Hegel e o Idealismo de Wilhelm Dilthey

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Primeiro desenvolvimento e estudos teológicos

I. Anos escolares

Hegel nasceu em Stuttgart, em 27 de agosto de 1770. Seu pai era funcionário do ducado, e a família era de antigo espírito protestante, com toda a sua grave simplicidade. E, se é verdade que mais tarde os ideais de Weimar e de Jena modificaram suas ideias sobre a vida, no que diz respeito à sua vida pessoal continuaram influenciando decisivamente as velhas formas de honradez sólida que marcaram sua infância; se seu pensamento mergulhou profundamente na problemática do mundo moral, sua vida pessoal, no entanto, permaneceu incontaminada por qualquer dúvida quanto aos costumes protestantes e às regras de vida da casa paterna. O espírito suábio enraizou-se em seu ser e manifestou-se com mais força do que nos outros dois grandes contemporâneos wurtemberguenses: Schiller e Schelling. Nada havia nele daquele temperamento inquieto que se alimenta da consciência orgulhosa de uma individualidade importante. Seu espírito ingênuo, objetivo, resistia ao sentimento aristocrático do que é peculiar, tal como se manifesta em temperamentos nórdicos como Jacobi, Humboldt e Schleiermacher. Frio e alheio, como um mero espectador, diante das trágicas e românticas experiências do destino vividas por seus companheiros – Hölderlin em Frankfurt, Schelling em Jena, Creuzer em Heidelberg –, vai se desenvolvendo lentamente, em um trabalho calmo, e às vezes é acometido daquela sensação de desamparo que decorre da alienação da pessoa nas coisas. Sua natureza simples, inconsciente de si mesma, sem pretensões, sem fachada, conquistava-lhe amigos por toda parte, amigos que o estimavam sem se sentirem incomodados pela distância em que estavam em relação ao gênio. Ao seu forte senso de realidade correspondia aquele dom de se adaptar às circunstâncias estreitas que o cercavam, aceitando-as sem ambição desmedida. A mais sólida sensatez regulava sua vida, e um humor amistoso iluminava suas limitações. Sua pátria, sua família e seu temperamento haviam-no equipado de forma feliz.

Foi um aluno exemplar no ginásio de Stuttgart. Mas, desde cedo, era impelido pela curiosidade filosófica. Tudo nele e ao seu redor era regulado. Conserva-se um diário dessa época em que registra com certa dose de pedantismo seus estudos, suas férias, os diversos acontecimentos. E nos métodos do estudante já se percebe a técnica bem elaborada do erudito; preparava seus resumos em folhas separadas, de modo que pudessem ser utilizados a qualquer momento; desde então adquire o hábito de tomar notas cuidadosas do que lia, para aproveitar os estudos com uma fidelidade objetiva. Esse exercício, praticado até a velhice, desenvolveu sua grande capacidade de dominar grandes massas de material e de encontrar a expressão mais concisa para a natureza dos acontecimentos históricos.

Seu período escolar coincide com o desenvolvimento da literatura alemã, desde Emilia Galotti até Ifigênia e Dom Carlos. No entanto, não há vestígios disso além de seu conhecimento de O Messias, de Fiesko e, sobretudo, de Natan.

A literatura que lhe é familiar compõe-se de obras do Iluminismo, de Garve e Sulzer até Nicolai e os jornais da época. Seu autor de cabeceira é Lessing. Seguindo o gosto psicológico do Iluminismo, registra experiências de todo tipo, e seu interesse lógico manifesta-se numa coleção de definições. Desde o início predominava nele o pensamento objetivo.

Nessa época em que o sentimento da vida e a poesia sentimental constituíam a força em ascensão, seu interesse orienta-se exclusivamente pelas coisas e dirige-se, com uma energia livre e radical, à realidade, sem qualquer reflexão sobre si mesmo. E aquilo que ele busca assimilar em primeiro lugar são a Antiguidade e a História.

A literatura grega havia conquistado uma posição importante nos estudos do ginásio graças a Gesner e Heyne, e Winckelmann, Lessing e Herder haviam aberto caminho para sua compreensão. Hegel dedicou atenção aos trágicos, traduziu Sófocles e, desde então, o acompanhou certa predileção por Antígona. Como na maioria dos ginásios da época, também no de Stuttgart o estudo dos gregos se entrelaçava com uma forte dose do espírito iluminista, que ressoava em Hegel.

O sacrifício a Esculápio ordenado por Sócrates ao morrer – um profundo jogo irônico com a ideia de salvação da longa enfermidade que é a vida – é entendido pelo discípulo ilustrado como uma adaptação do sábio aos conceitos religiosos do povo, e a mitologia dos gregos é explicada pelo fato de que, naquele tempo, os “homens não possuíam iluminação”. Esse pragmatismo um tanto presunçoso permeia todos os escritos dos últimos anos de ginásio.

Entre os problemas da Ilustração, o que mais o atrai é o da compreensão filosófica da história, e já nesse período ele adota os métodos da historiografia universal e filosófica do século XVIII. Num ensaio sobre a religião dos gregos e romanos, parte de uma teoria geral sobre a origem das religiões e, ao modo iluminista, deriva as formas mais antigas da ignorância das leis da natureza, da estrutura despótica da sociedade e do desejo de poder dos sacerdotes. O avanço rumo à Ilustração se dá por meio de homens de razão mais serena, que transmitem conceitos mais adequados. Suas observações sobre algumas diferenças entre poetas clássicos e modernos anunciam a superioridade dos gregos, e, ao considerar os motivos disso, leva principalmente em conta a relação entre a arte e toda a vida da nação. O público dos épicos gregos era o povo, que reagia com um sentimento comum àquilo que a arte apresentava; “nosso maior poeta épico” (Klopstock), apesar da sábia escolha do tema, “só podia despertar interesse na parte instruída do povo alemão e interessada pelas ideias cristãs”.

Assim, Hegel compreende desde o início a religião e a arte em conexão com a vida das nações. Nesse ponto, segue o espírito da Ilustração; mas manteve essa perspectiva mesmo quando os grandes poetas alemães passaram a separar a vida superior de seus fundamentos nacionais. A essa ideia corresponde a surpreendente maturidade de seu pensamento político, tal como se manifesta num diálogo dos triúnviros romanos, que, aliás, revela influência shakespeariana.

Também prevalece o empenho pedagógico da Ilustração, seu esforço em fundamentar a doutrina da educação no estudo do ser humano e de seu desenvolvimento. Todo o seu pensamento é dominado pelo espírito pragmático, político e prático da Ilustração; havia, sem dúvida, um traço fundamental em Hegel que se ajustava muito bem a essa direção – e que ele sempre manteve.

A vocação filosófica manifesta-se no jovem em seu desejo universal de saber, tal como revelam seus resumos e seu diário; seu interesse abrange, como o do jovem Leibniz, todos os campos do saber humano, e mostra-se metódico e coerente ao tentar compreender a Antiguidade, a história e as conexões espirituais que há nelas. Percebe-se claramente como, com base no trabalho histórico da Ilustração, surge essa orientação para a penetração e a “interiorização” da história.

“Há tempos venho meditando sobre a história pragmática. Hoje já tenho uma ideia sobre ela, embora bastante obscura e unilateral.” Para além dos simples fatos, ele busca alcançar os traços dos homens ilustres, os costumes, a religião, todo o caráter de uma nação. Estuda a influência dos acontecimentos sobre a constituição e a singularidade dos Estados, as causas de sua ascensão e de sua queda. É a História de Voltaire e de Montesquieu. E sua finalidade prática – provocar uma cultura das nações fundada na Ilustração – é também o sentimento original dessas mentes políticas. Com a história das religiões, devemos aprender a submeter a exame todas as opiniões herdadas e transmitidas de geração em geração, inclusive aquelas em que nos parece impossível haver dúvida. Nesse espírito tão objetivo arde, ao mesmo tempo, o anseio pela libertação do ser humano de toda a opressão imposta por crenças e formas de vida tradicionais.

Época universitária

1. No outono de 1788 começam os estudos universitários em Tubinga, que duram cinco anos, até o outono de 1793.

Agora é acolhido pelo antigo claustro agostiniano ao pé do Burgberg, a “fundação” por onde passou toda uma série de espíritos livres e ousados: junto a Hegel, Hölderlin e Schelling, mais tarde Baur, Strauss, Vischer, Zeller, Schwegler. Reina ali uma aliança única entre regra exterior e liberdade interior. O silêncio conventual no magnífico vale do Neckar, as velhas regras do Instituto, os estudos gerais, especialmente a filosofia, tudo favorece o desenvolvimento do espírito científico independente dos alunos. Assim também influenciou Hegel, e nesse estabelecimento se acentua o traço fundamental de seu caráter: a entrega de toda a sua intimidade às grandes realidades da ciência, da Igreja e do Estado. O reverso, porém, era que essa formação um tanto monástica sufocava todos os germes que sua personalidade austera poderia oferecer para a expressão exterior e o desenvolvimento pessoal.

Uma vida interior que, desde a cela de estudo, persegue com afinco a natureza do mundo, mas que deve prescindir do domínio das formas exteriores da existência; uma necessidade muito forte, autenticamente suábia, de independência – que chega aos extremos da obstinação – sobre a qual, no entanto, pesa o fardo da ordenação pedante e do atraso político-eclesiástico. Essas são as circunstâncias díspares em que transcorrem seus anos acadêmicos. A juventude afirma suavemente seus direitos. No álbum de seu amigo mais querido, Fink, escreveu versos sobre a amizade, sobre beijos ardentes, e mais tarde, no verso da folha: “Belo foi o último verão, mais belo o de agora! Seu lema era: vinho, deste amor. 7 de outubro de 91.” Mas, em outro álbum, vê-se desenhada por seu amigo Fallot a figura de Hegel com a cabeça baixa, um par de muletas e, ao pé, as palavras: “Deus socorra o pobre velho”; seus colegas o chamavam de “o velho”. Era desses homens que nunca foram jovens e em quem, mesmo na velhice, arde um fogo oculto.

