História das nações Latinas e Germânicas (1824), de Leopold von Ranke

Este prefácio é um dos mais importantes em teoria de história: trata-se daquele famoso em que Leopold von Ranke explica que pretende escrever “o que realmente aconteceu” em história.

Por alguma razão, jamais foi traduzido ao português.

Bem, eis o famoso prefácio, completo. Sua leitura pode ainda nos fazer perceber que, ao contrário da sua caricatura comumente apresentada em aulas de “Teoria de História” pelo Brasil afora, seu pensamento não era nada complexo.

“A intenção de um historiador depende de seu ponto de vista”: há algo de contemporâneo em Ranke, que talvez precise ser redescoberto.


História das nações Latinas e Germânicas (1824)

Prefácio

O presente livro, devo confessar, parecia-me mais perfeito antes de ser impresso, do que agora, após impresso. De toda forma, conto que os generosos leitores terão menor atenção às suas deficiências do que a suas possíveis virtudes. Para não confiar inteiramente em seu próprio efeito, não deixarei de dar uma breve explicação de seu objetivo, sua substância e forma.

A intenção de um historiador depende de seu ponto de vista; duas coisas podem ser ditas aqui. Primeiro, que as nações Latinas e germânicas parecem a mim enquanto uma unidade. Esta noção difere de três conceitos análogos: o conceito de uma Cristandade Universal (que incluiria mesmo os armênios); o conceito de unidade da Europa – pois, como os turcos são asiáticos, e considerando que o Império Russo compreende todo o norte da Ásia, sua situação não poderia ser completamente entendida sem investigarmos e recorrermos a todo um conjunto de contextos asiáticos –; e finalmente também o conceito mais análogo, o conceito de um cristianismo latino – não incluirei aqui as tribos eslavas, letãs e magiares, que pertencem ao último, pois possuem uma natureza peculiar e especial, que não está incluída aqui.

O autor tocará o que for exterior a essa unidade apenas enquanto assunto passageiro e subordinado, mantendo-se próximo das nações tribais de origem puramente germânica ou latino-germânica, cuja história constitui o núcleo de toda história moderna. Na seguinte introdução, tentarei esclarecer até que ponto esses povos se desenvolveram em unidade e em movimentos similares, principalmente por meio de questões internacionais.

Este é um aspecto da visão na qual o presente livro é baseado. Outro se expressa diretamente por meio de seu conteúdo. Abrange apenas uma pequena porção da história dessas nações, que poderíamos chamar de início da era moderna; trata-se apenas de histórias, não da História[1]; compreende, por um lado, a fundação da monarquia espanhola, a queda da liberdade italiana; por outro, a formação de uma dupla oposição, política pelos franceses, e eclesiástica pela Reforma, ou seja, a divisão de nossas nações em dois campos hostis, sobre os quais se baseia toda história moderna. Começa a partir do momento em que a Itália, ainda unida, desfrutava ao menos da liberdade externa e talvez pudesse ser considerada governante de si mesma, considerando sua proeminência sobre o Papado. Descreve-se, então, a divisão da Itália, a invasão por franceses e espanhóis, em alguns estados a queda de toda a liberdade, e em outros da autodeterminação, e procura, finalmente, apresentar a vitória dos espanhóis e o começo de seu domínio. Começa ainda com a insignificância política dos reinos espanhóis e alcança sua unificação, a cruzada dos reinos unidos contra os fiéis, e a renovação interior do cristianismo; procura deixar claro como esses fatores levaram à descoberta da América e à conquista de grandes Impérios, mas, acima de tudo, como se deu a dominação espanhola sobre a Itália, a Alemanha e a Holanda.

Em terceiro lugar, o texto continua a partir do momento em que Carlos VIII, defensor do cristianismo, coloca-se contra os turcos, por meio de toda a fortuna e infelicidade dos franceses, até o momento em que, 41 anos depois, Francisco I convoca esses mesmos turcos para o ajudarem contra o Imperador.

Finalmente persegue o surgimento de uma oposição política na Alemanha contra o Imperador e uma oposição religiosa na Europa contra o Papa, procurando pavimentar o caminho para uma visão mais completa da história do grande cisma provocado pela Reforma. Este cisma será considerado apenas em seu primeiro movimento. Este livro procura apreender, em sua unidade, todas estas e outras histórias relacionadas das nações Latinas e germânicas. A história recebeu a tarefa de julgar o passado e de instruir nosso presente em benefício de eras futuras. O presente trabalho não pretende alcançar tais encargos: pretende simplesmente mostrar o que realmente aconteceu[2].

Mas onde tal pesquisa poderia ser feita? A base do presente texto, a fonte de seu material, são memórias, diários, cartas, relatórios de embaixadores e relatos originais de testemunhas oculares. Outros textos foram utilizados apenas quando diretamente derivados destes, ou quando, por alguma informação original, fossem tais como estes. Cada página indica quais foram essas obras; a natureza da pesquisa e os resultados críticos serão apresentados em um segundo volume, a ser impresso simultaneamente.

Do objetivo e da substância surge a forma. Não se pode exigir, da história, o mesmo livre desenvolvimento da escrita que, pelo menos teoricamente, busca-se atingir em uma obra poética; e não estou certo de que alguém acredite tê-lo encontrado nas obras dos mestres gregos e romanos. A apresentação rigorosa dos fatos, por mais contingentes e desagradáveis que sejam, é sem dúvida a lei suprema. Uma segunda foi, para mim, o desenvolvimento da unidade e o progresso dos eventos. Em vez de, portanto, e como seria de se esperar, preceder a uma apresentação geral das condições políticas da Europa que, se não confundido, teria ao menos distraído nossa atenção, preferi discutir detalhadamente cada povo, cada poder, cada indivíduo, apenas quando passaram a desempenhar papel significativo de ação ou liderança: não me preocupei com o fato de que, aqui e ali – pois, como sua existência poderia ter sido ignorada? – deveriam ter sido mencionados anteriormente. Desta maneira, poderiam ser mais bem compreendida a linha geral de seu desenvolvimento, os caminhos que tomaram, o pensamento que os moveram.

Finalmente, o que será dito sobre o tratamento dado aos detalhes, tão importantes em um trabalho histórico? Não parecerá muitas vezes difícil, desconexo, incolor, tedioso? Existem para este trabalho padrões nobres, antigos e – não se pode ignorar – novos também; mas não ousei imitá-los: seu mundo era outro. Há um ideal sublime que se pode alcançar: o do próprio acontecimento em si, em sua inteligibilidade humana, sua unicidade, sua diversidade; é o que se almeja. Sei quão distante permaneci deste ideal. Você tenta, você se esforça, mas, no final, não o alcança. Mas que ninguém se impaciente com isso! Como afirma Jacobi, o importante é sempre a maneira como lidamos com a humanidade como ela é, explicável ou inexplicável: a vida do indivíduo, das gerações, dos povos; e, por vezes, com a mão de Deus sobre ela.

 


[1] “nur Geschichten, nicht die Geschichte” (N. do T.).

[2] “wie es eigentlich gewesen” (N. do T.).

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