Você irá ler, a seguir, um trecho da obra “Para Além do Marxismo”, de Henri de Man. Caso deseje saber mais sobre o livro, ou queira adquiri-lo, clique aqui, ou na imagem da capa abaixo.
I. A teoria dos motivos, o principal problema do socialismo
“A tarefa do materialismo histórico – como Marx o entendia – era precisamente explicar como os homens podem transformar as circunstâncias das quais eles próprios são os produtos.”
G. Plekhanoff
Não é surpreendente que o socialismo passe por uma crise intelectual. Após a Primeira Guerra Mundial, ocorreram perturbações sociais e políticas tão profundas que todos os partidos e movimentos de ideias tiveram que passar por uma transformação intelectual para se adaptar à nova situação. Tais transformações nunca ocorrem sem fricções internas, muitas vezes dolorosas. Sempre implicam uma crise doutrinária.
No entanto, o socialismo marxista pós-guerra apresenta sintomas de crise que não podem ser explicados apenas pelas dificuldades passageiras de adaptação a novas circunstâncias. Aqui, a evolução dos últimos dez anos apenas levou ao ápice uma crise que já se anunciava há muito tempo. Isso se manifestou por meio de um crescente desacordo entre a teoria marxista e a prática dos partidos operários que se baseavam nessa teoria. Esse desacordo se tornou mais claro na Alemanha durante o período que vai da abolição das leis de exceção contra os socialistas (1890) ao início da Primeira Guerra Mundial. Já naquela época, o marxismo sofria uma crise, cujo revisionismo era o sintoma doutrinário.
É característico observar que sintomas semelhantes surgem no movimento socialista de todos os países com uma importância proporcional à influência das ideias marxistas. O que varia de um país para outro é apenas a intensidade com que se sente um problema que, fundamentalmente, é o mesmo em todos os lugares.
Além disso, parece que o marxismo perdeu, fora da Rússia, grande parte de sua vitalidade intelectual. A atividade literária de seus teóricos diminuiu ao mesmo tempo que o interesse de seus leitores. Pode-se observar em todo lugar uma curiosidade intelectual crescente, que se volta mais do que nunca para os grandes problemas da interpretação filosófica do mundo e da história; no entanto, esse interesse crescente pelas ideias fundamentais, que revitaliza as preocupações metafísicas e religiosas, beneficia cada vez menos a literatura marxista, precisamente porque não satisfaz essa curiosidade. Qualquer livreiro ou bibliotecário pode confirmar isso com estatísticas. Enquanto em todo lugar se busca abrir novas janelas, o marxismo tenta, ao contrário, fechar as suas. Sob sua forma comunista, seu recuo para si mesmo é ao mesmo tempo um retrocesso: quase não há teses marxistas que a exegese comunista não tenha reduzido ao nível primitivo de um simbolismo grosseiro para uso dos agitadores. Mas mesmo os socialistas que repugnam esse marxismo “vulgar” sentem-se impelidos, pela necessidade de sua resistência, a um isolamento dogmático crescente. Para contestar ao comunismo o monopólio da ortodoxia marxista, pelo qual ele tenta aumentar seu prestígio junto às massas, os marxistas socialistas, que opõem seu marxismo “puro” ao marxismo “vulgar” dos comunistas, devem acentuar o máximo possível sua própria ortodoxia. Por esse motivo, eles se proclamam os verdadeiros depositários do pensamento de Marx em sua forma mais puramente científica. Forçados ao mesmo tempo a manter seu prestígio científico e a servir à política dos partidos socialistas, eles se veem lidando diariamente com fatos completamente diferentes daqueles sobre os quais Marx havia originalmente construído sua doutrina. Sua integridade científica não lhes permite ignorar esses fatos, mas eles obedecem a essa obrigação a contragosto. Eles naturalmente se preocupam mais com a doutrina antiga do que com os fatos novos. Eles constantemente se encontram na defensiva: a teoria sofre com a prática em vez de a vivificar. A falta de concordância entre teoria e prática, argumento favorito da crítica comunista contra os partidos operários da Europa, torna-se ainda mais evidente.
