“Gabrielle Bompard exibe todas as características da criminosa congênita, geralmente raras nas mulheres. Sua estatura era de 1,46m; possuía quadris e seios rudimentares e, consequentemente, parecia masculina. Ela tinha cabelos grossos, rugas anormais e precoces, uma palidez lívida, um nariz curto e afundado, um maxilar volumoso. Acima de tudo, tinha um rosto assimétrico e eurignatismo mongol” (p. 302).
Acusada por cúmplice de assassinato em 1889, Gabrielle Bompard é utilizada, em toda a obra de Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero, como um dos mais perfeitos exemplos de uma criminosa nata. Além de seu caráter criminoso ser, supostamente, visível a partir de características físicas, ela também apresentava o que seriam particularidades psicológicas de sua natureza criminosa: havia menstruado com oito anos, era mentirosa contumaz, sugestionável, lasciva, dependente, histérica, além de possuir uma “tendência à vida de aventuras, irresponsável e ociosa” (p. 378).
Lombroso, mais conhecido por sua obra “O homem delinquente” aplica e expande, para as mulheres, suas concepções sobre o caráter natural e atávico da criminalidade. Porque, aqui, além da degeneração própria do homem criminoso, que o fazia se aproximar do selvagem, existe o complicador da feminilidade: afinal, a mulher seria inferior, evolutivamente, ao homem: menos moral, decidida e inteligente, tornando-a mais suscetível a tentações e mais facilmente influenciável às más companhias.
Porém, não estão nas ladras, nas assassinadas, nas envenenadoras ou nas agressoras os exemplos mais característicos dessa criminalidade feminina. Está na prostituição. A prostituta é o verdadeiro equivalente feminino do criminoso masculino.
Porque, segundo os autores, apenas uma pessoa profundamente degenerada poderia ir contra os dois instintos mais fundamentais das mulheres: a maternidade e o pudor. Além disso, não seriam prostitutas todas as mulheres selvagens? Mais um indício de degeneração: a prostituta nada mais seria, portanto, que uma mulher ainda mais atrasada na escala evolutiva. Não é à toa que ela apresenta todos os caracteres próprios de uma selvagem: promiscuidade sexual, pouco amor à família, sem apego a filhos, sem respeito à propriedade alheia, alcoólatra, gananciosa, despudorada, pouco inteligente, supersticiosa, gulosa, vaidosa, ociosa, incapaz de amar. E a lista continua: você pode consultar todas essas características no Capítulo IV, da Parte IV – “A prostituta nata”.
E as condições sociais? Importam, mas são menos relevantes. Os autores deixam claro que uma verdadeira mulher – uma “mulher honesta”, expressão que usam em todo o livro – se suicidaria antes de pensar em se prostituir, mesmo diante da mais absoluta miséria. É isso que uma “mulher normal” deveria fazer. Se ela se prostitui, por maior que seja sua necessidade, e por mais nobres que sejam seus objetivos, obviamente possui já uma natureza degenerada, mesmo que não inata, e que a leva a romper com a “verdadeira natureza” da mulher.
A obra de Lombroso e Ferrero é inconsistente, mesmo para os padrões científicos do período. Por mais que fundamentem sua visão em uma perspectiva biológica evolucionista, e se afirmem darwinianos, suas ideias são fundamentalmente equivocadas, ainda que estivessem em concordância com certos princípios do evolucionismo social. Mas, além disso, seus experimentos são tolos, suas amostras minúsculas, não possuem conceitos minimamente rigorosos. Suas ideias são contraditórias ao longo da exposição. A parte II é um plágio de obras de Pierre Dufour e Paolo Mantegazza. Acreditam cegamente em todas as informações que confirmem suas hipóteses (como a da prostituta francesa que teria vivido até os 135 anos), e combatem com veemência todas as ideias que estejam em conflito com as suas próprias. Aos amigos tudo; às inimigas, o rigor da misoginia.
Mas tudo isso só aumenta o mistério do texto de Lombroso e Ferrero: como, com tantos defeitos óbvios, esta obra continuou sendo continuamente reeditada até as primeiras décadas do século XX? A resposta mais simples é a de que, apesar de todos os seus defeitos – e eles certamente não são poucos –, o livro encontrou uma sociedade disposta a aceitar um discurso pseudocientífico que desse sustentação à inferioridade feminina.
E Gabrielle Bompard? Saiu da prisão após 12 anos. Talvez pouco para o crime que cometeu. De toda forma, tornou-se contraexemplo que confirmava a falsidade das ideias de Lombroso e Ferrero: jamais voltou à delinquência, ainda que tenha morrido pobre. De toda forma, obteve algum status de celebridade quando ainda era viva, devido à repercussão de seu julgamento, chegando a estabelecer uma amizade, veja você, com Santos-Dummont.