2. Quão diferente dos anos em Stuttgart é a atmosfera espiritual que envolve Hegel como estudante de teologia em Tubinga! O estudioso dos gregos se vê rodeado por conceitos teológicos. É verdade que a educação pela razão, própria da época, penetra também na “fundação” e exerce influência sobre seus filósofos e teólogos, mas, nessa antiga sede da rigorosa fé luterana, busca-se um compromisso entre essa fé e os direitos da razão. Esse compromisso é representado pelo “sobrenaturalismo” de um Baumgarten e de um Tieftrunk, em Halle, e de um Storr e seus discípulos, em Tubinga. Sua base está na convicção acerca da personalidade do divino, da liberdade, do valor e da imortalidade da alma humana, tal como se encontra no fundo do cristianismo bíblico. Mas esses sobrenaturalistas se deparavam com a nova situação e precisavam reconhecer que a atuação da divindade está vinculada a leis eternas e firmes da ordem natural. Como poderiam agora fundamentar que, num recanto deste universo, se fizessem necessárias intervenções contrárias a essas leis? Como seria possível que, em Deus – cujo ser infinito e imutável se manifesta nas leis da natureza –, surgisse a obscura inquietação da vontade de condenar e, depois, sua transformação em ânimo salvador? Tudo estava contra: a investigação da natureza, a consciência moral mais avançada, a crítica das fontes. O que, nas Escrituras Sagradas, era expressão natural de uma concepção do mundo que não impunha limites à força divina e inundava a Terra com poderes sobrenaturais, agora precisava ser defendido por meio de conceitos científicos em plena era iluminista. Era necessário defender as profecias, as revelações, os milagres, a condenação e a redenção. Para salvar o essencial, sacrificava-se o que não era necessário na estrutura do dogma, e a velha crença da humanidade transformava-se em um sistema de conceitos esvaziados. Por isso, às juventudes sinceras daquela época, figuras como Nösselt, Knap, Storr e Tieftrunk tinham de parecer antiquadas e insossas.

Entre esses sobrenaturalistas, Storr é uma das mentes mais sutis, reconhecido chefe da faculdade de teologia. Provavelmente Hegel assistiu com ele aos cursos de teologia entre 1790 e 1793. Storr partia da veracidade de Jesus e da credibilidade de seus discípulos. Assim, para ele, resulta o reconhecimento do que o Novo Testamento transmite sobre a vida, a doutrina e a obra de Cristo, que interpreta em seguida no sentido do dogma luterano e apresenta como uma conexão conceitual bastante rigorosa.

Ainda hoje, Ritschl vê em seus métodos uma “prova apreciável dos métodos bíblico-teológicos”; na realidade, trata-se da seção artesanal do maior mistério sentimental da humanidade. A dogmática luterana repousa na ligação entre o Antigo Testamento e o Evangelho de Cristo por meio dos conceitos de condenação, sacrifício e redenção. Quando Storr analisa o decreto condenatório e a justificação pela paixão e morte de Cristo, e toda a sua obediência, em ásperos conceitos jurídicos, oriundos do campo da submissão política e do direito penal, ele não faz senão rebaixar e destruir o mistério do cristianismo – acolhido pelo sentimento – e, ao mesmo tempo, também rebaixar a razão, por meio desse uso abusivo. E esse método não foi melhorado pelo fato de Storr ter adotado, a serviço de sua apologética, o ponto de vista crítico de Kant. Ele o realizou numa obra que segue quase literalmente a filosofia da religião de Kant. Também Tieftrunk utilizou a filosofia crítica de maneira artificialmente antipática em defesa de sua doutrina da justificação.

Os jovens sentiam com desgosto a pressão que o sobrenaturalismo exercia sobre os estudos em Tubinga. Diante de todos esses sofistas, faziam valer as verdadeiras consequências kantianas: a soberania moral da pessoa. Mas Hegel se distingue de seus colegas porque, ao longo de vários anos, concentra toda a força de seu pensamento no tema da religiosidade cristã. O caminho desse espírito objetivo consiste em que ele vive e medita sobre o mundo helênico desde os primeiros anos escolares, e sobre o cristianismo durante o período universitário, como as duas maiores forças históricas do passado. Essa circunstância é o que o conduzirá à sua visão histórica do mundo. Nesse sentido, os anos passados na escola de Storr têm grande valor. Hegel assimilou os conceitos sutis nos quais, na doutrina paulino-luterana de Storr, se combinavam violentamente o sistema conceitual judaico da justa condenação e a redenção cristã. Só dessa forma pôde, mais tarde, alcançar uma consciência profunda tanto da religiosidade judaica quanto da cristã. Por meio de um trabalho contínuo, chegaria a captar o que havia de vivo nesses conceitos de um acontecimento supramundano em Deus. A lei, e a sanção por ela imposta, representam, por si, uma concepção religiosa da vida de tipo inferior.

Pois o castigo nem chega a expiar o crime diante da lei, nem leva à sua superação: provoca apenas o sentimento de impotência diante de um senhor. O perdão dos pecados pertence a uma esfera que está além da moral judaica: é o “destino reconciliado pelo amor”. Com essa profundidade, Hegel se confronta com a ortodoxia luterana de Tubinga durante seus estudos em Berna e Frankfurt. Por isso, a introdução nesse mundo áspero de conceitos teológicos, proporcionada por Storr, representa um momento importante em sua evolução rumo a uma nova consciência histórica. Já em Tubinga, Hegel dá os primeiros passos: rejeita a realidade ultramundana desse drama de condenação e redenção.

3. Nesse trabalho teológico solitário, entram novas ideias. Não procedem das salas de aula da universidade: os acontecimentos universais também penetram, de forma irrefreável, no silêncio conventual da fundação e despertam, nos discípulos mais dotados, um movimento interior que os une e provoca neles um entusiasmo comum pelo novo dia do espírito que desponta.

Três jovens, dotados de formas diferentes, mas com genialidade equivalente, encontram-se por volta de 1793 no claustro agostiniano. Hölderlin ingressa na fundação ao mesmo tempo que Hegel. Os primeiros amigos do jovem poeta também eram poetas, e não se sabe se ele teve contato com Hegel antes do outono de 1790. Foi então que se tornaram colegas de quarto e, pouco a pouco, surgiu entre eles uma amizade baseada no amor compartilhado pelos gregos e nas mesmas crenças filosóficas. Um destino feliz aproxima, assim, a nova poesia da vida pessoal de Hegel por meio de uma de suas figuras mais nobres. O primeiro sonho de amor e felicidade dessa grande alma pura havia fracassado, triunfara o desejo de desenvolver livremente suas forças, e, nessa época decisiva em que lutava com toda a energia pela expansão de seu espírito, os estudos filosóficos começam a exercer ascendência sobre ele.

Acompanhados de outros amigos, Hölderlin e Hegel leem Platão, Kant e as cartas de Jacobi sobre Spinoza, cuja segunda edição havia saído em 1789. Esse livro continha a confissão de Lessing sobre o “um e tudo”, a antiga fórmula grega da presença da divindade no universo; Hölderlin a transcreve, em fevereiro de 1791, no álbum de Hegel.

No outono de 1790, Schelling ingressa na escola. Ainda não havia completado 16 anos. Seu gênio residia em uma força combinatória extraordinariamente potente. Com facilidade, abrangia grandes massas de conhecimento e descobria nelas um ponto de união que operava de modo surpreendente e esclarecedor. Não era de sua natureza o exame analítico cuidadoso, a determinação conceitual rigorosa, as generalizações de valor duradouro, mas ele se impunha pelo poder de sua intuição genial. Desde cedo teve consciência de sua força. O gênio precoce do estudante de teologia dedicou-se aos estudos orientais sob a direção do semitista Schnurrer. Não foram, portanto, seus estudos, mas o interesse comum pela Revolução que o colocou em contato com os outros dois colegas. À medida que se voltava cada vez mais para a filosofia, surgiu entre ele e Hegel aquela amizade juvenil que representa, para ambos, uma parte de seu destino.

Hölderlin não conseguiu estabelecer com Schelling – orgulhoso e seguro de sua vitória – uma relação de amizade tão íntima quanto a de Hegel.

Justamente nesses anos, entre 1788 e 1793, ocorrem os dois grandes acontecimentos universais que levam a época do Iluminismo a seu cumprimento e, ao mesmo tempo, abrem as portas de uma nova era. Em Kant, verifica-se a transformação do pensamento alemão, e a Revolução destrói, na França, o antigo Estado e empreende a fundação de uma nova ordem social. Os jovens entregam-se com entusiasmo a essas duas potentes manifestações do século que se encerra. Abandonam seus mestres, com sua insípida mistura de uma fé moderadamente iluminada e uma submissão política ao governo arbitrário do duque.

O que mais chama a atenção deles em Kant é, sobretudo, a posição soberana da razão frente às manifestações sensíveis, à autoridade e à tradição. A doutrina da faculdade da razão de dar a si mesma a lei – essa ideia kantiana que encerra o processo do Iluminismo – foi o que os libertou do dogma, como demonstram as cartas trocadas pelos jovens quando Hegel partiu de Tubinga. Schelling escrevia, então, sobre as tentativas dos teólogos de Tubinga de “extrair de Kant um caldo substancioso para a valetudinária teologia”: “Nós dois queremos impedir que aquilo de grande que produziu nossa época tropece na levedura pútrida dos tempos antigos; temos que conservá-lo puro entre nós, tal como saiu de seu autor.” E Hegel, em sua resposta, refere-se às razões de política eclesiástica que explicariam essa corrupção da filosofia kantiana na universidade: “Não é possível abalar a ortodoxia enquanto sua profissão, ligada a proveitos materiais, estiver entrelaçada com todo o Estado.”

Não podemos verificar a profundidade com que Hegel compreendia então o sistema filosófico de Kant. Em Berna, ele retoma seus estudos e se desprende da primeira mistura de seus pensamentos com os do Iluminismo.

O outro grande acontecimento que arrebatou os jovens de Tubinga foi a Revolução. A inocência política dos alemães os tornava espectadores entusiásticos dessa terrível tragédia. Os estudantes fundaram um clube político, do qual também fizeram parte Schelling, Hegel e Hölderlin. Quando o duque soube dos discursos revolucionários, dos cânticos de liberdade e da entoação da Marselhesa por seus estudantes de teologia, apresentou-se rapidamente no refeitório e lhes dirigiu um discurso disciplinador. Parece que Schelling, quando lhe perguntaram se se arrependia do ocorrido, respondeu: “Excelência, todos pecamos muitas vezes.” Em seus hinos à liberdade, Hölderlin canta o grande dia da colheita, quando a liga dos heróis alcançará a vitória para os companheiros, os tronos dos tiranos estarão vazios e seus lacaios morderão o pó.

Chegou uma nova hora da criação: o novo século será o da liberdade.