Por outro lado, em todos os países do mundo, os sindicatos, as cooperativas e os partidos operários estão cada vez mais sendo levados, pelas circunstâncias, a uma política de compromisso, moderação cautelosa e coalizão defensiva com seus antigos adversários. É sempre possível, por meio de distinções casuísticas entre o fim e os meios, construir uma ponte lógica entre a doutrina tradicional e a tática atual. Mas essa ponte lógica não é uma ponte psicológica. Não é difícil justificar logicamente uma política de coalizão de classe por meio de uma doutrina de luta de classes; mas pode haver contradição nos motivos emocionais, mesmo quando não há contradição nos motivos intelectuais. Os motivos das massas são essencialmente emocionais. É difícil fazer com que essas massas compreendam e aprovem que o mesmo objetivo possa justificar, a poucos anos de distância, meios completamente diferentes. Ao fazer isso, corre-se o risco de minar sua confiança nos líderes, que é o cimento moral de toda vontade política coletiva. Os líderes tentam, portanto, afirmar o máximo possível a continuidade de seus motivos, proclamando sua fidelidade às doutrinas marxistas do passado. Mas isso é mais um ato simbólico do que prático. O marxismo não inspira mais as ações propriamente políticas, porque estas são dominadas por circunstâncias muito diferentes das que deram origem à doutrina. Seu papel se resume a fornecer o arsenal de fórmulas de propaganda, especialmente aquelas destinadas a manter o entusiasmo dos partidários alimentados nas tradições antigas, e a rebater a argumentação comunista sobre a traição aos princípios.
Esses princípios são reduzidos, portanto, a uma função de conservadorismo passivo muito diferente de sua função anterior, e a doutrina tende a desempenhar um papel bastante semelhante ao dos ritos religiosos em uma igreja que se tornou uma potência temporal. De motor da ação, ela se tornou um meio auxiliar de propaganda. Quanto mais “pura” ela for, melhor poderá galvanizar a energia dos militantes inspirados pelo idealismo revolucionário de antes. Mas para permanecer “pura”, ela deve se isolar cada vez mais do domínio atual da política prática e das tendências atuais dos grandes fluxos intelectuais. Portanto, ela se volta cada vez mais para a crítica dos textos, as disputas de interpretação e a discussão de princípios abstratos. Sempre que é obrigada a enfrentar um fato prático, ela se torna casuística, tentando sempre justificar o fato pelo sistema, nunca vivificar o sistema pelo fato.
Daí surge a impressão geral de uma falta de vigor e frescor intelectuais, indicadores não tanto de uma crise de crescimento quanto de debilidade senil. Percebe-se facilmente uma certa falta de coerência e um certo enfraquecimento da autoconfiança assim que os guardiões de uma doutrina se preocupam mais em provar que ela ainda está viva do que em conquistar o mundo para ela. A essa impressão se acrescenta a de uma certa falta de sinceridade. Claro, isso não significa que se deva duvidar nem um pouco da sinceridade subjetiva dos teóricos. Significa apenas que se percebe que estão preocupados em justificar muitos atos da prática que, em seu íntimo, teriam desejado diferentes. Tudo isso resulta em uma certa diminuição da qualidade moral, um fenômeno pelo qual a juventude, especialmente, deixa-se impressionar muito facilmente e de maneira desfavorável. Ela se mostra íntegra e às vezes até intolerante, como se sabe, em sua demanda por uma concepção de vida que seja ao mesmo tempo uma filosofia e uma regra de conduta. Os jovens, assim como os intelectuais, veem na política apenas a realização de uma ideia, baseada tanto na moralidade quanto na razão. Eles sentem mais do que nunca, depois de terem visto sua confiança em tantos ideais abalada pelas experiências da guerra, a necessidade de uma fé cuja sinceridade possa ser comprovada pela realização na vida prática individual. Esta é a causa profunda da crescente aversão da juventude e dos intelectuais ao marxismo: ele lhes parece ao mesmo tempo muito rígido como modo de pensamento e muito complacente como regra de conduta. Eles sentem instintivamente, na medida em que conhecem a doutrina, que, embora utilizável talvez como teoria econômica, ela não lhes oferece resposta alguma às questões que mais os preocupam. De fato, essas questões não dizem mais respeito apenas à relação entre diferentes sistemas econômicos, mas à relação entre o homem, por um lado, e os sistemas econômicos, por outro. A juventude quer menos uma nova teoria econômica ou um novo método de interpretação da história do que uma nova concepção de vida, até mesmo uma nova religião. Como o marxismo não lhes oferece isso, eles se afastam dele. Portanto, a crítica ao marxismo hoje incide sobre problemas muito diferentes e muito mais fundamentais do que a crítica de Bernstein no final do século passado.
