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Nesta confissão, Fernão Rodrigues, denuncia o então governador do Brasil Diogo Botelho – revelando como as práticas sexuais e amorosas no Brasil colônia passavam distantes daqueles modelos pregados pela Igreja e pela moral socialmente aceita. Trata-se de um dos mais interessantes testemunhos do cotidiano sexual do Brasil em inícios do século XVII.
Confissão de Fernão Rodrigues
Aos doze dias do mês de setembro de mil seiscentos e dezoito anos, na cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, na Igreja do Colégio da Companha de Jesus, em audiência de pela manhã no tempo da graça, estando aí o senhor Inquisidor Marcos Teixeira, perante ele apareceu sem ser chamado Fernão Rodrigues de Sousa, Cristão Velho, natural de Vila Galega no Reino, de idade de vinte e cinco anos, pouco mais ou menos, Cavaleiro fidalgo nos livros de sua Majestade, e casado e morador na freguesia de Nossa Senhora do Socorro, sete ou oito léguas desta cidade.
E sendo presente para em tudo dizer verdade e ter segredo, lhe foi dado juramento dos santos Evangelhos, em que pôs a mão, sob cargo do qual assim o prometeu.
E disse que haverá quatorze anos, pouco mais ou menos, que nesta cidade, servindo ele Confitente de pajem a Dioguo Botelho, Governador que então era destas partes do Brasil, depois de por algum tempo o dito Diogo Botelho o tratar com muitos mimos e favores, o fez deitar consigo na cama, e veio a dormir com ele Confitente carnalmente pela parte traseira, efetuando o pecado nefando de sodomia, a primeira noite, uma vez somente, por força, e contra vontade dele Confitente.
E com medo do dito Cúmplice o matar, não se atreveu a gritar; e depois, por espaço de dez anos, pouco mais ou menos, continuou em cometer o dito pecado nefando com ele, Confitente, assim nesta cidade, em duas moradas de casas onde morara, uma das quais estão no terreiro deste Colégio aonde mora ao presente Diogo Baracho, escrivão da Alfândega, e nas casas que chamam dEl Rei, aonde agora se faz a Rolação, como nas casas de Lisboa, em as casas da sua quinta que tinha ao Chafariz de Arroios.
E declarou ele, Confitente, que no decurso do dito tempo dormira carnalmente com o dito Cúmplice pela parte traseira, quinze ou vinte vezes, efetuando o dito pecado de Sodomia, por o Cúmplice o provocar, e forçar a isso.
E assim disse que se acusava que no dito tempo que tem dito, servindo ao dito Cúmplice Diogo Botelho, cometera com ele Confitente o mesmo pecado nefando de sodomia com Dioguo da Silva – natural de Alcochete, no Reino, que seria de idade, naquele tempo, de vinte e cinco anos, e solteiro; e que servira de Almoxarife nesta cidade, e de criado ao dito Dioguo Botelho – por espaço de oito ou dez vezes nesta cidade, em casa do dito Dioguo Botelho, que morava então nas ditas casas dEl Rei, e também nas casas em que o dito Diogo da Silva morava, em que agora mora o licenciado Phelippe Thomas, sendo ele Confitente, o paciente.
E declarava que o dito Dioguo da Silva está casado, e morador nesta Bahia, e é lavrador de Canas para a parte de Cotegipe, segundo ele Confitente ouviu dizer.
E assim disse que se acusava mais de cometer o dito pecado nefando de sodomia sendo paciente de Antônio Galvão, natural desta cidade, casado, e morador em Lisboa, em Alfama, que seria no tempo em que começou a cometer o dito pecado nefando com ele Confitente, de idade de quatorze anos, pouco mais ou menos; e hoje será de vinte e cindo anos. E cometeram ambos o dito pecado por espaço de oito anos, assim nesta cidade, como na dita quinta, servindo ambos ao dito Dioguo Botelho, e morando em sua casa no dito tempo.
