Você irá ler, a seguir, um trecho da obra “Epístola Muito Útil”, de Marie Dentière. Caso deseje saber mais sobre a obra, ou saber como a adquiri-la, clique aqui, ou na capa abaixo.
Defesa das mulheres
Certos caluniadores e adversários da verdade não apenas tentarão nos acusar de audácia e temeridade excessivas, mas também o farão alguns dos fiéis, dizendo que é ousado demais para as mulheres escreverem umas às outras sobre questões das escrituras. Podemos responder a eles dizendo que todas aquelas mulheres que escreveram e foram mencionadas nas escrituras sagradas não deveriam ser consideradas audaciosas demais. Várias mulheres são mencionadas e elogiadas nas escrituras sagradas, tanto por sua boa conduta, quanto por ações, comportamento e exemplos quanto por sua fé e ensino. Sara e Rebeca, por exemplo, e, entre todas as outras, em primeiro lugar no Antigo Testamento. A mãe de Moisés, que, apesar do édito do rei, ousou salvar seu filho da morte e garantiu que ele fosse cuidado na casa de Faraó, como está amplamente declarado no Êxodo. Débora, que julgou o povo de Israel no tempo dos Juízes, não deve ser desprezada. Devemos condenar Rute, que, mesmo sendo do sexo feminino, teve sua história contada no livro que leva seu nome? Não penso assim, visto que ela está incluída na genealogia de Jesus Cristo. Que sabedoria teve a Rainha de Sabá, que não só foi mencionada no Antigo Testamento, mas a quem Jesus ousou nomear entre outros sábios! Se estamos falando das graças que foram concedidas às mulheres, que maior graça foi dada a qualquer criatura na terra do que à Virgem Maria, mãe de Jesus, ao ter carregado o Filho de Deus? Não foi pequena a graça que permitiu a Isabel, mãe de João Batista, conceber milagrosamente um filho depois de ter sido estéril. Que mulher foi uma pregadora maior que a samaritana, que não teve vergonha de pregar Jesus e sua palavra, confessando-o abertamente diante de todos, assim que ouviu Jesus dizer que devemos adorar a Deus em espírito e verdade? Quem pode se orgulhar de ter recebido a primeira manifestação do grande mistério da ressurreição de Jesus, senão Maria Madalena, da qual ele havia expulsado sete demônios, e as outras mulheres, às quais, em vez de aos homens, ele anteriormente se revelou por meio de seu anjo e ordenou que contassem, pregassem e declarassem isso aos outros?
Embora em todas as mulheres tenha havido imperfeição, os homens não estão isentos dela. Por que é necessário criticar tanto as mulheres, considerando que nenhuma mulher jamais vendeu ou traiu Jesus, mas um homem chamado Judas o fez? Quem, pergunto-lhe, são aqueles que inventaram e conceberam tantas cerimônias, heresias e falsas doutrinas na terra, senão os homens? E as pobres mulheres foram seduzidas por eles. Nunca se encontrou uma mulher que fosse falsa profetisa, mas as mulheres foram enganadas por eles. Embora eu não deseje desculpar a malícia excessivamente grande de algumas mulheres que vai além da medida, também não há razão para fazer disso uma regra geral, sem exceção, como alguns fazem diariamente. Tome em particular Fausto, aquele zombador, em suas Bucólicas[1]. Quando vejo essas palavras, claro que não posso permanecer em silêncio, considerando que elas são mais usadas e recomendadas pelos homens do que o Evangelho de Jesus, que nos é proibido, e que aquele contador de fábulas é bem considerado nas escolas. Portanto, se Deus deu graça a algumas boas mulheres, revelando a elas por suas sagradas escrituras algo santo e bom, elas deveriam hesitar em escrever, falar e declarar isso umas às outras por causa dos difamadores da verdade? Ah, seria ousado demais tentar detê-las, e seria muito tolo de nossa parte esconder o talento que Deus nos deu. Deus que nos dará a graça de perseverar até o fim.
Amém.
[1] A obra aqui referenciada é a do autor italiano Fausto Andrelini (1462–1518).