O que impede o marxismo atual de ser a doutrina viva de um movimento vivo não é o caráter problemático de algumas de suas teses doutrinárias, como o empobrecimento do proletariado, a concentração das empresas, o agravamento da luta de classes etc. Mesmo que Bernstein estivesse completamente errado em sua crítica a essas doutrinas, ainda restaria resolver uma questão preliminar muito mais importante: Será que essas teses, se assumidas como corretas, trazem alguma justificação para os objetivos socialistas dos quais Marx se inspirou?
Assim, era absolutamente indiferente ao sucesso teórico do revisionismo se Bernstein ou Kautsky estavam certos sobre a tese marxista da concentração das empresas. A questão decisiva não é se essa concentração ocorre da maneira descrita por Marx, mas, primeiro, se ela direciona as vontades sociais na direção da catástrofe social que ele havia previsto; em segundo lugar, e principalmente, se o desaparecimento da classe média industrial prova de alguma forma que o socialismo é necessário ou desejável. Ou ainda: De que adianta provar que as crises econômicas se desenrolaram de forma diferente daquela profetizada por Marx? A questão importante é saber se Marx não errou ao identificar a noção de catástrofe econômica com a noção de revolução social. O que o empobrecimento progressivo do proletariado provaria, se não se admitisse a hipótese de que a vontade socialista das massas depende do grau de sua miséria? E o que o agravamento da luta de classes provaria, se não se acreditasse que a luta de interesses deve conduzir ao socialismo?
Os pontos vulneráveis do marxismo que essas perguntas revelam dependem menos da exatidão de suas conclusões econômicas e sociais do que da maneira como ele pretende transformar seu método de conhecimento em um método de ação. O plano da crítica é deslocado do domínio das conclusões para o da metodologia. E a metodologia, como veremos ao examinar o significado histórico do marxismo, está diretamente ligada às suposições filosóficas que dominaram todo o pensamento ocidental por volta de meados do século XIX. Essas suposições são tão contestadas hoje quanto eram amplamente aceitas há cem anos. Todo esforço científico em nossa época tenta se libertar dessa mentalidade, que pode ser provisoriamente caracterizada pelas expressões: determinismo, mecanicismo, historicismo, racionalismo e hedonismo econômico.
O marxismo deduz o objetivo do socialismo de leis de evolução social às quais ele atribui o caráter inevitável de leis naturais; nisso, é determinista. Acredita que essas leis se realizam de forma dialética, isto é, correspondendo a uma espécie de causalidade pela qual, à semelhança de certos efeitos mecânicos, uma força muda sua direção sem modificar sua natureza ou intensidade e, assim, resulta em um efeito oposto ao de sua direção inicial; nesse sentido, o marxismo procede de uma noção mecanicista de causalidade. Fundamenta seu conhecimento das leis de evolução social na história passada, considerando os objetivos da vontade humana como o resultado de certos estados de meio. Portanto, reduz o homem a um objeto de seu ambiente social e faz com que seus objetivos derivem de “circunstâncias” anteriores à sua vontade; nesse sentido, sua maneira de pensar está ligada ao que Nietzsche chamou de historicismo do século XIX. No entanto, de acordo com Marx, a evolução social assim determinada não se realiza por si só. Ela exige dos homens atos de vontade que derivam de seu conhecimento das circunstâncias determinantes e que, na luta do proletariado, também deveriam derivar do conhecimento das leis de evolução formuladas por Marx. Essa crença do marxismo no conhecimento como causa da vontade social testemunha seu racionalismo. Além disso, o conhecimento do qual ele deriva a atividade social das massas é de uma espécie particular: é o conhecimento dos interesses econômicos decorrentes da situação dos produtores em relação aos meios de produção, e mais especificamente do antagonismo de interesses entre compradores e vendedores da “força de trabalho”. Partindo daí, as “condições” que determinam em última análise as ações humanas são, portanto, “condições de produção”, cuja evolução, por sua vez, é determinada pelo progresso da técnica de produção. Nessa crença nas causas econômicas do devir social manifesta-se o hedonismo econômico do marxismo.
A teoria dos motivos que serve de base a tudo isso – o conhecimento dos interesses econômicos como fundamento da atividade social – é o meio que permitiu a realização mais importante e original do marxismo: a união em um único sistema doutrinário da luta de classes operária e do socialismo.
Antes de Marx, o socialismo utópico havia motivado seus ideais objetivos apenas apresentando-os como moralmente superiores à realidade social do presente. Marx quis escapar do elemento de incerteza que essa visão de futuro apresenta. Para isso, ele queria provar que leis econômicas tornavam o socialismo inevitável: a luta da classe trabalhadora por seus interesses, conforme decorrem da organização capitalista da produção, só pode, segundo ele, levar ao socialismo.