Sendo o dito Dioguo Botelho das mais das ditas vezes o que os provocava e fazia cometer o dito pecado em sua presença para se provocar, e incitar ao mesmo.
O que também usava, quando ele Confitente, e o dito Dioguo da Silva, cometiam o mesmo pecado como tem dito. E como quis também fazer nesta cidade e na dita quinta com João dEstol, filho de Portuguesa e de um Todesco da guarda que também era criado do dito Dioguo Botelho, e mandado e provocado por ele tentou cometer o dito pecado nefando em sua presença, com ele Confitente quinze ou vinte vezes nesta cidade.
E no Reino, servindo ele, Confitente, no dito tempo que tem dito ao dito Dioguo Botelho, e o dito João dEstol servindo nesta cidade, e no Reino também, nas casas e quintas acima declaradas; e por ele, Confitente, lhe resistir, nunca acabou de efetuar o dito pecado.
O que também quis o dito Dioguo Botelho usar nesta cidade casas e tempo acima declarado com um flamengo por nome Anrique, que seria de vinte e cinco anos, e hoje dizem está casado no Porto do Calvo, distrito de Pernambuco; o qual flamengo, por mandado e procuração do dito Dioguo Botelho, e em sua presença, por três ou quatro vezes tentou cometer o dito pecado com ele Confitente, e por lhe resistir o não efetuou.
E assim disse mais que era verdade que na cidade de Lisboa haverá sete ou oito anos, o dito Dioguo Botelho na dita sua quinta, e em outra que tinha em Aldeia Galega, provocara e mandara em sua presença a ele Confitente que consentisse que Agostinho Ferreira, natural de Lisboa, solteiro, filho de um tabelião do Paço dos Tabeliães, que fora da obrigação da casa do dito Dioguo Botelho, e mora hoje na dita cidade de Lisboa, na calçada de Santo André, cometesse por três ou quatro vezes o dito pecado nefando em sua presença. E por ele, Confitente, lhe resistir muito, não houve efeito.
E assim disse mais, ele Confitente, que era verdade que sabia pelo ver, e se confiar o dito Dioguo Botelho dele, que no dito tempo em que ele Confitente o serviu, e nas ditas casas e mais partes acima declaradas, cometera o dito Dioguo Botelho o pecado nefando de sodomia com os sobreditos, sendo umas vezes paciente, outras agente; a saber, nesta cidade, com o dito Dioguo da Silva e com o dito João dEstol; e aqui e em Lisboa com o dito Antônio Galvão; e nesta cidade com o dito flamengo chamado Anrique.
E segundo o dito Dioguo Botelho lhe disse a ele Cofitente, também cometeu o dito pecado nefando com o dito Agostinho Ferreira, e com um seu criado por nome Hiculau Soares, nesta cidade, natural de Lisboa, a quem o dito Dioguo Botelho casou nesta cidade, e lhe deu muitos mil cruzados; o qual Hiculau Soares levou sua mulher para o Reino, e ele está em um engenho seu em Jaguaripe, quatorze ou quinze léguas desta cidade.
E ele Confitente o viu entrar e sair muitas vezes em camisa e ceroulas na câmara do dito Dioguo Botelho, depois da meia noite. E que disso suspeitava ser verdade que o dito Dioguo Botelho lhe tenha dito. E também por o dito Dioguo Botelho ter pedido a ele, Confitente, que cometesse o mesmo pecado nefando com o dito Hiculau Soares, que sabe por lhe o dito Dioguo Botelho lhe dizer que ele, Confitente, o cometia com ele.
E declarou que afora as vezes que fora constrangido a cometer o dito pecado nefando, as outras vezes que tem dito, que foram muitas, o cometer por sua vontade, e pô-la fazer ao dito Dioguo Botelho que lho pedia e o provocava nisso.
De que tudo disse que se acusava e pedia perdão e misericórdia, e estava obediente à penitência que se lhe desse.
