deveria atribuir a origem de seu nome? Não me ocorria, então, que os nomes frequentemente têm origem em circunstâncias bizarras que, na maioria das vezes, não têm a menor relação com as coisas que esses nomes designam. O que se chama, no cabo Horn, a Terra do Fogo se parece com a Terra do Gelo; mas quem a descobriu achou que a viu em chamas por não sei qual ilusão de ótica, e a nomeou tal como se apresentava a seus olhos. Assim, Valparaíso (vale do Paraíso) recebeu esse nome divino dos primeiros marinheiros espanhóis que chegaram à sua baía; eles teriam, após uma travessia tão longa e penosa, nomeado igualmente paraíso a costa mais árida, o país mais horrível, desde que correspondesse à palavra terra. Oh! a terra é, de fato, o paraíso do homem; mas cabe a ele plantar a videira e a oliveira, e arrancar os espinhos e os cardos.

O aspecto dessa terra toda negra, completamente árida, tem algo de tão monótono que se sente uma tristeza dolorosa. Toda a baía é cercada por rochas mais ou menos altas, contra as quais as ondas se quebram ruidosamente. No meio da baía avança, de maneira bastante majestosa, uma alta massa de rochas arredondada em forma de ferradura; é na plataforma que a coroa que está construída a cidade de Praia.

De longe, esta cidade tem uma aparência impressionante. Na parte arredondada do formato de ferradura, está estabelecida uma bateria equipada com vinte e duas peças de canhão de grosso calibre; militares razoavelmente bem equipados fazem a guarda. À esquerda, há uma bonita igreja, recentemente construída; à direita, a casa do cônsul americano, encimada por um pequeno belvedere que serve de observatório para avistar os navios no mar. Aqui e ali, avistam-se algumas touceiras de bananeiras, grupos de sicômoros e outras árvores de folhas largas.


[1] As estatísticas estimam que, na França, trezentas mil mulheres estão separadas de seus maridos.

[2] André Chazal, jovem gravador em talhe-doce e irmão de A. Chazal, professor no Jardin des Plantes.

[3] André Chazal, ex-marido de Flora (N.T.)

[4] Guerra Peninsular, com a invasão da Espanha e Portugal pela França (N.T.).

[5] Queda de Napoleão Bonaparte e ao fim das Guerras Napoleônicas (N.T.).

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