Entretanto, é precisamente essa identidade entre luta de classes e socialismo, essa inevitabilidade da passagem da luta de interesses para a libertação da humanidade, que é questionada pela experiência do movimento operário desde Marx. Sem dúvida, a consciência de classe dos trabalhadores, baseada no conhecimento de seus interesses, tornou-se cada vez mais generalizada e a luta de classe econômica e política assumiu um caráter cada vez mais agudo, mas o objetivo de uma sociedade livre de qualquer antagonismo de classe nos parece mais distante hoje do que antes. Muitos fenômenos nos fazem duvidar da inevitabilidade da transição para uma nova ordem social como mero resultado da luta de interesses; mencionarei, por enquanto, apenas a absorção gradual da classe trabalhadora pelo meio cultural burguês, a contínua rejeição do móbil revolucionário pelo móbil reformista, o aperto progressivo dos laços que unem a classe trabalhadora às instituições políticas e econômicas da comunidade, a diferenciação nacional crescente do movimento socialista, a formação de uma burocracia dirigente nas organizações trabalhistas etc. Os problemas que daí decorrem e que são levados ao primeiro plano de toda discussão sobre o valor atual do marxismo levam diretamente a este problema fundamental: a teoria dos movimentos que faz com que a ação social das massas derive do conhecimento de seus interesses ainda é sustentável?
Para resolver essa questão, o caminho mais simples será, antes de qualquer discussão metodológica sobre a doutrina marxista, examinar os fatos que podem nos esclarecer sobre a verdadeira relação entre a luta de interesses proletários e o objetivo final socialista.
Vemos assim, desde o início, que a sequência histórica de eventos contradiz o esquema racionalista, que faz com que o objetivo final derive da consciência de interesses. As doutrinas socialistas não são o produto do despertar da classe trabalhadora para a consciência de sua situação de classe. São, pelo contrário, uma condição prévia para esse despertar. O socialismo existia antes do movimento operário, até antes da classe trabalhadora.
As doutrinas socialistas – incluindo a de Marx e Engels – surgiram de fontes completamente diferentes do interesse de classe do proletariado. Elas são o produto não da angústia intelectual dos proletários, mas da abundância de cultura de intelectuais de origem burguesa ou aristocrática. Elas se espalharam de cima para baixo, e não de baixo para cima. Dificilmente se encontra um único proletário entre os grandes pensadores e sonhadores que foram os pioneiros do ideal socialista. É verdade que nomes de proletários aparecem mais tarde, quando as doutrinas já se incorporaram aos programas dos movimentos de massas. Mas então já não se trata mais de formular as doutrinas, mas apenas de desenvolvê-las, aplicá-las e divulgá-las. Mesmo entre aqueles que se dedicam a essa tarefa, os trabalhadores ou ex-trabalhadores são minoria em relação aos intelectuais burgueses no que diz respeito ao trabalho teórico propriamente dito.
O fato é incontestável: embora o socialismo tenha se tornado, ao longo do tempo, o objetivo e o programa do movimento operário, por sua origem histórica ele é menos uma doutrina do proletariado do que uma doutrina para o proletariado. Se adotássemos a terminologia errônea do marxismo, que associa cada “ideologia” social a uma classe social específica, deveríamos dizer que o socialismo como doutrina (incluindo o marxismo) tem origem burguesa.
Na realidade, a relação entre a formação das doutrinas socialistas e a afiliação social de seus criadores às camadas intelectuais dirigentes decorre de motivos psicológicos que nada têm a ver com os interesses de classe. A natureza e a diversidade das doutrinas só podem ser compreendidas por meio de uma psicanálise dos movimentos intelectuais que fundamentam as concepções de cada pensador socialista, na medida em que ele possua uma originalidade criativa genuína. Naturalmente, essa psicanálise biográfica deve levar em conta muitas circunstâncias sociais e econômicas. Além do pano de fundo social geral do qual o pensador emerge, deve examinar as circunstâncias materiais de sua existência individual, uma existência “burguesa” tanto no caso do acadêmico Marx quanto no do industrial Owen ou do aristocrata Saint-Simon. Por outro lado, assim que abandonamos o terreno da biografia individual para tentar uma psicanálise ou uma sociologia do pensamento socialista em geral, descobrimos que as doutrinas socialistas não são o resultado de uma adaptação do proletariado à sua situação de classe, mas surgem do recusa de alguns intelectuais burgueses ou aristocráticos em se adaptar ao seu meio. Descobrimos então que o pensamento socialista criativo tem sua origem em uma reação emocional, ou melhor, em uma quantidade quase infinita de reações emocionais diferentes que têm origem intelectual, ética e estética. Pois as ideias são obra de personalidades e não resultado de um paralelogramo de forças sociais como se manifestam nos movimentos de massas.
