Diogo Lopes era mercador e sua confissão parece banal: ele admite que fez gracejos com estátuas de santos, cujas representações lhes lembrava outros moradores de Salvador. Mas dois elementos podem ser destacadas de seu depoimento: o primeiro, era de que ele era “da Nação”, ou seja, judeu; assim, qualquer brincadeira com símbolos católicos era visto com maior desconfiança. O segundo ponto é que seu depoimento, como tantos outros dessas confissões, revelam-nos pequenos instantâneos interessantes da vida cotidiana em Salvador no século XVIII
Confissão de Diogo Lopes Franco
Aos treze dias do mês de setembro de mil seiscentos e dezoito anos, na cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos, na Igreja do Colégio da Companha de Jesus, em audiência de pela manhã no tempo da graça, estando aí o senhor Inquisidor Marcos Teixeira, perante ele apareceu sem ser chamado Diogo Lopes Franco, da Nação, natural de Montemor o Novo, no Reino, de idade de vinte e seis anos, filho de Luís Dias, mercador, e de Ana Lopes, todos da Nação, já defuntos; moradores foram na dita vila de Montemor o Novo; e ele casado, mercador, e morador em Matoim, seis léguas desta cidade.
E sendo presente para em tudo dizer verdade e ter segredo, lhe foi dado juramento dos santos Evangelhos, em que pôs a mão, sob cargo do qual assim o prometeu.
E disse que se acusava que na semana santa da quaresma próxima passada, nesta cidade, fazendo-se na hermida de Nossa Senhora da Ajuda, umas figuras dos Apóstolos para a ceia da Quinta-feira de Endoenças, pusera ele, Confitente, a mão em os rostos dos sagrados Apóstolos, comparando-os com alguns homens desta terra, e de um deles dissera que se parecia com o Meirinho do Mar; e disse que não lhe lembrava mais e que disso pedia perdão, e estava arrependido e obediente para a penitência que se lhe desse.
E logo pelo senhor Inquisidor lhe foi dito que fora bem aconselhado em se vir acusar assim para a salvação da sua alma, como para se usar com ele de muita misericórdia; e lhe perguntou que testemunhas se acharam presentes quando o caso aconteceu, se houve escândalo dele, e se o louvou alguém ou reprovou?
Ao que o Confitente respondeu que senão lembrava estarem aí mais testemunhas que o Padre Domingos Lopes, sacerdote coadjutor que hora é em Paripe, quatro léguas desta cidade, e o Padre Soveral, que então era capelão de Nossa Senhora d’Ajuda, que não sabe onde agora reside; e outras pessoas de que não estava lembrado; e que não houvera escândalo do caso, porque ainda então tinham chegado os rostos das ditas figuras dos Apóstolos de casa do Cereeiro e as começavam a vestir.
E perguntado que intenção tivera no caso, e se sentia e cria que não devia haver imagens, e que eram coisa profana, e que por isso mereciam ser escarnicadas; e se sabia que a Santa Madre Igreja as aprovava e mandava que se venerassem e respeitassem muito?
Respondeu que o que dissera fora galanteando, parecendo-lhe que não era coisa de escândalo, e que bem sabia que as imagens deviam ser veneradas e respeitadas, e que assim o mandava a santa Madre Igreja.
E sendo perguntado se quando o caso aconteceu estava em seu perfeito juízo, ou acostumava a sair dele e a que horas acontecera?
Disse que não estava lembrado se era pela manhã, se à tarde, mas que estava em seu perfeito juízo, e não costuma a sair dele.
E perguntado se houve outras pessoas que fizessem o mesmo ou coisas semelhantes às ditas figuras quando o caso aconteceu? Disse que não sabe se foi dessa vez, se de outra, vira a Duarte Alvarez Ribeiro, da Nação, casado e morador nesta cidade, que não sabe donde é natural, galantear com as mesmas figuras, dizendo que se pareciam com uns e com outros.
E perguntado que o movera a se vir acusar a este tribunal, e se se denunciara já do caso diante do ordinário?
Disse que por se temer de inimigos que lhe poderiam trocar as palavras, e a intenção delas, se vinha acusar; e que suspeitava que diante o ordinário se tratara já do caso.
E sendo perguntado se fora já penitenciado ou reconciliado pelo Santo Ofício ou alguns parentes seus; e se sabia de alguns culpados em erros contra a santa fé, ou em culpas pertencentes ao Santo Ofício? E pelo costume, com o dito Duarte Álvarez?
Respondeu que o dito seu pai morrera preso no Santo Ofício, e sua estátua fora queimada, e alguns mais parentes seus penitenciados; e que não sabia mais. E do costume disse que era amigo do dito Duarte Álvarez.
E foi mandado tornar à mesa.
Estiveram a tudo presentes pessoas honestas e religiosos padres, Domingos Monteiro e o Padre Manoel Sanches, sacerdotes deste colégio da Companhia, que tudo viram e ouviram. E prometeram ter segredo e dizer verdade no que lhes fosse perguntado, e assim o juraram aos santos evangelhos em que puseram suas mãos. E assim aqui com o dito senhor Inquisidor e juntamente com o dito Diogo Lopes Franco; Manoel Marinho o escrevi.
[Assinaturas]
E ido o dito Diogo Lopes Franco para fora, foram perguntados os ditos reverendos Padres se lhes parecia que ele, Diogo Lopes Franco, falava verdade e se lhe devia dar crédito? E por eles foi o dito que lhes parecia que ele falava verdade no que faz contra ele, e no mais que se há de lhe dar crédito; e assinaram aqui com o senhor Inquisidor: Manoel Marinho o escrevi. E declararam que, no que diz do Cúmplice, se lhe pode também dar crédito. Eu, Manoel Marinho, o escrevi.
[Assinaturas]
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