Você irá ler, a seguir, um trecho do Capítulo “A Crítica” da obra “Apologia para a História” do historiador francês Marc Bloch. Caso deseje saber mais detalhes e adquirir a obra completa, clique na capinha abaixo.
III. A crítica
1. Esboço de uma história do método crítico
Que os testemunhos não devem ser necessariamente aceitos sem questionamento, mesmo os policiais mais ingênuos sabem bem. No entanto, muitas vezes, não se tira pleno proveito dessa compreensão teórica. Da mesma forma, há muito tempo percebemos que não devemos aceitar cegamente todos os testemunhos históricos. Uma experiência, quase tão antiga quanto a humanidade, nos ensinou: mais de um texto se apresenta como sendo de uma época ou origem diferente do que realmente é; nem todos os relatos são verdadeiros, e as evidências materiais também podem ser falsificadas. Na Idade Média, diante da abundância de falsificações, a dúvida frequentemente se tornava um reflexo natural de defesa. “Com tinta, qualquer um pode escrever qualquer coisa”, exclamava um nobre da Lorena no século XI, em um processo contra monges que usavam provas documentais contra ele. A Doação de Constantino – essa notável elucubração que um clérigo romano do século VIII atribuiu ao primeiro César cristão – foi contestada, três séculos depois, no círculo do piedoso Imperador Otão III. As falsas relíquias têm sido perseguidas quase desde que existem relíquias.
Entretanto, o ceticismo por princípio não é uma atitude intelectual mais admirável nem mais produtiva do que a credulidade, com a qual, aliás, muitas vezes se combina facilmente em mentes um pouco simples. Durante a outra guerra, conheci um veterinário corajoso que, não sem alguma aparência de razão, recusava sistematicamente acreditar em qualquer notícia dos jornais. No entanto, se um companheiro ocasional despejasse em seu ouvido atento as histórias mais incríveis, meu amigo as aceitava sem hesitação.
Da mesma forma, a crítica de senso comum, que foi por muito tempo a única praticada e ainda seduz algumas mentes, não podia ir muito longe. O que é, na verdade, esse suposto senso comum na maioria das vezes? Nada mais do que uma combinação de postulados não fundamentados e experiências generalizadas precipitadamente. Trata-se do mundo físico? Ele negou a existência dos antípodas. Ele nega o universo einsteiniano. Ele fez o relato de Heródoto, que afirmava que ao contornar a África, os navegadores viam o ponto onde o sol nascente passava da direita para a esquerda, ser considerado uma fábula. Trata-se de ações humanas? O pior é que as observações elevadas assim eternamente são necessariamente tomadas em um momento muito curto da duração: o nosso. Aí residia o principal defeito da crítica voltairiana, tão frequentemente perspicaz. Não apenas as peculiaridades individuais são de todos os tempos; mais de um estado de espírito comum no passado nos parece estranho, porque não o compartilhamos mais. O “bom senso”, parece, proibiria aceitar que o imperador Otão I poderia ter assinado, a favor dos papas, concessões territoriais inaplicáveis, que contradiziam seus atos anteriores e dos quais os que vieram depois não deveriam levar em conta. No entanto, devemos acreditar que ele não tinha a mente construída exatamente como a nossa – mais precisamente, naquele tempo, entre a escrita e a ação, havia uma distância cuja extensão nos surpreende – pois o privilégio é indiscutivelmente autêntico.
O verdadeiro progresso veio no dia em que a dúvida se tornou, como dizia Volney[1], um “examinador”; quando regras objetivas, em outras palavras, foram gradualmente elaboradas que, entre a mentira e a verdade, permitem fazer uma triagem. O jesuíta Papebroeck[2], cuja leitura das Vidas dos Santos inspirou uma desconfiança incontrolável em relação à herança de toda a Alta Idade Média, considerava falsos todos os diplomas merovíngios, preservados nos mosteiros. Não – respondeu, em essência, Mabillon[3] –, existem sem dúvida diplomas completamente forjados, modificados ou interpolados. Também há autênticos, e aqui está como é possível distingui-los. Naquele ano – 1681, o ano da publicação do “De Re Diplomatica”, uma data realmente importante na história do pensamento humano – a crítica de documentos de arquivo foi definitivamente estabelecida.
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Foi, aliás, nessa história da metodologia crítica, o momento decisivo, de qualquer forma. O humanismo da época anterior tinha suas pretensões e intuições, mas não foi além disso. Nada mais característico do que um trecho dos “Essais” de Montaigne. Lá, ele justifica Tácito por ter relatado prodígios. “É assunto”, diz ele, “para teólogos e filósofos discutirem as ‘crenças comuns’”. Os historiadores só precisam “recitá-las” conforme suas fontes as apresentam. “Que nos devolvam a história mais de acordo com o que recebem do que conforme o que estimam”. Em outras palavras, uma crítica filosófica apoiada em uma certa concepção da ordem natural ou divina é perfeitamente legítima; e entende-se que Montaigne não endossa os milagres de Vespasiano, assim como muitos outros. No entanto, ele não parece compreender bem como a prática do exame, especificamente histórico, de um testemunho como tal, seria possível. A doutrina da pesquisa foi elaborada apenas no decorrer desse século XVII, cuja verdadeira grandeza nem sempre é reconhecida no lugar certo, nomeadamente, em sua segunda metade.