E o próprio Hegel é lembrado por seus colegas daquela época como um dos mais entusiásticos paladinos da liberdade e da igualdade. A razão soberana e progressiva, que constitui a alma da filosofia kantiana, parecia estar atuando na Revolução e, enfim, alcançando sua soberania. Que acontecimento, que experiência íntima para uma mente destinada a compreender a história como o desenvolvimento do gênero humano rumo à liberdade! As esperanças de futuro ganham, em Hegel e seus amigos, sua concretização ideal na vida grega, tal como era venerada pela época. Sua transposição para o campo moral, através da retórica socrática, já não operava mais.

A natureza do mundo grego surge agora como “serena grandeza”, como “humanidade universal”. A “Grécia dos deuses” de Schiller exerce uma influência indescritível. Para Hölderlin e Hegel, Platão é o verdadeiro intérprete do passado helênico. A nostalgia por esse passado consome a alma de Hölderlin. Na intuição que tem dele, mistura-se a intimidade cristã, da mesma forma que na Ifigênia de Goethe. Ele havia sido influenciado pela teologia de Tubinga por mais tempo do que Hegel e Schelling; crê, com Jacobi, que o pensamento conduz inexoravelmente ao ateísmo de Spinoza, e apenas na vida prodigiosa de Cristo, historicamente testemunhada, encontra abrigo. Kant, Schiller e o convívio com seus amigos filósofos o emanciparam da influência dessa teologia apologética. Desde então, ele se mantém no valor puramente humano do cristianismo, no que este se aparenta ao helenismo. Em ambos, venera seu ideal pessoal: a beleza da existência própria e a elevação do gênero humano, a serenidade recolhida e o anseio por uma vida mais rica em perigos e heroísmos, por uma arte que transfigure o mundo em beleza e santifique a paixão, por uma comunidade livre pela qual valha a pena viver e morrer.

Uma ilusão muito difundida naquela época era a sua: acreditar que aquilo que esperava do futuro já havia se realizado uma vez na Grécia. A mesma visão do mundo grego forma-se também em seus amigos filósofos, mas Hegel, mais realista que Hölderlin, preserva a ideia iluminista segundo a qual a liberdade política dos Estados gregos foi o fundamento da humanidade superior que neles se desenvolveu.

4. Assim viviam os amigos, com a consciência do progresso do gênero humano, e todo o enriquecimento trazido pelo criticismo filosófico e pela Revolução Francesa deságua agora no trabalho teológico de Hegel. Para ele, a fé moral kantiana na razão representa, de modo definitivo, o fundamento científico da moral e da religião. Seu espírito prático coloca a seguinte questão: como é possível transformar a religiosidade cristã vigente em uma “religião popular” que encarne uma cultura moral e religiosa progressiva? Conservou-se toda uma série de fragmentos que tentam resolver essa questão – em parte manuscritos, em parte transmitidos por Rosenkranz. Alguns desses fragmentos pertencem sem dúvida a essa época; outros são mais tardios. Como as correções que apresentam indicam que Hegel pretendia utilizá-los como material para uma exposição mais madura, trataremos deles com mais detalhe quando for o momento.

Assinalemos apenas o nexo das ideias que ele já delineava em Tubinga. Ele vê uma mediação possível entre a fé eclesiástica e a religião da razão em uma religião popular que alie as convicções religiosas do povo a todos os impulsos vigorosos da ação voltada ao enobrecimento do espírito. A oposição rígida entre a fé da Igreja e a fé da razão, tal como era apresentada pelo Iluminismo, ficava superada nesse conceito histórico-político. No caminho percorrido pela humanidade desde a crença em fetiches até a religião moral da razão, essa religião popular representa a etapa final que prepara a fé racional, já que as massas só muito lentamente – ou talvez nunca – poderão se elevar até os sublimes princípios morais de Kant. Nessa concepção, manifesta-se o pensamento historicista do jovem filósofo, orientado pela ideia de continuidade.

O centro de tal religião popular, para ele, é o amor.

Pois se essa religião popular pretende mobilizar as boas inclinações dos homens, seu sentimento moral, como forças éticas operantes de forma geral, essas forças encontram seu centro no amor, que é o princípio fundamental do caráter empírico.

Hegel destaca com profundidade como o amor tem algo de análogo à razão e constitui a passagem desta para um princípio moral. Assim como a razão, “enquanto princípio de leis universalmente válidas, se reconhece em todo ser racional”, o amor também vive nos outros, age neles, encontra-se neles. De modo semelhante, Schiller, em sua Rapsódia, havia colocado o amor no centro do mundo moral, sendo seguido nisso por Hölderlin. E também Lessing reconhecera no amor o princípio da religião de Cristo.

Mas, se queremos que o amor produza uma moral que permeie o povo, devemos recorrer à educação, ao exemplo e às instituições de governo – e assim ele deverá tornar-se a alma do Estado. Hegel manteve sempre esse conceito da religião como alma do Estado.

Ela deve ser a força realizadora da moral no conjunto político e restaurar, por vias modernas, a ética civil dos gregos. Por isso, essa religião popular preencherá a imaginação com grandes imagens puras e se verá satisfeita dessa forma; os sentimentos sublimes expulsarão dos corações aqueles afetos de falsa humildade pelos quais a moral eclesiástica exerce seu efeito corruptor. A religião popular insuflará à alma o entusiasmo indispensável à virtude grande e sublime.

Nessa conexão, já se apresenta nele a visão do todo histórico que vai da religião de Cristo, passando pela Igreja corrompida, que abrange tanto a fé protestante quanto a católica, até o novo evangelho que se aproxima. O ideal sublime pregado por Cristo era capaz de formar alguns homens, mas não podia ser suficiente para sua realização em uma comunidade; em seu lugar surge a falsa humildade, a fé fetichista que busca satisfazer a Deus por meio das obras exteriores, os espantalhos da Igreja, suas medidas violentas no interior e no exterior. Somente quando a religião privada de Cristo se transformar em uma religião popular, poderá encarnar uma moral saudável.

Esta época do desenvolvimento de Hegel vai até sua última residência em Berna, até os primeiros meses de 1795, quando começa a mergulhar novamente em Kant, sob o ponto de vista de Fichte e das duas primeiras obras de Schelling. É natural que as épocas do desenvolvimento interior dos filósofos não coincidam com as mudanças ocasionais de suas residências. O leitor deve ter isso em mente ao longo deste relato. Pois, se passarmos constantemente do desenvolvimento interior para o exterior, isso não significa que os períodos de ambos coincidam completamente.

Preceptor em Berna

Professor particular! Esta era a miséria necessária dos futuros eclesiásticos e mestres. O poeta Lenz descreveu de forma plástica os perigos e dores dessa alta servidão; a alma delicada de Hölderlin foi perturbada por essa prova. A jovem geração da época sentia isso com mais pesar justamente porque recebeu as impressões da Revolução. Hegel trabalhou como professor doméstico durante sete anos, três em Berna e quatro em Frankfurt, até que a morte de seu pai lhe trouxe a liberdade na forma de uma pequena herança. Não conheceu, ao contrário de Schleiermacher e Herbart, o aspecto agradável e educativo que poderia ser dado nessas circunstâncias.

No outono de 1793, terminou sua época de estudante e passou no exame para se tornar candidato à teologia. Aceitou uma posição na família Steiger, que pertencente à aristocracia de Berna. Com um espírito equilibrado e, ao que parece, sem qualquer envolvimento afetivo com a vida da antiga e orgulhosa família que utilizava seus serviços, estudou nesse ambiente o lado hipócrita da oligarquia declinante de Berna. Eram os últimos anos antes da queda dessas linhagens nobres, que também sucumbiram às ideias revolucionárias. Seu interesse ia desde as intrigas eleitorais e nepotismos dessa oligarquia até o regime fiscal do cantão. Redigiu então uma exposição detalhada do regime fiscal de Berna e escreveu um trabalho sobre as mudanças no sistema militar na transição da forma monárquica para a forma republicana, e entre suas leituras estavam Tucídides, as grandes cabeças políticas da Ilustração, Montesquieu, Hume e Gibbon, e as obras históricas de Schiller.

Relação com o movimento filosófico

Seu trabalho mais intenso prossegue na direção dos estudos teológicos de seus anos em Tubinga. O grande tema que não o abandona é a vida e a doutrina de Jesus e a transformação de sua religião em um dogma positivo.

A obra de Kant sobre a religião, de 1793, nos oferece a expressão mais cabal e madura da compreensão do cristianismo pela Ilustração. Em 1794, Hegel se dedica novamente a Kant. Ainda não conhece Reinhold e os “novos esforços para penetrar no fundo profundo”. Seu olhar se dirige exclusivamente à aplicação da nova filosofia ao mundo moral. Sente curiosidade apenas pelo trabalho de seu amigo Schelling sobre a “possibilidade de uma forma da filosofia”, e ficou bastante impressionado com sua leitura, como nos prova uma carta de 16 de abril de 1795. Desde esse momento, se inicia nele uma revolução filosófica. Recentemente, havia lido as cartas de Schiller “sobre a educação estética” e as admirava como uma obra-prima. Mantinha correspondência com Hölderlin, e o entusiasmo deste pelos grandes planos de Fichte lhe foi transmitido. Estava, portanto, preparado para acolher a nova orientação da filosofia devida a Fichte, filosofia que conheceu agora pelo trabalho de seu amigo.

O trabalho de Schelling sobre a “possibilidade de uma forma da filosofia” apoia-se diretamente no outro trabalho de Fichte sobre o conceito da teoria da ciência, de 1794; este apareceu no mesmo ano. Partindo da conexão do conhecimento humano, reivindica que a ciência esteja sob a forma da unidade; nesse caso, seu princípio será a condição tanto de seu conteúdo quanto de sua forma e ele mesmo, absolutamente, segundo o conteúdo e segundo a forma; e a partir desse ponto, desenvolve a pequena obra, a doutrina de Fichte sobre o eu, que se “coloca” a si mesmo, o não-eu e a mediação entre os dois.

Em uma carta a Hegel, de 4 de fevereiro de 1795, Schelling lhe explica o núcleo metafísico do tratado e o incentiva a realizar seu plano de fixar os limites das consequências que a lei moral pode tirar sobre a ordem do mundo suprassensível. Ele mesmo havia pensado uma vez, para zombar de Storr e seus seguidores, em derivar por esse método toda a dogmática católica medieval. E, diante da pergunta de Hegel se não acreditava que a prova moral bastava para fundamentar um ser individual, pessoal, ele responde lembrando ao “leitor familiarizado com Lessing” uma famosa sentença deste que se encontra em Jacobi: “Já não nos servem os conceitos ortodoxos sobre Deus. Vamos além do ser pessoal”. Expõe o espinocismo que ele deriva do eu absoluto de Fichte, e Hegel, em sua resposta a Schelling de 16 de abril de 1795, encontra esclarecidas, por meio desse repúdio ao método de Kant para fundar um mundo suprassensível, todas as suas presunções.

