A Inquisição no Brasil em 1618 – Depoimento de Maria despenhosa

Nesta confissão, Maria despenhosa (também grafada “despinhosa” – e, em ambos os casos, com a letra inicial e minúscula) é acusada de “ler a sorte”. O depoimento é interessante pelo que revela das crenças do período que contradiziam aquelas difundidas pela Igreja Católica.


Confissão de Maria despenhosa

Aos dezoito dias do mês de setembro de mil seiscentos e dezoito anos, na cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos, na Igreja do Colégio da Companha de Jesus, estando aí em audiência de pela manhã no tempo da graça o senhor Inquisidor Marcos Teixeira, perante ele apareceu sem ser chamada Maria despenhosa, cristã velha, de idade de cinquenta anos, natural dos Ilhéus, casada e moradora abaixo do mosteiro de São Bento desta cidade.

E sendo presente para em tudo dizer verdade e ter segredo, lhe foi dado juramento dos santos Evangelhos, em que pôs a mão, sob cargo do qual assim o prometeu.

E disse que se acusava nesta mesa e pedia misericórdia que haveria dois meses, pouco mais ou menos, que nesta cidade, em sua casa, fizera umas sortes com um Livro das Horas de Nossa Senhora, e com uma chave, por lho pedir Barbara Gudinha, mulher solteira, sua vizinha, para descobrir um furto; e uma dona Maria, mulher de Manoel Cardoso de Amaral, para se descobrirem dois furtos; de modo que fez as ditas sortes uma vez para se descobrirem os ditos dois furtos.

E por dizer que não tinha mais que confessar, lhe foi perguntado pelo senhor Inquisidor quem lhe ensinara as ditas sortes, e se tinha algum pacto com o Demônio por razão delas, e se houvera escândalo de usá-las, e se as ensinara a alguém?

Respondeu que ela aprendera as ditas sortes de duas mulheres suas amigas já defuntas, uma chamada Anna Coelha, mulher que foi de Domingos preto, carpinteiro, morador nesta cidade; e outra Madanella de França, que ora reside em o Peru, e que não tinha pacto com o Demônio, nem ensinara a pessoa alguma as ditas sortes, nem sabia quem houvesse escândalo delas.

E sendo perguntado pela forma das ditas sortes, disse que o modo que se faziam era o seguinte: tomar um livro das Horas de Nossa Senhora, e meter-lhe o meio das folhas uma chave e fechar o dito livro, de modo que ficava a maior parte da chave para fora; e ajudando-lhe um menino que seria de oito anos, a ter mão na dita chave, e dizendo ela, Confitente: eu te esconjuro de parte de Deus e da Virgem Maria pela virtude destas horas que me digas quem tomou tal coisa; e nomeando as pessoas em que havia suspeita e estavam presentes, dando o dito livro uma volta ao tempo em que ela, Confitente, nomeava a pessoa que tinha feito o furto.

E perguntada se lhe parecera que o sobredito se fazia por obra do Demônio ou por milagre Divino, e se sabia que a santa Madre Igreja defendia as ditas sortes por serem coisa aonde o Diabo costumava assistir?

Respondeu que lhe parecia que o adivinhar que fazia os furtos era obra de Deus e não do Demônio, e que cuidava que era coisa leve e não defesa, que se o soubera não usara dela.

Perguntada que testemunhas se acharam presentes, e se sabia de pessoas culpadas no dito crime, ou em outros pertencentes ao Santo Ofício, e que motivo tivera para se vir acusar?

Disse que as ditas Dona Maria e Bárbara Gudinha, e que não sabia mais do que tem dito, e fez seu sinal por não saber escrever. Manoel Marinho o escrevi.


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