O misterioso missivista londrino de Krafft-Ebing

Se você estuda história da sexualidade, da medicina, da psiquiatria, dos direitos LGBT, certamente já passou seus olhos pelos textos de Richard von Krafft-Ebing, o famoso autor de “Psychopathia Sexualis”. Nós já insistimos, em outro post, que provavelmente tudo o que você sabe sobre ele está errado.

Um dos mais comuns erros relacionados a Krafft-Ebing está em considerar que ele é um psiquiatra que usa seus poderes de autoridade para rotular as pessoas de desviantes. Tudo o que não se encaixaria em seu modelo, seria “pervertido”. Essa é uma visão deformada do “Psychopathia Sexualis”, e algo grotesca, se comparado com o livro em si.

Na verdade, uma das principais fontes de informações sobre as dificuldades dos homossexuais, e de sua busca por direitos sociais, está no livro de Krafft-Ebing. Ali você encontra documentos que, há muito tempo, foram esquecidos pelos pesquisadores, justamente por conta desse preconceito em relação à obra.

Krafft-Ebing adotou a técnica de reproduzir, em seu livro – e sem comentários – algumas cartas autobiográficas que recebia de seus leitores. Algumas são mais curtas, de uma ou duas páginas; outras longuíssimas, atravessando mais de duas dezenas. Lendo-se esses textos tem-se uma visão, em primeira pessoa, dos pensamentos daqueles que eram pacientes dos livros de medicina da época; mas sua voz só aparece em “Psychopathia Sexualis”. E se percebe, também, que os conceitos criados por Krafft-Ebing não eram tirados do nada de sua cachola, mas construído em conjunto com os homossexuais, ou os fetichistas, ou os masoquistas.

Uma das mais interessantes cartas, é de alguém identificado simplesmente como um “homem de alta posição em Londres”. Certamente Krafft-Ebing o conhecia, pois ele será citado em outras de suas obras. De qualquer forma, o texto a seguir é um insight muito interessante sobre o posicionamento de certos homossexuais europeus, a respeito da situação social em que viviam.

Com a palavra, o misterioso missivista londrino:

“Você não tem ideia do que é uma luta constante que todos nós – especialmente aqueles de nós que têm a maior mente e melhores sentimentos – deve suportar, e como sofremos sob a prevalência de falsas ideias sobre nós e nossa assim chamada ‘imoralidade’.

“A sua opinião de que o fenômeno em consideração deve-se principalmente a uma disposição congênita ‘patológica’ pode, talvez, tornar possível superar os preconceitos existentes e despertar a compaixão pelos pobres e ‘anormais’ homens, em vez da atual repugnância e desprezo.

“Tanto quanto eu acredito que a opinião expressa por você é extremamente benéfica para nós, ainda estou obrigado, no interesse da ciência, a repudiar a palavra ‘patológico’; e você me permitirá expressar alguns pensamentos com respeito a isso.

“Sob todas as características, o fenômeno é anômalo; mas a palavra ‘patológico’ transmite outro sentido, que eu não posso aceitar que se adapte a este fenômeno; pelo menos, como tive ocasião de observá-lo em muitos casos. Concordarei, a priori, que, entre uranistas, pode ser observada uma proporção muito maior de casos de insanidade, de exaustão nervosa, etc., do que em outros homens normais. Será que este aumento de nervosismo depende necessariamente do caráter de uranismo, ou não seria resultado, na maioria dos casos, do efeito das leis e dos preceitos da sociedade, que proíbem a prática de seus desejos sexuais, fundados sobre uma peculiaridade congênita, enquanto outros não são assim impedidos?

“O uranista jovem, quando sente os primeiros impulsos sexuais e os expressa ingenuamente a seus colegas, logo descobre que não é compreendido; recolhe-se em si mesmo. Se diz a seus pais ou professor o que o motiva, o que para ele é tão natural quanto o é para um peixe nadar, será descrito como errado e pecaminoso, e ouve que é algo que deve combater e superar a qualquer preço. Em seguida, começa um conflito interior, uma poderosa repressão das inclinações sexuais; e quanto mais é reprimida a satisfação natural do desejo, mais animada se torna a fantasia e colore as próprias imagens que se desejava banir. Quanto mais enérgico o caráter que leva a este conflito interior, mais o sistema nervoso inteiro deve sofrer. Tal repressão poderosa de um instinto tão profundamente implantado em nós, em minha opinião, desenvolve os sintomas anormais que são observados em muitos uranistas; mas isso não é consequência necessariamente da disposição do uranista.