Todas essas sugestões acendem nele a consciência da soberania do espírito. “Dissipa-se o halo em torno das cabeças dos opressores e deuses da terra.” A filosofia do eu absoluto, como desenvolvimento último do sistema kantiano, tal como tentam obtê-la Fichte e Schelling, vai provocar na Alemanha uma revolução espiritual. Os princípios estão presentes, e é necessário apenas elaborá-los de maneira geral e aplicá-los ao saber atual. O descenso da força peculiar do homem para o nível do bom lhe pareceu a Hegel a doutrina comum da religião e da política, que jogavam sob o mesmo manto. Rousseau, Schiller e Fichte lhe inspiram a vontade de trabalhar por uma nova ordem da sociedade que se baseie na consciência da dignidade, da bondade e da força criadora da humanidade.

Assim, ele se encontra fortalecido com as novas opiniões no caminho iniciado em Tubinga e continua também os trabalhos de então para se livrar do jugo da religião positiva. A transformação de sua concepção filosófica do mundo fica em segundo plano, desconhecida para ele mesmo em seus contornos e alcance. Também nesses dias em Berna domina o sentimento de libertação religiosa da humanidade por meio do conhecimento da religiosidade cristã e de sua história. Diante dos episódios da vida de Hippel, a quem queria, e que parecem expressar poeticamente as ideias e sentimentos de Kant, exclama: “Caminha em direção ao sol, amigo, para que a saúde da humanidade amadureça logo”.

II. Três obras sobre a religião cristã

1. A vida de Jesus

Sua primeira obra, uma vida de Jesus, deveria estar a serviço desse empenho prático voltado no sentido da ilustração religiosa. O rascunho foi escrito entre 9 de maio e 24 de julho de 1795. Nasce, portanto, quando o sistema de Kant começa a adotar em seu espírito uma nova forma. A fermentação na cabeça do jovem estudante estava alimentada por influências de diversas origens. Os clássicos, a obra da Ilustração, Lessing, a Rapsódia de Schiller, finalmente Kant, convergiam nesse momento nele. Mas, assim como a filosofia transcendental operava nele na nova forma que lhe deram Fichte e Schelling em 1795, também a ideia de um sistema racional de validade universal deveria excluir todas as determinações empíricas, como o amor e a simpatia, na moral. E, ao se debruçar sobre a obra de expor a religião de Cristo como a fé moral da razão, teve que se ater ao teísmo kantiano em uma obra que deveria atuar entre os cultos em favor daquela ideia, apesar de já vacilar dentro de si mesmo, pois, nessa época, escreveu a Schelling que considerava a ideia de Deus como o eu absoluto, tal como seu amigo lhe expusera, uma propriedade exclusiva de uma filosofia esotérica. Ambas as questões devem ser levadas em conta se se quiser compreender a posição original das manifestações de Hegel nessa época em relação às suas ideias de Tubinga, por um lado, e ao conteúdo de suas cartas a Schelling, por outro.

1. A tarefa que Hegel se propõe em sua Vida de Jesus já lhe é indicada por Kant. Na obra de Kant sobre a filosofia da religião, encontra-se uma seção: “A fé eclesiástica tem como seu intérprete máximo a pura fé religiosa.” Ele recomenda uma interpretação dos Livros Sagrados no sentido de uma religião pura da razão, apelando para a transformação estoica da fé nos deuses e para a que Filon realiza com o Antigo Testamento, justificando seu método dizendo que a finalidade de se ocupar desses livros consiste em “fazer homens melhores”. “Como o aprimoramento moral dos homens constitui o fim próprio de toda religião racional, este será também o princípio supremo de toda interpretação das Escrituras.” Nessas frases de Kant, encontramos as diretrizes para a exposição de Hegel. A Vida de Jesus tem um fim prático e serve à realização de sua religião popular. A doutrina de Cristo é transformada na fé moral de Kant, e o exemplo de Cristo deve comunicar calor e força a essa fé racional.

O relato começa com a ação de João Batista. Em seguida, passa para Jesus. Ele contribuiu mais do que João para o aprimoramento das máximas corrompidas dos homens e para o conhecimento da verdadeira moralidade e da depurada adoração a Deus. Seus pais são Maria e José; nesse ponto, o autor nos apresenta a camada mais profunda da tradição e não toca em descrições posteriores. Também desconsidera as lendas que cercam o nascimento de Jesus. O batismo de Cristo no Jordão se torna um testemunho de suas grandes disposições. O mais estranho de todo o relato é a breve notícia sobre as tentações; ressoam nelas as vozes do Fausto goethiano. “No meio de sua meditação, em sua solidão, surge a ideia de que talvez valha a pena tentar chegar o mais longe possível por meio do estudo da natureza e talvez da união com espíritos superiores, para transformar matérias comuns em matérias preciosas, úteis para o homem, ou tornar-se independente da natureza.” Assim Hegel interpreta as incitações de Satanás. Mas Jesus prefere permanecer dentro dos limites do poder do homem sobre a natureza. Outra vez lhe passa pela imaginação o que os homens consideram grande, dominar sobre milhões, fazer com que o mundo se ocupe deles, mas também rejeitou essa tentação para seguir com pureza de coração a lei eterna da moral. Seguem-se os ensinamentos de Jesus. A luta entre a fé eclesiástica, o culto cerimonial dos fariseus e a religião racional de Cristo, eis o conflito trágico dessa vida, um conflito humano, ainda não resolvido nos tempos de Hegel e que ele também abordava. “Se vós considerais os estatutos eclesiásticos e os mandamentos positivos como a lei suprema que foi dada ao homem, então desconheceis a dignidade do homem e sua capacidade de tirar de si mesmo o conceito da divindade e o conhecimento de sua vontade.” Com essa fórmula kantiana, Hegel expressa o ensino de Cristo. Na parábola do homem rico, faz com que Abraão diga: “Ao homem foi dada a lei, sua razão; nem do céu nem da terra pode vir-lhe outro ensinamento.” E define o Espírito Santo como a “moral desenvolvida” dos discípulos de Cristo. Neles se encontrará, após sua partida, seus apóstolos. Os milagres são simplesmente suprimidos. Assim, para Hegel, a última visita a Jerusalém e a morte de Jesus representam o ato final de um drama que se desenvolve entre a fé eclesiástica estabelecida e a religião da razão. Comparável à tragédia Antígona com seu conflito entre os direitos eternos da natureza, que Antígona encarna, e as leis positivas. Ele também pensa sobre a morte de Cristo na morte de Sócrates no Fédon. A exposição termina com a morte de Jesus e seu sepultamento.

2. Esta Vida de Jesus de Hegel é afim, por seu ponto de vista singular, à Vida de Jesus do teólogo Paulus, que apareceu em 1828 como um resultado dos estudos críticos iniciados no século XIX. Só que Paulus associou essa interpretação pela fé moral à de uma fé erudita, procedimento que Kant recomendou em outro lugar, juntamente com a simples interpretação moral. Hegel, em poucos anos, haveria de percorrer, em seu desenvolvimento solitário, o caminho trilhado pela teologia, desde a interpretação moral do racionalista Paulus até a explicação mítica de Strauss.

O contraste entre o solitário do Mar da Galileia, que ouve vozes interiores e experimenta, na pureza de seu coração, a força da visão divina, e a submissão farisaica à legislação divina, como uma autoridade exterior e histórica, representa, sem dúvida, um aspecto importante na atitude vital de Jesus. O discípulo da crítica religiosa kantiana destacou com justeza esse antagonismo que as fontes assinalam, mas não levou em conta os outros pontos em que Jesus se opôs à religiosidade judaica da época. Durante sua estadia em Tubinga, Hegel reconheceu a importância do amor no desenvolvimento moral, embora já nesses primeiros esboços se encontre submetido ao imperativo categórico do dever. Mas na Vida de Jesus, isso se expressa de forma muito mais áspera, no sentido kantiano, acima de qualquer motivação patética da moral. “Se amais os que vos amam, que mérito tem isso? Este é o sentimento natural, que até os maus não desconhecem. Mas nada fizestes ainda no sentido do dever.” Como se explica esse desenvolvimento mais rigoroso do caráter racional da moralidade? Provavelmente, deve-se à influência exercida sobre Hegel pelo desenvolvimento da jovem escola kantiana em Fichte e pelos primeiros escritos de Schelling. Aqui se deu uma elaboração consequente da doutrina de Kant sobre a conexão a priori no espírito humano.

Sob sua influência, sempre se destaca a faculdade autônoma da razão humana para se dar a si mesma sua lei; por isso, a moral é para ele, no sentido mais próprio de Kant, supraempírica, fundada no ser universal da razão; e agora coloca esse ponto de vista e sua profunda e amarga oposição pessoal contra a religião estatutária, contra seus dogmas e ritos, na época do cristianismo primitivo. Ele entende assim por sua própria atitude vital, por essa grande luta entre a autoridade exterior e a autonomia, em meio à qual se encontra. De maneira resoluta e definitiva, como seu caráter lhe indica, ele evitou nos Evangelhos tudo o que anuncia o amor como o princípio verdadeiro da moralidade interna de Jesus. Em nenhuma parte desta Vida de Jesus ressoa o pleno acorde do amor que ouvimos no Testamento de João, de Lessing, ou na Rapsódia, de Schiller. Quando Jesus pede uma vez a Deus que o amor pelo bem una os discípulos entre si, com Deus e com ele, quando sente o espírito de amor como a força que opera nele e nos discípulos, Hegel simplesmente ignora. Este é o primeiro caso em que Hegel aplica seu segredo para compreender mais profundamente o passado, partindo do que ainda o rodeia como vida histórica presente. Esse procedimento constituirá uma parte importante de seu método histórico. E, neste primeiro caso, ele se serve do modelo da profunda interpretação que Kant fez do cristianismo em sua obra sobre a religião. Aqui, também, o desenvolvimento do novo método histórico tem suas raízes no Iluminismo e em seu filho mais ilustre.