É verdade que essas forças sociais utilizam as ideias nascidas do cérebro dos teóricos. Quanto mais fielmente esses cérebros representarem os fatos da realidade social, mais um pensador terá intuição exata dos desejos das massas, mais facilmente essas massas assimilarão as doutrinas que encarnam seus desejos. O pensamento de um único indivíduo se torna então o símbolo da vontade e dos sentimentos de milhões de seres. No entanto, os dois elementos que compõem essa combinação de vontade emocional e representação intelectual têm origens tão diferentes quanto a farinha e o fermento que compõem o pão. O processo de fermentação que constitui o movimento operário socialista só é compreensível para aquele que vê nas massas operárias a massa e nas ideias de intelectuais não proletários o fermento que a faz crescer.
O marxismo sempre fechou os olhos para a variedade e complexidade dos móveis socialistas. Sem isso, não poderia continuar a acreditar que a maneira de pensar é determinada pelo interesse de classe. A própria origem do marxismo prova que a situação de classe dos trabalhadores (algo completamente diferente de seus interesses de classe) simplesmente os predisponha a usar certas ideias como símbolos de certos fluxos de vontade comum. O marxismo trata os pioneiros burgueses e aristocráticos do ideal socialista como exceções que confirmam a regra da origem proletária da doutrina, enquanto os fatos provam claramente que essas exceções “burguesas” são a regra. Para melhor manter essa ilusão, ele de alguma forma faz o socialismo começar com Marx e descarta uma galeria de ancestrais cujas aparências denunciariam uma origem nada proletária.
No entanto, não devemos deixar que a constatação desse erro nos leve ao extremo oposto e nos leve a subestimar os movimentos do movimento operário que se expressam por fenômenos voluntaristas da psicologia das massas. A reação afetiva da classe trabalhadora em relação às suas condições de existência, que a torna receptiva às ideias formuladas por intelectuais, constitui um fenômeno desse tipo.
Aqui também, o marxismo nos fornece apenas uma explicação insuficiente. Seu ponto de partida é um obstáculo. Para ele, a luta de classes – a luta pela mais-valia que leva à luta pela socialização – é a emanação imediata e inevitável de um modo de produção, de uma categoria econômica. Essa luta é, de certa forma, um fim em si mesma; em vez de derivar de motivos variáveis que tendem a objetivos variáveis, ela tende a um objetivo imanente de revolução social, assim que as massas trabalhadoras se conscientizam da oposição de seus interesses aos das classes proprietárias. Para o marxismo, no começo era o conhecimento; a vontade de classe brota da consciência de classe. Isso é uma espécie de revelação mística: uma necessidade revolucionária existe, preexiste, por assim dizer, no ambiente do pensamento eterno, na forma de uma doutrina cientificamente comprovada e derivada das leis de evolução da economia capitalista; é suficiente que os trabalhadores, os “parturientes” da revolução, tomem consciência da verdade dessa doutrina, ou seja, façam um ato de conhecimento, para agir e realizar o parto. Eles são os instrumentos de uma dialética que já existe como lei em um reino supra terreno, antes de descer à terra para se transformar em conhecimento nos cérebros dos seres encarregados de sua execução. Esse erro racionalista não caracteriza apenas o marxismo “vulgar” dos comunistas; o próprio Kautsky, em sua Ética, faz a indignação moral dos trabalhadores, no início de sua luta contra o capitalismo, derivar da consciência de seus interesses de classe. Como se os trabalhadores começassem formando a noção teórica de seus interesses de classe e só se tornassem acessíveis ao sentimento de justiça social após esse ato de conhecimento.