E por que dizer que não tinha mais que confessar, lhe foi dito pelo senhor Inquisidor, que tomara bom conselho em se vir acusar a esta mesa das ditas culpas, assim para a salvação da sua alma, como para se usar com ele de muita misericórdia.
E foi perguntado se havia mais testemunhas dos casos de sua confissão, e se houvera escândalo deles, e a que horas aconteceram, se depois de jantar, ou de cear?
Respondeu que não sabia de mais testemunhas que as que tem dito que fossem de vista que ele Confitente soubesse; e que era verdade que os criados da casa davam a entender que o suspeitavam, e havia entre eles escândalo disso. E que pelos muitos mimos e favores que o dito Dioguo Botelho fazia a ele Confitente, não faltaria dente de fora que o suspeitasse, mormente tendo o dito Dioguo Botelho fama disso. E que de noite e de dia aconteceram os casos de que se acusava; de dia, quando havia ocasião; e de noite, quando o dito Dioguo Botelho chamava a ele, Confitente, para a sua cama, e a algum dos outros cúmplices.
E, na sua cama, estando o dito Dioguo Botelho também lançado na cama, cometiam todos três o dito pecado nefando de sodomia. E que de dia, pela maior parte, era depois do jantar; e de noite, depois de cear, quando estavam recolhidos para dormir.
E perguntado se sabia quem os Cúmplices estavam em seu perfeito juízo, ou acostumavam a sair dele, e a tomar-se do vinho, e se sabia que causa era o pecado nefando de sodomia, e que motivo tivera para se vir acusar a esta mesa?
Respondeu que nunca vira os ditos cúmplices fora de seu juízo, nem tomados do vinho; e que o pecado nefando de sodomia de que se acuava era meter sua natura pela parte traseira do cúmplice e derramar dentro em seu corpo a semente genital, ou consentir fazer-lhe o cúmplice o mesmo. E que por ver fazer aos cúmplices e as outras pessoas de que tem dito esta confissão, os atos que intervém no dito pecado, pondo-se um sobre outro, com modos desonestos e torpes, e aparelhados para a dita torpeza, entender que cometiam o dito pecado de sodomia.
E que o que o movera a se vir confessar dos ditos casos a esta mesa, por gozar da graça e perdão que se prometia, e por desencarregar sua consciência. E por esta mesma razão denunciara também dos culpados que sabia do caso, e que não sabia de mais.
E sendo pergunto se fora já acusado por semelhante caso, ou preso e castigado, e se tivera algumas inimizades com os ditos cúmplices e denunciados?
Disse que nunca fora preso, nem compreendido pelo dito crime; e do costume disse nada, e que somente com o dito Antônio Galvão haverá dois anos que tiveram umas desavenças sobre ele lhe negar um pouco de dinheiro, mas que não lhe tinha ódio, e tinha dito a verdade.
E também tivera semelhantes desavenças de matéria de dinheiro com o dito Hiculau Soares, haverá ano e meio, mas que já correm, e lhe não quer mal.
Estiveram a tudo presentes pessoas honestas e religiosos padres, Domingos Monteiro e o Padre Manoel Sanches, sacerdotes deste colégio que tudo viram e ouviram. E prometeram ter segredo e dizer verdade no que lhes fosse perguntado, e assim o juraram aos santos evangelhos em que puseram suas mãos. E assim aqui com o dito senhor Inquisidor e juntamente com o dito Fernando Rodrigues de Sousa; Manoel Marinho o escrevi.
[Assinaturas do Inquisidor, das testemunhas e do depoente]
E ido o dito Fernando Rodrigues de Sousa para fora, foram perguntados os ditos reverendos Padres se lhes parecia que ele, Fernando Rodrigues de Sousa, falava verdade e se lhe devia dar crédito? E por eles foi o dito que lhes parecia que ele falava verdade, e que era homem simples e de boa gente, e assim se lhe devia dar crédito; e assinaram aqui com o senhor Inquisidor: Manoel Marinho o escrevi.
[Assinaturas do Inquisidor e das testemunhas]
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