2. O esboço sobre a relação entre a religião da razão e a religião positiva

1. Esta exposição da vida e da doutrina de Jesus é mais bem compreendida se for colocada em relação a outro manuscrito sobre a relação da religião da razão com a religião positiva. Em sua maior parte, foi escrito antes de 2 de novembro de 1795; o restante é datado de 29 de abril de 1796. Portanto, este escrito está muito próximo no tempo da Vida de Jesus. Nesse ensaio, ele mostrava a razão prática como a religião de Jesus, e agora Hegel levanta a questão: o que poderia ter motivado, na doutrina e na vida de Jesus, que sua religião se transformasse em uma fé positiva? Uma religião moral da razão é composta por verdades eternas. Agora, qual elemento dela tornou possível sua transformação em uma religião histórica, portanto, autoritária? Estamos na esfera de influência de Lessing e Kant. Lessing distingue entre a religião eterna e a histórica. A religião natural abrange as determinações universais das coisas divinas e da vida humana perfeita; mas assim como do direito natural surgiu um direito positivo, também da religião racional deveria surgir uma religião positiva que encontra sua consagração no prestígio de seu fundador. O princípio fundamental de Lessing diz: as verdades eternas não podem ser testemunhadas pelas tradições históricas. Esta também é a ideia de Kant, só que ele funda a fé nas coisas divinas sobre nossa lei moral. A fé religiosa pura reconhece a vontade divina na lei moral que fala em nós, mas da imperfeição da natureza humana nasce a crença em estatutos particulares da vida religiosa corroborados com autoridade exterior pela revelação e pelos milagres. E também Kant resolve, como Lessing, que a fé religiosa pura não pode ser fundada nas tradições históricas indemonstráveis. O sentimento de Hegel está de acordo com essa grande tradição.

“As verdades eternas, se devem ser necessárias e universalmente válidas, têm que se fundar por sua natureza unicamente na essência da razão e não nas manifestações do mundo sensível exterior, que são acidentais para ela.” A esta convicção ele permaneceu fiel, no fundo, ao longo de sua vida.

“A verdadeira fé não tem um conteúdo finito, contingente.” “O espiritual não pode ser legitimado exteriormente.” Isso está em concordância com essas manifestações posteriores, o fato de que ele jamais reconheceu aos milagres valor que corroborava as eternas verdades religiosas. “É totalmente indiferente que nas bodas de Caná os convidados tenham recebido mais ou menos vinho, e também é absolutamente acidental se alguém curou sua mão seca; porque há milhões de homens aleijados que vivem sem que ninguém os cure.” “A confirmação pelos milagres é uma esfera que não nos diz respeito.” E se em seu escrito juvenil a revelação não é para ele uma comunicação de fora ou de cima, mas o discurso da razão na lei moral, em suas lições berlinesas ele ainda nos dirá que o discurso de Deus na revelação não ocorre como algo sobre-humano, que se produziria de forma de uma revelação exterior, mas sim que se dá em um homem, como algo humano.

O que Lessing e Kant derrubaram não foi restaurado por Hegel.

Assim, a questão sobre o nascimento da religião positiva se torna, para ele, o problema histórico de saber onde na religião de Jesus se encontrava o embrião que explicaria sua transformação em um sistema positivo, eclesiástico, autoritário.

2. Em uma introdução, Hegel se recusa a preceder a resposta a esta pergunta de qualquer profissão de fé e não exige mais pressuposto do que aquele que afirma que o fim e a essência da verdadeira religião residem na moral e que todas as outras determinações contidas nela devem ser avaliadas por essa finalidade. Começa com uma caracterização do judaísmo declinante como base para compreender a ação de Cristo, que tentou “elevar a religião e a virtude ao plano da moralidade”. Mais uma vez, Hegel nos apresenta a vida de Jesus com traços sóbrios. No entanto, na pessoa e na doutrina de Jesus, deve-se esconder o embrião que explique o nascimento, primeiro, de uma seita e, depois, de uma fé positiva.

Portanto, será necessário aprofundar-se na forma original da religião de Jesus e no espírito da época para encontrar a base que se busca. O embrião da fé cristã positiva encontra-se na mesma religião de Jesus.

A fundação da fé sobre a consciência moral não foi levada a cabo por ele de forma consequente. “Era um judeu: o princípio de sua fé e de seu evangelho era a vontade revelada de Deus, tal como lhe havia sido transmitida pelas tradições dos judeus, mas ao mesmo tempo carregava o sentimento vivo de seu próprio coração sobre o dever e o bem. No cumprimento dessa lei moral encontra a principal condição para agradar a Deus.” Esta semente de corrupção da religião de Jesus foi preparada pelo espírito do povo judeu; os judeus acreditavam que haviam recebido de Deus suas leis tanto políticas quanto religiosas e estavam orgulhosos disso; se Jesus queria agir sobre eles, tinha também que apelar a uma confirmação divina. Por isso, todo o Novo Testamento está permeado pela afirmação de que a doutrina de Jesus é a vontade de Deus, a vontade de seu Pai, e que segue a Jesus quem crê no Pai. Neste ponto, Hegel não decide se Jesus teve consciência de sua união com Deus ou se considerou a lei moral em seu peito como a revelação imediata da divindade. Em todo caso, sua concepção se encontra dentro da hipótese racionalista da influência do meio em Jesus e de sua adaptação ao mesmo.

A ideia do Messias favoreceu a fé na pessoa. Jesus encontrou audiência porque foi considerado o Messias. Não contradisse diretamente uma suposição que tanto favoreceu sua aceitação pelos judeus, apenas tentou redirecionar as expectativas de seus discípulos no Messias para o aspecto moral e colocar a época de sua vinda além de sua morte.

À fé no Messias, soma-se o outro fator da peculiaridade da personalidade de Jesus. Sua paixão e morte ficaram profundamente gravadas na imaginação de seus discípulos; sua vida foi tão importante para eles quanto sua doutrina; ele próprio, para se defender, viu-se obrigado a falar sobre sua pessoa.

E os milagres que lhe foram atribuídos também atuaram no mesmo sentido de exaltação da pessoa de Jesus. “Seja qual for a posição adotada, deve-se reconhecer que esses feitos de Jesus foram milagres para seus discípulos e amigos.” “O caminho desde a história dos milagres até a fé em uma pessoa, e desta, se as coisas vão bem, até a moralidade” foi “a estrada imposta pelos símbolos”. Como se verdades eternas pudessem ser demonstradas eventualmente por manifestações contingentes.

Outro motivo que levou da religião de Jesus à fé positiva, à autoridade, ao culto eclesiástico e às cerimônias, encontramos na disposição de seus discípulos.

Homens de horizontes limitados encontram em Jesus uma ampliação de sua visão, mas não foram capazes de superar todas as ideias e preconceitos judeus. Não haviam conquistado por si mesmos a verdade e a liberdade; sua convicção baseava-se na adesão à pessoa de Jesus, e suas capacidades, assim como seus desejos, estão limitados a uma tradição fiel. Hegel tem constantemente em mente o paralelo entre Sócrates e Jesus, e assim também compara os discípulos de Sócrates com os de Jesus. Nos primeiros, Atenas desenvolveu a liberdade, e a educação cidadã, o espírito de independência; amavam seu mestre em razão da verdade, e não a verdade em razão de seu apego a Sócrates. A atitude completamente oposta dos discípulos de Jesus dá origem à tradição externa e, com ela, à posição excepcional dos discípulos e de seus sucessores. Assim, com a morte de Jesus, constitui-se uma seita com doutrinas e costumes especiais, e à medida que se expande, vai se tornando um Estado. São notáveis duas observações de Hegel. A propósito do número doze dos Apóstolos, como algo positivo, ele diz: “em uma religião da virtude, os números nada têm a dizer”. E rejeita de tal forma a tradicional vinculação dos discípulos à fé e ao batismo após a ressurreição que se pode duvidar se ele considerou como histórico esse importante episódio.

A marcha para a religião positiva foi promovida pela expansão da comunidade. A comunidade de bens foi possível em uma pequena seita, enquanto depois surgiram as contribuições aos sacerdotes e aos mosteiros; “a igualdade dos irmãos diante de Deus foi considerada como uma igualdade no céu, para o céu, e sensatamente se acrescenta hoje que é assim diante dos olhos do céu, e já na vida terrena não se toma mais conta disso”. Da última ceia, celebração de amigos, fez-se um dever religioso e uma ação misteriosa. Surgiu o desejo de expansão, o proselitismo e a intolerância, porque a religião positiva não pode fundar seus princípios, como a virtude, na necessidade interna. E como não pode sufocar o sentimento de impotência e de imposição, surgem o ódio e a inveja das seitas. Esse quadro da religião positiva eclesiástica faz Hegel recordar a conversa do frade com Nathan, e exclama entusiasmado: “Benditos sois, porque a pureza do coração foi o essencial da fé!” Mas o desenvolvimento continua e a comunidade de fé se transforma em uma sociedade organizada, em um Estado contratual. Assim, surge o contrassenso de que o indivíduo se submete à vontade geral, não quando se trata da pessoa e da propriedade, mas da fé. E quando, finalmente, da constituição livre surge uma oligarquia sacerdotal, liquida-se o último vestígio de vontade e opinião próprias, e com o dever de obediência compromete-se a considerar como verdadeiro o que o regente manda. A Igreja se torna o Estado e cria um direito eclesiástico. O próprio Estado renuncia a um direito após o outro, especialmente ao da educação. Assim, “faz traição aos direitos dos filhos ao livre desenvolvimento de suas faculdades”. A razão é sufocada e a fantasia se enche de imagens assustadoras. Destrói-se a liberdade do desenvolvimento das almas infantis; “porque só na juventude é possível imprimir a fé nos âmbitos da alma, inundando os canais dos conceitos e capacidades do homem, do esforço e da vontade humanos”. Por isso, o patriarca em Nathan se indigna tanto quando descobre que Recha recebe uma educação irreligiosa.