“Alguns permanecem nesse conflito por tempos mais ou menos longos, ferindo-se a si mesmos; outros finalmente chegam à conclusão de que o poderoso instinto com o qual nasceram não pode ser pecaminoso e, portanto, deixam de tentar fazer o impossível – a repressão do instinto. Então, no entanto, começam a ter sofrimento e excitação constantes. Quando um homem normal procura a satisfação de sua inclinação sexual, sabe como encontrá-la facilmente; não é assim com o uranista. Ele vê homens que o atraem, mas não se atreve a dizer – nem mesmo trair por um olhar – quais são seus sentimentos. Acha que apenas ele no mundo tem sentimentos tão anormais. Naturalmente procura a companhia de homens jovens; mas não se atreve a confiar neles. Assim, ele irá prover a si mesmo uma satisfação que não pode obter de outra forma. O onanismo é praticado desmedidamente, seguindo-se por todos os maus resultados desse vício. Quando, depois de um tempo, o sistema nervoso está ferido, a anormalidade não é mais o resultado do uranismo, mas produzido pelo onanismo ao qual o uranista recorre, como resultado do sentimento público que lhe nega oportunidade de satisfazer o instinto sexual que lhe é natural.

“Ou vamos supor que o uranista tenha tido a rara dose de sorte de encontrar, rapidamente, uma pessoa tal como ele; ou que tenha sido introduzido por um amigo experiente nos acontecimentos do mundo dos uranistas. Então ele será bastante poupado de seu conflito interior; mas, ao mesmo tempo, cuidados e ansiedades temíveis seguem seus passos. Agora ele sabe que não é o único no mundo que tem tais sentimentos anormais; abre seus olhos e se maravilha por encontrar tantos de sua espécie em todos os círculos sociais e em todas as profissões; também aprende que, no mundo dos uranistas, como no outro, há prostituição, e que tanto homens como mulheres podem ser comprados. Assim, não há mais nenhuma falta de oportunidade para a satisfação sexual. Mas, aqui, como é diferente a experiência obtida com a aquela na maneira normal de prática sexual!

“Consideremos o caso mais feliz. Depois de ansiar toda a sua vida, encontra um amigo com sentimentos semelhantes. Mas não pode abordá-lo abertamente, como um amante se aproxima da garota que ama. Com constante medo, ambos devem esconder suas relações; até mesmo a intimidade que poderia facilmente suscitar suspeitas – especialmente se não fossem da mesma idade, ou pertencerem a classes diferentes – devem ser mantidas fora do conhecimento do mundo. Assim, mesmo nesta relação, é forjada uma cadeia de ansiedade e medo de que o segredo será traído ou descoberto, o que não lhes garante alegria na prática. A menor coisa que não afeta aos demais, os faz tremer de medo, como surgir a suspeita do segredo ser descoberto, destruindo a tanto posição social de ambos, como os negócios. Poderia essa constante ansiedade e preocupação se manter sem deixar sequelas, sem exercer influência sobre todo o sistema nervoso?

“Outro homem menos afortunado, que não encontra um amigo de sentimentos iguais, mas cai nas mãos de um belo homem, que o procurou até que o segredo foi descoberto. Agora, a mais refinada chantagem é realizada. O infeliz, o homem perseguido, trazido à alternativa de pagar ou de perder sua posição social, o que traria desgraça sobre si mesmo e sobre sua família, paga; e quanto mais ele dá, mais voraz se torna o vampiro; até que finalmente não sobra nada, senão a absoluta ruína financeira ou a desonra. Quem pode admirar que os nervos não sejam os mesmos dentro de uma luta tão terrível!

“Eles cedem; a insanidade se aproxima, e o homem miserável finalmente encontra, em um asilo, o descanso que não poderia encontrar no mundo. Outro, na mesma situação, desesperado, encontra alívio no suicídio. Não se pode saber quantos suicídios de homens jovens devem ser atribuídos a essa combinação de circunstâncias.

“Eu não acho que esteja errado quando declaro que pelo menos metade dos suicídios de homens jovens devem-se a tais condições. Mesmo nos casos em que os uranistas não sejam perseguidos por um vilão sem coração, mas quando existe uma relação feliz entre dois homens que é descoberta, ou mesmo o próprio medo de ser descoberto, muitas vezes leva ao suicídio. Quantos oficiais, quantos soldados, tendo tais relações com seus subordinados ou companheiros, no momento em que se creem descobertos, procuram escapar da ameaça da desgraça por meio de uma bala. E é o mesmo em todas as profissões.

“Portanto, se é preciso admitir que, entre os uranistas, sejam realmente observadas mais anormalidades mentais, e mais insanidade, do que entre outros homens, isso não prova que o distúrbio mental é um acompanhamento necessário da condição do uranista, já que este último induz o primeiro.

“De acordo com minha firme convicção, de longe o maior número de casos de problemas mentais ou distúrbios anormais observados em uranistas não devem ser atribuídos à anomalia sexual; mas são causados pelas existentes concepções a respeito dos uranistas, e das consequentes leis, em um sentimento público dominante sobre a anomalia. Qualquer um que possua uma adequada ideia sobre o sofrimento mental e moral, da ansiedade e dos cuidados que o uranista deve enfrentar; da constante hipocrisia e sigilo que deve praticar para ocultar seu instinto interior; das dificuldades que encontra para satisfazer seu desejo natural, só pode se surpreender que não sejam ainda mais comuns em uranistas a insanidade e a perturbação nervosa. A maior parte desses estados anormais não teria surgido se o uranista, como os demais, pudesse encontrar uma maneira simples e fácil de satisfazer seu desejo sexual – se não estivesse sempre perturbado por essas ansiedades”.

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