Relançamos uma das principais obras da história do feminismo brasileiro: Virgindade anti-higiênica, de Ercília Nogueira Cobra. Ainda que seu pensamento esteja sendo recuperado, há quase um século não surgiam novas edições de sua obra.
Abaixo, você pode ler a Apresentação escrita para essa edição especialíssima, e comentada, do livro de Ercília Cobra.
Sabe-se que Ercília Nogueira Cobra nasceu em 1891, em São Paulo, e o fato de não sabermos quando e onde faleceu diz muito sobre o significado do impacto social de sua escrita.
Virgindade anti-higiênica, publicado originalmente em 1924, é um dos dois únicos livros escritos por Ercília Cobra. O outro, publicado em 1927, apresenta ideias semelhantes, embora na forma de um romance: Virgindade inútil e anti-higiênica. Em ambas as obras, ainda que mais claramente nesta que você tem em mãos, o argumento de Ercília Cobra é direto e impactante: a negação de uma educação formal à mulher, igual à dada ao homem, e a imposição de um rigor comportamental, particularmente em relação aos atos e desejos sexuais, é resultado de preconceitos defendidos pelos homens – que se beneficiam deles – não fundados na ciência. Mas em preconceitos que seriam, como ela bem disse, hipócritas. Para Ercília Cobra, a concepção do período que avaliava a honra feminina a partir de sua virgindade era incompatível com a modernidade, com a higiene, e com a indiscutível igualdade que existia entre homens e mulheres.
Seu argumento é direto e explícito, como você poderá confirmar nas próximas páginas. E, por isso mesmo, Ercília Cobra recebeu todas as sanções sociais possíveis para uma mulher que questionava, especialmente de tal forma aberta, os princípios fundamentais da diferença entre gêneros. Condenada pela Igreja, renegada pela família, perseguida pela justiça (teria sido ela, inclusive, presa durante o Estado Novo), viu-se, na década de 1940, obrigada a mudar de nome. Provavelmente, segundo o único e já antigo estudo sobre sua biografia, acabou se casando e fugiu do país. Ercília desapareceu: parece ter sido a solução que encontrou para fugir da avassaladora pressão social que recebeu por expor suas ideias transgressoras. Falta quase tudo de trabalho historiográfico para que se possa conhecer essa segunda e enigmática parte da vida de Ercília Cobra.
Apesar de desde a década de 1980 terem aumentado os estudos sobre o pensamento de Ercília Nogueira Cobra, o Brasil não contava com edições mais recentes desta sua obra, por assim dizer, teórica. O objetivo da publicação desta edição de Virgindade anti-higiênica é o de ajudar à recuperação das ideias e da própria vida de Ercília Cobra.
Não se trata, porém, de uma mera reprodução de seu livro. Como estratégia retórica – quem sabe para demonstrar sua capacidade intelectual e seu conhecimento? – muitos trechos de sua obra foram escritos originalmente em francês: citações de obras estrangeiras usadas como sustentação aos argumentos. Essa versão traz a tradução desses trechos.
Além disso, as notas procuram identificar os vários autores citados por Ercília Cobra, algo que nem sempre é simples. Certos autores algo populares no período, ao menos entre a elite que tinha acesso a textos estrangeiros, são hoje relativamente desconhecidos, e sobre os quais há poucas informações. De toda forma, as informações mais pertinentes sobre esses escritores, bem como sobre suas obras, estão presentes.
Essa viagem nas referências bibliográficas de Ercília Cobra revelou duas curiosidades que cabe destacar. A primeira é a pequena distorção intencional de uma citação de Schopenhauer. A segunda é a existência de dois parágrafos que ela traduziu e reproduziu em seu livro sem citar o autor original, o francês Georges-Anquetil. Ambas talvez possam ser explicadas pela mesma razão: o desejo de Ercília Cobra de se aproveitar dos argumentos desses autores em função de seus objetivos, mas sem se alinhar com o ataque, presente em ambos, aos relacionamentos monogâmicos. Detalhes dessa hipótese podem ser encontrados na nota 3, da página 64.
Boa leitura.