Em uma Igreja semelhante, a moral tem que degenerar porque a religião não se funda sobre fatos do nosso espírito que possam se desenvolver em nossa consciência. Começa-se com um conhecimento histórico e constrói-se sobre ele um sistema de princípios e sentimentos cujo critério é ser grato a Deus. Quem não é educado nesse sistema “se encontra aqui em um mundo encantado”; não está em igualdade alguma com esses cristãos e, antes, encontrará a natureza nos contos de fadas do Oriente e em nossos livros de cavalaria, e uma física e uma psicologia baseadas neles estariam mais próximas da natureza do que uma moral extraída desses cristãos degenerados. Nesse ponto, Hegel destaca que essa moral antinatural do ascetismo e da própria fraude está sendo destruída em seu tempo pelo desenvolvimento do sentido moral e do conhecimento da natureza da alma, tal como propagado, entre outros, pelas novelas de Marivaux. “O poder insubornável do eu”, que sente sua liberdade, manifesta-se nas seitas; mas também nelas, a convicção logo se transforma em lei e formalismo; logo se tornam igrejas; novas seitas nascem nelas “e assim continuará enquanto o Estado não reconhecer a extensão de seus direitos”; porque na fé positiva e no sistema de uma Igreja sempre haverá a falha fundamental de desconhecer o direito da razão e converter o desprezo pelo homem na base de uma fé autoritária. E daqui nasce constantemente uma moral eclesiástica que sobrecarrega o homem como uma lei exterior.

Mas é violar o direito da razão que o homem se submeta a uma lei estranha. “Todo o poder da Igreja é contra o direito; nenhum homem pode renunciar ao direito de se dar a si mesmo sua lei, de exigir contas de si mesmo, porque com essa alienação ele deixa de ser homem.” Passarão séculos até que o espírito europeu reconheça isso. A alienação do homem a um poder estranho nasceu de uma fantasia febril, selvagem, dos tempos bárbaros ou das últimas classes do povo[1].

3. A religião do povo

Três foram os problemas que Hegel viu comprometidos em Tubinga e que tratará um após o outro a partir de seu novo ponto de vista: vida e doutrina de Jesus, como representação da luta entre a fé moral e a legalidade judaica; falso desenvolvimento dessa fé no sentido da religião positiva, do poder eclesiástico e do culto cerimonial; finalmente, com base no conhecimento filosófico, da fé moral, a tarefa de criar uma religião do povo com os meios do cristianismo. Esse último e mais difícil de seus problemas é o tema de algumas anotações que, pelo menos em parte, oferecem uma conexão visível; e as indicações do caderno nos fazem entender que deveriam ser acrescentadas ao escrito sobre a religião positiva. E aqui também encontrariam seu lugar trabalhos de anos anteriores. Hegel não completou seu plano, mas os fragmentos nos indicam o quão vasto ele era. Como veremos, ele tentou preparar sua doutrina sobre a religião popular por meio de uma exposição do processo em que desmoronou o mundo imaginativo da autêntica religião popular.

Uma mudança quase imperceptível no tom de sua voz diferencia essas folhas das anteriores. Hegel continua firme no terreno de Kant e de sua fé moral.

Mas a obra de Kant sobre religião não representa apenas a culminação do racionalismo de Lessing e Semler, pois também oferece um aspecto voltado para o futuro. A conexão dos dogmas do cristianismo é concebida como a representação visível do processo interior em que nossa natureza sensível luta com nossa faculdade moral. Aqui nos é apresentada a relação da fé positiva com a racional, mas, ao mesmo tempo, a conexão interna que existe entre a vida religiosa e sua projeção mítica por meio da fantasia.

Pouco a pouco, Hegel começa a ver com crescente clareza essa relação interna. Quando a tiver compreendido em toda a sua significação, ele terá que repensar o que escreveu sobre a relação da religião racional com a positividade. Ele está no início desse caminho. E neste momento se nota a influência de Herder. Ele o cita, ressoam nele quase até suas palavras, como antes as de Lessing.

1. Que belamente descreve Hegel, no estilo de Herder, o espírito infantil dos povos e as formas de religiosidade nessa etapa! Mais tempo do que o regime político patriarcal durou a etapa religiosa que lhe corresponde.

“Na religião, esse sentido infantil vê Deus como um senhor poderoso, com suas paixões, com seus caprichos, nem sempre em bons termos com a justiça, e a quem se pode amolecer com elogios.” A fantasia o faz sentir mais próximo aqui ou ali; encontra-se nos homens bons, veneráveis, assim como nas manifestações poderosas da natureza. Esse sentido infantil originou as instituições e práticas religiosas. É possível que a razão as considere risíveis ou desprezíveis, mas para a fantasia que habita esse sentido, pareciam sublimes e comoventes. Hegel descreve depois como o “espírito que originalmente habitava nessas instituições” – uma expressão de Herder – se desvanece; como se separam os estamentos, como a comunidade que se apresentava unânime diante dos altares de seus deuses se transforma em uma multidão de onde seus líderes extraem sentimentos sagrados. Com um profundo sentimento histórico, compreende neste ponto a rara mistura entre o engano sacerdotal e a necessidade de dar satisfação aos sentidos e à fantasia, mesmo na etapa da razão progressiva, e de alegrar o dever por meio da beleza. E seu princípio cardinal é que a religião popular se mantém viva enquanto as imagens nascidas das profundezas da fantasia popular mantiverem sua relação com o ânimo; em vez de “vazar a cada sete dias nos ouvidos frases e metáforas que há alguns milhares de anos eram compreensíveis e pertinentes na Síria.”

Em outras anotações, descreve-se com mais detalhes a destruição da fantasia religiosa produzida nos povos modernos pela importação do mundo de imagens do cristianismo, mundo oriental e estranho, e pela expulsão de nossos heróis e deuses autóctones. Nunca os alemães foram uma nação; nem mesmo o acontecimento da Reforma, ainda vivo no povo, produziu qualquer festa religiosa de força popular. Os alemães não têm nenhum fundador do Estado nacional que pudesse ser celebrado com festas públicas. Nenhum mundo religioso ou político da fantasia cresceu em solo alemão. “O cristianismo despovoou o Walhalla, extirpou a fantasia do povo como superstição e trouxe uma fé cujo clima, cultura e legislação nos são estranhos e cuja história nenhuma relação tem conosco.” Somente entre o povo mais simples, um resto de fantasia autêntica ainda se disfarça de superstição. Os escritores e artistas alemães trabalham com matérias que são estranhas ao povo, enquanto na Inglaterra Shakespeare ao menos colocou diante de seu povo as figuras de seu passado. O material cristão nos é desconfortável pelo corte catequético e pela rigidez que lhe é inerente. Hegel segue as pegadas de Herder. E, em sintonia com o espírito dos fragmentos de Herder, nos mostra como a renovação da mitologia e da epopeia dos gregos e germânicos não poderia ganhar consistência alguma.

Entre as influências que prejudicaram a fantasia germânica, destaca-se, com mais acrimônia do que Herder, a do Antigo Testamento e da história judaica. Poderiam ser trocadas as palavras de Klopstock e dizer: “Será que Judá é a pátria dos teutões?” Essa história judaica nunca pode ser uma atualidade viva para nossa fantasia religiosa; não se adere, como a religião grega, a lugares visíveis, sagrados; “o que em nossos Livros Sagrados é história é tão estranho aos nossos costumes, à nossa complexão, à nossa cultura, às nossas forças corporais e psíquicas, que mal existe um ponto onde coincidamos, fora de alguns extremos de mera natureza humana em geral.”

Lo moral tenemos que mecharlo nosotros. La edificación que con ella se enlaza reclama sobre todo un celo mal entendido por la gloria de Dios, un engreimiento piadoso y unas ansias de dormir en la entrega a Dios.

En esta conexión plantea la cuestión: ¿Cómo se explica esa “sorprendente revolución” en la que el cristianismo consiguió la victoria sobre la religión de los pueblos antiguos? Este problema no había sido resuelto por la historiografía racionalista y aquí brota una de las fuentes vivas de la intuición histórica de Hegel, que luego concurren en la ancha corriente de su fenomenología y de su filosofía del espíritu. La madura belleza de este fragmento nos haría sospechar, a pesar de la paginación del manuscrito, en una fecha posterior si no fuera porque su tono y estilo, lo mismo que otros apuntes que forman parte de este fragmento y que pertenecen, sin duda, a esta época, nos indican lo contrario.

En el famoso capítulo XV de su Historia de la decadencia del Imperio romano, Gibbon ha intentado resolver esta cuestión pragmáticamente enumerando las diversas fuerzas psicológicas que actuaron entonces. Hegel trata de comprender el cambio que tuvo lugar en el estado espiritual de la época y que hizo posible la expansión del cristianismo. Éste es el método propio de él, que desenvuelve el de la historia pragmática.

Sempre abrange o conjunto da cultura e passa, na explicação das circunstâncias da organização política externa aos estados espirituais internos. Da trama da vida antiga foi-se desprendendo, até desaparecer, a fé nos deuses, que estava tão enraizada; isso significa que essa trama perdeu sua firmeza: o deslocamento da fé greco-romana nos deuses pelo cristianismo deve ter sido condicionado por uma “revolução silenciosa, secreta, no espírito da época”, “tão difícil de expressar em palavras quanto de compreender com elas”.

E agora vem a explicação. Onde estavam as causas dessa revolução do espírito antigo? “A religião grega e romana eram religiões de povos livres e, com a perda da liberdade, tinha que evaporar-se também o sentido e a força das mesmas.” “Para que servem as redes aos pescadores se o curso do rio secou?” O homem antigo livre obedecia a leis que ele mesmo se dava. A ideia de sua pátria, de seu Estado, era o mais alto pelo qual ele se esforçava. “Diante dessa ideia, desaparecia sua individualidade, não lhe ocorria mendigar para si mesma a perduração ou a vida eterna.” “Catão se interessou pelo Fédon de Platão quando foi destruído o que para ele era a ordem suprema das coisas, seu mundo, sua república; então se refugiou em uma ordem ainda mais alta.” A seus deuses da natureza, que dominavam pelo seu poder, o grego não podia opor-lhes, quando entrava em colisão com eles, mais do que a si mesmo, à sua liberdade; não conhecia nenhum mandamento divino e, se chama divina sua lei moral, ela o rege invisível, do mesmo modo que Antígona age conforme a vontade dos deuses. Neste trecho, encontramos o olhar penetrante de Hegel sobre a época clássica do homem grego. Como livre que vive entre livres, nenhum homem grego reconhecia a ninguém o direito de melhorá-lo ou mudá-lo; não existia nenhum padrão positivo para sua moral. Reconhecia-se o direito de cada um a ter sua própria vontade, fosse boa ou má. Os bons reconheciam o dever de ser bons, mas também honravam a liberdade dos outros de não quererem ser bons. Não existia nenhuma moralidade abstrata: nem autônoma nem autoritária. Encontramos, pela primeira vez, a distinção entre a moral[2], que se realiza no Estado, e a moralidade abstrata, como o nível mais baixo daquela.