Não é de surpreender, nessas condições, que o marxismo tenha se mostrado incapaz de resolver o problema: Como ocorre o processo psicológico que, na classe trabalhadora, faz certas concepções de classe derivarem de certas condições de vida? A superstição racionalista, que coloca o conhecimento antes do sentimento, pode dispensar uma explicação desse tipo; para ela, o problema já está resolvido. Na verdade, é preciso colocá-lo da seguinte forma: Como as condições de vida do trabalhador reagem em seu estado afetivo e influenciam a direção de sua vontade social? Somente após estudarmos em toda a sua extensão a reação emocional do trabalhador às influências de seu meio social é que podemos entender como as noções intelectuais do socialismo doutrinário intervêm nessa reação e a infinita variedade de influências recíprocas que resultam dela. Essa divisão em uma análise primária do domínio do sentimento e secundária do domínio das ideias não responde apenas a uma necessidade psicológica, mas também a uma realidade histórica, pois o sentimento de classe, um estado emocional, precedeu a consciência de classe, um estado de conhecimento.
Portanto, toda sociologia do movimento operário deve partir de um exame do estado afetivo do trabalhador isolado considerado como tipo, conforme resulta das influências normais de seu ambiente de vida e de trabalho. Esse exame será ainda mais instrutivo se inicialmente limitado a um tipo específico, o do trabalhador da média e grande indústria. O movimento operário inclui, é verdade, muitas outras categorias (mulheres de trabalhadores, trabalhadores agrícolas, empregados e funcionários, trabalhadores domésticos, artesãos, trabalhadores de pequenas empresas etc.), cujas condições de existência e características psicológicas diferem em muitos aspectos daquele trabalhador industrial típico. No entanto, este último representa não apenas a categoria mais numerosa, mas também aquela que mais marca os traços comuns de toda a classe. Ele é de certa forma o diapasão social. Portanto, é o tipo que melhor se adapta a uma caracterização geral.
O estado afetivo que predispõe a classe trabalhadora a acreditar no socialismo é, assim como qualquer atitude de massas, concebível como o produto de dois fatores: por um lado, o ambiente, ou seja, a totalidade das impressões que constituem a experiência social dos seres humanos, e, por outro lado, a disposição intelectual e moral dos seres humanos que reagem a essas impressões. Ao contrário do que pensa o marxismo, essa disposição não resulta do ambiente atual e, ao contrário do que acredita a filosofia natural, também não corresponde a uma natureza humana eternamente imutável. Ele inclui um elemento instintivo que pode ser considerado inerente à natureza humana, mas cujas formas de expressão podem ser modificadas pelo hábito sob a influência de mudanças duradouras no ambiente histórico. Assim, o capitalismo não cria uma “disposição capitalista”, ou seja, não molda os seres humanos por mera adaptação às exigências psicológicas do sistema; se fosse assim, não haveria socialistas. Pelo contrário, o capitalismo se depara com homens com habilidades já formadas, resultantes de suas disposições inatas e de sua reação habitual a estados sociais anteriores.
O trabalhador que “reage” ao ambiente social do capitalismo industrial de hoje é o produto de um longo passado pré-capitalista. Os hábitos da vida social secular cavaram sulcos profundos em sua disposição instintiva e emocional, e esses sulcos indicam a direção dos julgamentos de valor e das vontades pelos quais ele reage às circunstâncias de sua vida presente. Esta só consegue influenciar essa direção na medida em que cria novos hábitos de apreciação emocional e novas direções habituais da vontade.
Portanto, o movimento operário socialista não é propriamente um produto do capitalismo. Deve-se vê-lo mais como o produto de uma reação que coloca em contato um estado social novo – o capitalismo – de um lado, e, de outro, uma disposição humana que poderíamos chamar de pré-capitalista. Essa disposição é caracterizada por uma certa fixação do sentido dos valores jurídicos e morais, fixação que só pode ser compreendida quando relacionada à experiência social do regime feudal e do artesanato, à moral cristã e aos princípios jurídicos da democracia.
Para compreender adequadamente a realidade dessas influências, é preciso voltar ao início do movimento operário. Percebe-se então que as primeiras lutas da classe trabalhadora tinham um caráter puramente defensivo e, de certa forma, conservador. Na época em que o trabalho nas fábricas e o trabalho domiciliar começaram a se estabelecer, os trabalhadores sentiram que sua situação havia piorado. O publicista radical inglês Cobett, um dos primeiros líderes operários cujas obras literárias ainda restam, definiu assim o objetivo de sua vida em seu Political Register, em 1807: “Desejo ver os pobres da Inglaterra trazidos de volta ao estado em que estavam na época da minha infância.” É importante observar que, durante esse período, a maioria dos trabalhadores industriais não havia sofrido uma diminuição em sua renda. A nova classe de assalariados recrutava-se apenas em pequena parte entre artesãos e camponeses independentes. Em sua imensa maioria, eram pessoas já despossuídas, muitas vezes empobrecidas há gerações. A origem do proletariado industrial só pode ser compreendida à luz das leis sobre vagabundagem e mendicância, que caracterizam o início do capitalismo industrial; na Inglaterra, as workhouses, onde os desprovidos eram internados à força, forneciam trabalhadores aos industriais que deles precisavam, e a França parecia ter meio milhão de vagabundos antes de 1789. Os filhos de camponeses que também passaram a trabalhar nas fábricas geralmente eram atraídos pela perspectiva de ganhos mais altos do que os de seus pais ligados à terra. A única categoria cuja renda foi diminuída pela transição para a fábrica era composta pelos antigos artesãos das aldeias transformados em trabalhadores domiciliares; e é precisamente essa categoria que se mostrou menos combativa nas primeiras lutas de classe, por exemplo, na Inglaterra, durante a primeira metade do século XIX. O que, por outro lado, levava os novos trabalhadores de fábrica à luta defensiva era menos uma diminuição de renda do que uma diminuição da independência social, da alegria no trabalho e da segurança; era uma tensão crescente entre necessidades rapidamente crescentes e um salário que aumentava mais lentamente; era, enfim, a sensação de uma contradição entre as bases morais e jurídicas do novo sistema de trabalho e as tradições do antigo. Esse processo perdura até os dias de hoje e continua a criar na classe trabalhadora um ressentimento social caracterizado pelos sentimentos de exploração, opressão, injustiça social, solidariedade operária e fé religiosa em um futuro melhor.
O ressentimento contra a burguesia que daí resulta menos a reprova por sua riqueza do que por seu poder. O sentimento de justiça se revolta contra as consequências de um excesso de poder social que não corresponde mais à antiga responsabilidade das classes dirigentes para com a coletividade. Essa rebelião instintiva procede menos do instinto de aquisição do que do sentimento de justiça.
Sem dúvida, os ricos nunca foram amados. O ideal igualitário do cristianismo e o desprezo feudal pelo dinheiro contribuíram para a formação de um preconceito que encontra expressão em toda a literatura popular da Idade Média. No entanto, o capitalismo industrial não se limitou a criar novos ricos; agora trata-se de um tipo de riqueza que tem um significado social inteiramente novo. O capitalista industrial não é apenas um rico que gasta muito dinheiro; como detentor dos meios essenciais de produção, ele possui um formidável poder social que o torna senhor do destino de seus trabalhadores. Antigamente, a autoridade do senhor feudal e do mestre artesão era compensada por uma responsabilidade correspondente; os privilegiados tinham consciência de sua responsabilidade para com os desfavorecidos e todo o sistema social baseava-se no exercício do dever de caridade. Esse sistema foi substituído por outro, no qual a manutenção de uma massa de proletários despossuídos e de um exército de desempregados era ditada pelo interesse dos dirigentes. Essa situação estava em contradição com o fundamento moral da produção camponesa e artesanal, que pressupunha que todo homem disposto a trabalhar possuísse os meios de trabalho necessários e a possibilidade de um bem-estar assegurado. Durante séculos, todas as leis, regulamentos corporativos, mandamentos da Igreja e costumes populares foram inspirados pela noção de uma existência garantida para quem trabalhasse. O que contribuiu ainda mais para despertar o sentimento de equidade social contra o novo privilégio dos industriais foi o abuso de seu poder sob o disfarce de instituições de caridade. As instituições e tradições da beneficência pública foram usadas para justificar leis draconianas sobre a vagabundagem, fornecedoras de mão de obra barata. Nas novas aglomerações industriais, os patrões geralmente eram proprietários de moradias e lojas e as usavam para aumentar seus lucros e poder. Dentro de suas empresas, exerciam um poder quase absoluto e mantinham apenas o princípio autoritário da tradição feudal vantajoso para os poderosos.
Além disso, logo se perceberam as consequências jurídicas do excesso de poder político que a nova classe capitalista havia obtido através de um direito de voto limitado. Esse poder serviu para romper as restrições que o antigo direito colocava sobre a livre disposição da propriedade. Pela seleção social dos juízes, a nova classe dirigente se subordinou também aos tribunais que deveriam aplicar esse direito. Os exércitos e outros meios coercitivos do Estado, que antes serviam apenas aos interesses dinásticos dos monarcas, foram transformados em apoios do novo regime de classe. O poder do dinheiro transformou a Igreja, anteriormente guardiã dos interesses coletivos, em uma hierarquia de mercenários espirituais encarregados de pregar a submissão aos pobres. Por fim, o desenvolvimento da educação pública e da imprensa diária forneceu aos novos líderes meios formidáveis de dominação moral.