Essa atitude do homem antigo se quebra quando guerras afortunadas, as riquezas e o bem-estar dão origem a uma aristocracia a quem o povo, primeiro voluntariamente e depois por violência, entrega o governo. Com isso, “desaparece da alma dos cidadãos a ideia do Estado como um produto de sua atividade” e, ao mesmo tempo, a capacidade do indivíduo de se sacrificar pela pátria, capacidade que Montesquieu, com o nome de virtude, transforma no princípio da República.

O caminho estava livre para o desenvolvimento do cristianismo. O indivíduo havia se tornado o centro de si mesmo. Os direitos do cidadão se limitaram à segurança da propriedade. Para esses homens, nos quais a vida se reduziu aos seus fins privados, a morte deveria ser algo espantoso.

Para os republicanos, o Estado havia constituído sua alma e esta era imortal, mas, uma vez que se rompeu essa relação com a eternidade, já não encontraram refúgio em seus deuses; estes eram seres singulares, incompletos, que não podiam satisfazer as exigências de uma ideia e com os quais, no entanto, o homem antigo havia se dado por satisfeito porque carregava o eterno, o autônomo, em seu próprio peito. E este é o pressuposto da dialética interna da religiosidade que Hegel desenvolve agora: “A razão não podia ceder até encontrar em algum lugar o absoluto, o autônomo, o magnífico.” Acostumados a obedecer a vontades estranhas, esses homens da Antiguidade decadente estavam bem preparados para se submeter a um poder divino estrangeiro. Nessas circunstâncias, surge o cristianismo. Ou era adequado às necessidades da época – “pois essa religião havia nascido em um povo com decadência semelhante e com um vazio e indigência parecidos, embora de outra natureza” – ou os homens podiam formar com ela o que eles precisavam.

Hegel desenvolve agora os traços fundamentais da nova religiosidade cristã; com um sentido histórico por sua grandeza que supera em muito o de Voltaire, Hume e Gibbon, mas também com uma consciência implacável da relatividade de toda manifestação histórica, consciência que constitui o outro aspecto dessa nova concepção histórica do mundo.

Correspondendo à etapa de seu pensamento, separa a religião de Jesus de sua corrupção. Era o “altar em que a geração enfraquecida encontrou autonomia e moralidade”, mas, pelas condições da época, teve que surgir dela a religião positiva. Caracteriza essa religião com três traços fundamentais.

Em primeiro lugar, já não se deseja a realização do ideal, mas apenas se deseja. E essa esperança vai sendo deslocada cada vez mais para o final dos tempos. Com uma dureza quase cruel, fala-nos da preguiçosa esperança messiânica que nasceu entre os judeus na época de sua decadência política, que se adornou depois de toda a fantasia oriental e à qual se prendeu esse desejo vazio.

O segundo traço da religião cristã positiva é a doutrina da maldade da natureza humana “tal como surge no seio dessa humanidade corrompida que tinha que se desprezar a si mesma do lado moral”.

Até a própria possibilidade de uma força para crer se tornou pecado e o bem se apresentou como a obra de um ser que está fora de nós.

O último traço consiste em que desaparece e se esquece no ideal de perfeição, ou seja, na representação de Deus, o moral. Aplicam-se ao objeto infinito ideias do mundo sensível, como nascer, criar, gerar, e transplantam-se conceitos numéricos como o de trindade e conceitos reflexivos como o de diversidade. O divino fim último do mundo se limita à expansão da religião cristã, em última instância, aos fins passionais dos sacerdotes. Da infelicidade dos tempos nasce a fuga para os céus. A perda da liberdade obrigava a salvar o absoluto da vida na divindade. Assim, com a decadência deste mundo, foi crescendo a objetivação da divindade e sua representação em fórmulas. Por esse Deus se matou, roubou e enganou. E o interesse pelo Estado se limitou à esperança egoísta da conservação da existência, da propriedade e do gozo. Quando os bárbaros se aproximam, São Ambrósio e o povo piedoso rezam em vez de lutar nas muralhas.

Encontramos aqui os traços principais daquela famosa descrição da “consciência desditosa” que Hegel apresenta na Fenomenologia do Espírito como uma etapa determinada do desenvolvimento humano: a alienação do espírito, que faz a cessão do que é perene nele a uma divindade ultramundana e retém para si a limitação, a individualidade, a contingência; a desdita dessa cisão da consciência, a sensibilização do além, ao qual submete e sacrifica asceticamente a existência individual inativa e sem gozos. Mas a dialética interna pela qual surge a consciência desditosa se coloca aqui em conexão histórica com a liquidação da moral antiga. Revela-se neste ponto o olhar histórico de Hegel. O leitor desta e de outras exposições semelhantes há de se convencer de que, no jovem Hegel, havia disposições de grande historiador, e isso antes que ele empreendesse a exposição da conexão em relações conceituais.

Também surpreende outra indicação, que nos leva às outras etapas, tais como as desenvolverá mais tarde a Fenomenologia do Espírito. Nessas, a fé em um indivíduo, que é o que constitui o cristianismo positivo, se transforma em algo superior. O que fez Jesus significativo como pessoa manifesta-se agora “como ideia em sua beleza”. O que o homem colocou no indivíduo Jesus agora o reconhece com alegria como obra própria.

Assim, o olhar penetra no porvir. “O sistema da religião, que sempre adotou a cor da época e dos regimes positivos, e cuja suprema virtude era a humanidade, receberá agora dignidade própria, verdadeira, autônoma.” E vem agora a tarefa de fundar sobre a fé racional a nova religião do povo.

Neste lugar, vamos resumir tudo o que conservamos dos trabalhos de Hegel sobre este tema; as diversas anotações mostram certas divergências, por isso mesmo que procedem de épocas diferentes. Alguns são muito imaturos e devem pertencer aos primeiros trabalhos. Nota-se sua dependência dos escritores da Ilustração, como Spalding, Mendelssohn, Lessing e da prosa brincalhona de Wieland. Ao estilo da juventude, Hegel tende à imagem, cuja forma, até os últimos contornos, é o efeito cômico de seu forte sentido realista, sendo que mais tarde sua linguagem saberá obter, com essas condições, efeitos poderosos. Suas ideias se tornarão mais firmes e seu estilo mais simples. Mas todos esses fragmentos estão entrelaçados em algumas poucas ideias fundamentais.

“O fim supremo do homem é a moral”, e “entre suas disposições para fomentar a moral, uma das mais excelentes é a religiosa”. Assim como a religião encontra seu núcleo nas ideias de Deus e da imortalidade, mas estas seriam ideias mortas se não fossem fruto da necessidade prática e não encontrassem seu fim na moral, assim também se trata de fortalecer o máximo possível as representações religiosas e o culto, mas submetendo-os ao mesmo tempo ao fim moral e mantendo-os adequados às necessidades do pensamento desenvolvido. Partindo dessa ideia, Hegel desenvolve suas exigências concernentes às representações e ao culto da religião popular.

Não deve conter o que a razão humana universal não reconhece. Toda proposição que ultrapasse esses limites será atacada, tarde ou cedo, por alguma razão. Aponta Spinoza, Shaftesbury, Rousseau e Kant como pensadores que “desenvolveram com pureza a ideia de moralidade em seu próprio coração e viram neste coração, como em um espelho, a beleza dessa ideia e foram arrebatados por ela”; mas quanto mais alta sua veneração pela moralidade, tal como está contida na doutrina de Cristo, mais desnecessários lhes pareciam os dogmas. Quando se aponta como fim da moralidade humana o agradar a Deus, isso deverá significar o enfrentamento com Ele como ideal de santidade.

Até a própria fundamentação da imortalidade pela necessidade prática da razão, que constitui uma parte essencial desta religião popular, deverá ser tratada com cautela para “enraizá-la na fé do povo”. Pois a esperança de prêmios e castigos em outro mundo facilmente pode degenerar em imagens fantásticas e, assim, enfraquecer os mecanismos morais.

A valorização da vida de Jesus tem a maior importância prática. Em si mesma, o sacrifício de sua vida por Sócrates é tão digno de admiração quanto o de Cristo, “mas a fantasia não se fixa no raciocínio da fria inteligência”; precisamente a união dos traços humanos individuais com um ideal moral e deste ideal com o resplendor do sobrenatural “corresponde à nossa inclinação pelos ideais que são mais do que humanos”. Mas, se se concentra a imitação de Cristo na de seus padecimentos, surge essa virtude fictícia que nos foi inculcada. Neste ponto coincidem o tratamento de Cristo por Hegel em sua religião popular e por Schleiermacher em sua doutrina da fé; ambos estão influenciados por Kant.

A fé em Cristo é para Hegel, nesta época, a fé em um ideal personificado; a educação do povo na percepção da ideia moral está intimamente relacionada com essa fé. Está, portanto, muito longe de considerar como essência do cristianismo a “objetivação” – no sentido de se tornar “objeto” – da manifestação do espírito absoluto no espírito humano por meio da “representação” da humanidade de Deus.

Trata-se de examinar a utilidade das representações cristãs para uma religião popular. Submete especialmente a uma crítica rigorosa a doutrina da “reconciliação”.

Muitas vezes Hegel colocou em paralelo o sacrifício alegre da vida pela pátria na grande época antiga com a morte de Cristo: não se trata de um fato incomparável da história, que nos conta sobre a morte de muitos heróis. Observamos novamente a forte oposição de Hegel com o mundo sentimental cristão. Sempre que ele toma consciência do sentido profundo de sua religião popular, que vai além do aumento da religiosidade subjetiva, tantas vezes se afasta do cristianismo e a ideia do grego se eleva diante de sua alma. A “ação principal” da religião do povo consiste na “elevação e nobreza do espírito de uma nação, de modo que desperte o sentimento, tantas vezes adormecido, de sua dignidade, para que o povo não o rejeite nem o deixe afastar de si”. Para isso, é necessário, em primeiro lugar, uma relação natural com as forças que se abatem sobre nós, como a encontramos entre os gregos. Com a doutrina cristã da Providência, que mede os destinos segundo o padrão da confiança em Deus fundamentada na fé autêntica, o homem se encontra em uma situação intolerável. Dentro do cristianismo devem nascer a falta de ânimo, as esperanças frustradas, a própria dúvida nesse ordenamento, que não fazem senão aumentar o predomínio da doutrina sobre o sentimento simples. O grego, com a “consciência da necessidade férrea”, aprende a suportar sem reclamar esse destino inevitável. “A desgraça era para ele desgraça, a dor, dor –o que aconteceu e não podia ser mudado, cujas intenções não se podia investigar, pois sua Tyche era cega–, mas se submeteram também a essa necessidade voluntariamente, com toda a resignação possível.” Esse pensamento teve a maior importância no grupo de ideias do período seguinte; mas, na época que nos ocupa, talvez seja mais importante a questão da organização da vida religiosa. Sua intimidade não deve se confrontar abstratamente com os costumes, as festas, a vida política de uma nação; a vida do povo não deve ser dividida por essa oposição entre a alegria de suas manifestações seculares e a secura de uma santidade afastada da vida que impede o gozo livre da força consciente de si mesma; Hegel sempre tem presente a conexão viva da intimidade religiosa com todas as manifestações da vida nacional, com os ordenamentos do Estado, como acontecia na Grécia. Por isso, ele também pede, no que diz respeito aos usos, festas e cerimônias, a união com as ideias e sentimentos do povo.