Esses são os fatos que, desde o início do regime industrial, deram às greves, revoltas e movimentos políticos dos trabalhadores europeus o caráter de uma rebelião moral contra um domínio de classe considerado injusto. Se os trabalhadores fossem motivados apenas pelo instinto de aquisição e lutassem apenas pela posse da mais-valia, não haveria luta de classe. Pode-se muito bem conceber um modo capitalista de produção que corresponda inteiramente às leis estabelecidas por Marx em sua teoria da mais-valia, sem que resulte em qualquer luta de classe. A luta dos trabalhadores por seus interesses só se torna luta de classe e leva à reivindicação de uma ordem socialista sob certas condições históricas, que não são inerentes ao sistema econômico, mas resultam da forma como ele foi estabelecido. Por si só, um modo de produção não é nem moral nem imoral. A crítica socialista ao capitalismo, apesar das aparências, concentra-se menos na forma econômica da produção do que em um conteúdo histórico, social e cultural específico. Isso pode ser comprovado por um exemplo concreto: embora os Estados Unidos da América sejam um país capitalista por excelência, não há socialismo americano que possa ser considerado a expressão do descontentamento das massas trabalhadoras. Isso ocorre porque um modo de produção semelhante ao da Europa se desenvolveu lá em circunstâncias históricas e sociais completamente diferentes. O capitalismo americano não surgiu da pobreza, mas sim da colonização individual; não teve que se adaptar às formas tradicionais de estratificação social do feudalismo e da monarquia; pelo contrário, pôde se desenvolver desde o início em um ambiente de igualdade política e moral. Portanto, os trabalhadores americanos podem travar a luta por seus interesses com base jurídica que os coloca em pé de igualdade com os outros cidadãos. Essa luta de interesses, portanto, não se torna uma luta de classe.
Foi preciso que eu estivesse na América e em condições de julgar o socialismo europeu a partir deste observatório distante, para perceber que na realidade ele nasceu muito menos da oposição ao capitalismo como entidade econômica do que da luta contra certas circunstâncias que acompanharam o surgimento do capitalismo europeu, como a pauperização dos trabalhadores, a subordinação das classes sancionada pelas leis, costumes e tradições, a ausência de democracia política, a militarização dos Estados etc. O modo capitalista de produção poderia, em um ambiente histórico diferente, ter levado a uma espécie de equilíbrio social. O que o impediu na Europa foi o considerável avanço da burguesia desde o início, do ponto de vista do equilíbrio das forças sociais. Sem isso, provavelmente, como na América, haveria trabalhadores infelizes, mas não proletariado, ou seja, não haveria uma classe permanente e hereditária de inferiores sociais. Se a ordem jurídica e o costume social tivessem permitido que todos os indivíduos de valor se desproletarizassem e tivessem dado aos outros a oportunidade de desfrutar de uma parte da mais-valia considerável o suficiente para que a parte do capitalista não aparecesse mais do que como um salário de empresário, ainda haveria lutas de interesse, mas não haveria mais luta de classe socialista.
É especialmente no início da era industrial que a disposição socialista da classe trabalhadora aparece claramente como o efeito do que poderia ser chamado de seu “defeito inicial” devido ao excesso de poder da nova classe dirigente; mas, fundamentalmente, não é diferente hoje. O sentimento de equidade se levanta contra os capitalistas, não tanto pelo poder de consumo que a riqueza lhes proporciona (a maioria dos grandes empresários está muito absorvida por seus interesses e trabalha muito para serem grandes consumidores), mas pelo poder que possuem como detentores dos meios de produção. Esse poder parece imoral porque implica uma autoridade sem responsabilidade e, portanto, fere ao mesmo tempo o senso moral democrático, cristão e feudal. O que se reprova ao capitalismo não é tanto a mais-valia que ele apropria, mas o uso que faz dela para estabelecer uma predominância social que transforma os não-capitalistas em objetos de sua vontade. Portanto, o que leva o trabalhador à luta de classe não é tanto que ele tome consciência de seus interesses adquiridos, mas sim o fenômeno muito mais complicado e profundamente enraizado na vida afetiva, que a psicologia moderna chama de complexo de inferioridade social.