“Tais práticas essenciais da religião não devem estar propriamente mais perto desta do que do espírito do povo, e devem brotar dele, pois, do contrário, sua prática será fria, sem força, sem vida.” “Se as alegrias, se os gozos dos homens tiverem que se envergonhar diante da religião, se o que se regozija em uma festa pública tiver que rastejar no templo, então a forma da religião terá um aspecto sombrio.” Nas festas religiosas, nos jogos religiosos, deve se manifestar a felicidade do povo, mais do que tudo, a unidade de todo o seu ser. A esse respeito, Hegel tem expressões pouco simpáticas no que toca à comunhão, que propriamente deveria ser um gozo da comunidade e que agora só pode ser tomada com repulsa.

Ele acredita que, em sua época, não resta como “meio puro para elevar o sentimento sagrado, e que se preste a menos abusos, mais do que a música sagrada e o canto de todo um povo.”

III. Orientação ao panteísmo

1. Enquanto Hegel estava imerso nesses trabalhos sobre o cristianismo, o movimento filosófico avançava do idealismo da liberdade de Kant e Fichte para o idealismo objetivo de Schelling, sistema que concebe o universo como a ação natural da força divina.

Graças a Kant e ao cristianismo, Hegel se deteve por mais tempo no idealismo da liberdade do que Schelling. Quando agora, sob a influência de seu amigo, o novo movimento o atrai, ele penetra nele como o mais forte. Hegel havia vivido em si mesmo a Ilustração para superá-la, mas também se incorporou o perene dela; e isso lhe deu –como a todas aquelas mentes de sua geração que afirmaram a ciência frente ao romantismo, como Wilhelm von Humboldt, Niebuhr, Schleiermacher, Herbart e os grandes pesquisadores da natureza– segurança espiritual e firmeza, enquanto Schelling e Federico Schlegel se perderam na mística.

Nos dias em que Hegel escrevia as últimas linhas de seu esboço sobre a Vida de Jesus, recebeu uma carta de Schelling; ao mesmo tempo, ele lhe enviava seu segundo trabalho filosófico, que tratava do eu como princípio da filosofia. A carta de Tubinga indica uma forte depressão, aumentada pela doença e pela solidão. A ação de Fichte havia sido interrompida, os adversários da nova filosofia triunfavam, Schelling, após um período de produção apaixonada, sentia cansaço e desconfiança nas próprias forças. Por isso, ele agradecia o calor com que Hegel se mantinha ao seu lado.

Depois que Hegel estudou Fichte e leu o novo trabalho do amigo, manifestou (30 de agosto de 1795) seu assentimento. Pretendia escrever uma vez sobre o que quer dizer “aproximar-se de Deus”; queria colocar esse processo interno no lugar do método kantiano que conclui partindo de postulados: “O que me parecia obscuro e pouco desenvolvido, sua obra me esclareceu da melhor e mais satisfatória forma.”

Consola o amigo com palavras nobres e profundas. “Silenciosamente, você lançou sua palavra ao tempo infinito; a careta zombeteira é algo que você despreza, eu sei – sua obra não foi escrita levando em conta os que tremem com os resultados. Seu sistema abrigará o destino de todos os sistemas daqueles homens cujo espírito se antecipou à fé e aos preconceitos de seu tempo”; o que quer dizer, provocar a protesto e a refutação para, meio século depois, ser reconhecido pelo público como algo natural.

A obra de Schelling contém a primeira exposição do panteísmo tal como ele emerge do eu absoluto. Ela foi pensada como um complemento da Ética de Spinoza. Não se deve determinar a causalidade do eu infinito como moralidade ou como sabedoria, mas, unicamente, como poder absoluto.

Assim é superada a contradição apresentada por Kant; pois se o mundo suprassensível poderia ser objeto da filosofia prática como algo fora do eu, então deveria ser também objeto da filosofia teórica, ou seja, deveria ser cognoscível. Neste eu infinito não existe nenhuma personalidade nem nenhuma consciência. “Se a substância é o absoluto, o incondicionado, então o eu é a única substância.” Hegel assente a essas ideias, especialmente no que diz respeito à polêmica contra os atributos de Deus. No entanto, já naquela época ele rejeitou a aplicação do conceito de substância ao eu absoluto. Parece-lhe que o conceito de substância não pode ser aplicado ao eu absoluto, porque não pode ser separado do conceito dos atributos. Já aqui encontramos o embrião de sua constante discrepância com Schelling. Modestamente, ele acrescenta: “De meus trabalhos não vale a pena falar.” Talvez mais tarde ele envie o plano de algo que pretende fazer; trata-se de seus trabalhos sobre a religiosidade cristã.

2. Transcorre um ano entre essas manifestações de Hegel, que parecem atraí-lo pela primeira vez, de longe, para o novo panteísmo, e o poema Elêusis dedicado a Hölderlin, de agosto de 1796, em que se expressa o sentimento panteísta com uma força direta admirável. Não conservamos nenhuma manifestação desse ano que lançasse alguma luz sobre o desenvolvimento de sua concepção de mundo, pelo menos, nenhuma que pudesse ser atribuída com segurança a essa época. Apenas se pode suspeitar que sua natureza fundamental, sua entrega à objetividade de toda a realidade, seu ímpeto para abarcar tudo com toda a sua força, irrompe livremente uma vez que, sob a influência de Schelling, se rompem as barreiras que ele mesmo havia imposto ao seu espírito ao direcionar sua visão por tanto tempo para os pressupostos filosóficos do cristianismo, e irrompe com toda a sua força, em relação a uma ocasião que parece também liberá-lo externamente e renovar suas energias vitais abatidas. Hölderlin lhe perguntou se queria aceitar um cargo de preceptor em Frankfurt. Nestes versos, percebe-se bem o que Hölderlin significava no estado de espírito de seu amigo e até que ponto o entusiasmo de Hölderlin influenciava nele. Esses versos revelam o temperamento filosófico que Hegel compartilha com seus dois amigos, e como se manifesta em sua fantasia. Se sua orientação objetiva se dirige, por agora, aos problemas religiosos, estes também condicionam sua concepção panteísta fundamental. Por essa razão, ao conectar neste poema a intuição do “todo-um”, como algo inatingível e inefável, que só pode ser venerado em silêncio e simbolizado com ações, aos mistérios da Elêusis, nos quais o eterno toma forma na fantasia, marca uma virada notável no longo trabalho teológico solitário que temos descrito. Hegel escreveu o poema pouco antes de deixar Berna, na residência da família entre Neuemburgo e o lago de Biele.

Anoitece, o estado de espírito é o de Fausto ao voltar da festa de Páscoa para seu quarto de trabalho: “Ao meu redor, dentro de mim, sossego.” Lembra o amigo da velha aliança. “Viver apenas a verdade livre, nunca fazer as pazes com os princípios que estabelecem a opinião e o sentimento!” Do céu noturno desce o esquecimento de todos os desejos. O que meu eu nomeava, desaparece. Entrego-me ao imensurável. Estou nele, sou Tudo, sou somente Isso.

O pensamento retorna, se estranha, treme diante do infinito e, surpreso, não abrange a profundidade dessa visão. Então, lhe aparece a encarnação desse “um e tudo” nas figuras divinas da religião natural dos gregos. O mito e o culto dos mistérios de Elêusis se apresentam à imaginação do pensador solitário.

“A fantasia aproxima do sentido o eterno, a une com a forma.” Bem-vindos, espíritos sublimes, altas sombras, cujas frentes irradiam perfeição. Não tenho medo. Sinto, é também minha pátria, o brilho, a gravidade que vos cerca.

Quem me dera que as portas do santuário se abrissem! Quem me dera que os hinos soassem! Mas “nem um único som da consagração ouvimos”. “A plenitude da alta doutrina, o sentimento inefável do profundo, eram tão santos que o filho da consagração não poderia prestar atenção aos sinais secos.” Que contraste entre o segredo divino da natureza infinita expresso nos mistérios e a fileira de palavras da dogmática cristã, que se tornou “manto de hipócritas eloquentes”, “vara contra o alegre rapaz”. A visão termina com o ideal que o preenchia nesta época. Para os gregos, o mistério do infinito se apresenta na ordem moral e ideal de seu Estado, e não em palavras.

Não vivias em suas bocas.

Sua vida te honrava e em seus feitos vives ainda.

Também esta noite te senti, santa divindade.

Tu te revelas a mim frequentemente pela vida de teus filhos.

A ti te vislumbro como alma de seus feitos.

Tu és o sentido elevado, a fé fiel, a divindade que não oscila, embora tudo se afunde.


[1] Neste ponto, o manuscrito é interrompido. O propósito de Hegel, sem dúvida, era expor a seguir a transformação da religião positiva em fé racional.

[2] Esses dois conceitos hegelianos: Sittlichkeit e Moralität, têm sido traduzidos como eticidade e moralidade, respectivamente. Não acreditamos ser necessário o uso do neologismo eticidade. Em primeiro lugar, moral é a tradução correta de Sittlichkeit, assim como moral ou imoral são as traduções de sittlich e unsittlich; em segundo lugar, por sua referência a mores, aponta para o caráter concreto, institucional ao qual Hegel se refere, enquanto a palavra, mais nebulosa, moralidade, que é a mesma utilizada por Hegel, podemos usá-la, como ele, para designar a moral abstrata, “meramente” racional.

As mesmas razões que levaram Hegel a escolher a palavra Sittlichkeit – Sitte, costume – nos aconselham a nos apoiar em mores e não em ethos. Assim, coincidimos duplamente com a intenção de seus propósitos germanizantes, que o levam a reservar o vocábulo menos genuíno para designar o conceito menos substantivo.

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