Os homens daquela época tinham consciência disso. Era um lugar-comum, entre 1680 e 1690, denunciar como uma moda momentânea o “pirronismo da história”. “Dizem”, escreve Michel le Vassor[4] comentando esse termo, “que a retidão de espírito consiste em não acreditar levianamente e em saber duvidar em várias ocasiões.” O próprio termo “crítica”, que até então pouco designava além de um julgamento de gosto, assume quase um novo significado de prova de veracidade. No início, ousa-se apenas com desculpas. Porque “não está inteiramente em bom uso”: entendam que ainda tem um sabor técnico. No entanto, ganha cada vez mais aceitação. Bossuet o mantém prudentemente à distância. Quando fala dos “nossos autores críticos”, percebe-se o movimento de ombros. Mas Richard Simon[5] o inclui no título de quase todos os seus trabalhos. Os mais perspicazes, no entanto, não se enganam. O que esse nome anuncia é, de fato, a descoberta de um método de aplicação quase universal. A crítica, esse “tipo de lanterna que nos ilumina e nos guia nas estradas obscuras da antiguidade, fazendo-nos distinguir o verdadeiro do falso”, expressa-se assim Ellies du Pin[6]. E Bayle, ainda mais claramente: “O Sr. Simon espalhou, nesta nova Contestação, várias regras de crítica que podem servir não apenas para entender as Escrituras, mas também para ler com proveito muitas outras obras.”
Agora, comparemos algumas datas de nascimento: Papebroeck (que, se errou nas cartas, ainda assim ocupa um lugar de destaque entre os fundadores da crítica aplicada à historiografia), 1628; Mabillon, 1632; Richard Simon (cujo trabalho domina os primeiros anos da exegese bíblica), 1638. Acrescente, fora da coorte dos eruditos propriamente ditos, Spinoza – o Spinoza do “Tratado Teológico-Político”, essa obra-prima pura de crítica – filológica e histórica: 1632 ainda. No sentido mais justo da palavra, é uma geração cujos contornos se delineiam assim diante de nós, com uma notável clareza. Mas é preciso detalhar mais. É, precisamente, a geração que viu a luz do dia por volta do momento em que “O Discurso do Método” foi publicado.
Não digamos: uma geração de cartesianos. Mabillon, para citar apenas um exemplo, era um monge devoto, ortodoxo com simplicidade, e nos deixou, como última obra, um tratado sobre A Morte Cristã. Pode-se duvidar que ele tenha conhecido de perto a nova filosofia, tão suspeita para muitas pessoas piedosas; mais ainda, se por acaso encontrou algumas luzes, teria achado muitos motivos de aprovação. Por outro lado, mesmo que algumas páginas, talvez demasiado célebres, de Claude Bernard pareçam sugerir o contrário, as verdades evidentes, de caráter matemático, para as quais o método de dúvida de Descartes tem a missão de abrir caminho, apresentam poucos traços comuns com as probabilidades cada vez mais aproximadas que a crítica histórica, assim como as ciências do laboratório, se satisfaz em desenvolver. Mas, para que uma filosofia impregne toda uma época, não é necessário que ela aja exatamente conforme sua letra, nem que a maioria das mentes sofra seus efeitos de outra forma que não seja por uma espécie de osmose, frequentemente meio inconsciente. Assim como a “ciência” cartesiana, a crítica do testemunho histórico faz tabula rasa da crença. Como a ciência cartesiana ainda, ela procede a essa implacável reversão de todas as bases antigas apenas para chegar a novas certezas (ou grandes probabilidades), agora devidamente testadas. Em outras palavras, a ideia que a inspira pressupõe uma inversão quase total das concepções antigas da dúvida. Se suas mordidas pareciam uma aflição ou se alguém encontrava nele, ao contrário, uma nobre doçura, ele havia sido considerado até então como uma atitude mental puramente negativa, como uma simples ausência. Estima-se, agora, que conduzido racionalmente, pode se tornar um instrumento de conhecimento. É uma ideia cujo surgimento ocorre em um momento muito específico da história do pensamento.
A partir daí, as regras essenciais do método crítico estavam, em suma, estabelecidas. Sua abrangência geral escapava tão pouco que, no século XVIII, entre os temas mais frequentemente propostos pela Universidade de Paris para o concurso de agregação de filósofos, vemos um bastante moderno: “do testemunho dos homens sobre os fatos históricos”. Não é certamente porque as gerações seguintes não tenham trazido muitos aperfeiçoamentos à ferramenta. Sobretudo, elas generalizaram bastante o seu uso e consideravelmente ampliaram as aplicações.
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Durante muito tempo, as técnicas da crítica foram praticadas, pelo menos de maneira consistente, quase exclusivamente por um punhado de eruditos, exegetas e curiosos. Os escritores dedicados à composição de obras históricas com certo ímpeto raramente se preocupavam em se familiarizar com essas receitas de laboratório, que consideravam excessivamente minuciosas, e mal se dignavam a levar em conta seus resultados. Ora, nunca é bom, como disse Humboldt, que os químicos temam “sujar as mãos”. Para a história, o perigo de um tal cisma entre a preparação e a implementação é de duas faces. Ele atinge primeiro e cruelmente os grandes ensaios de interpretação. Estes não apenas falham, assim, no dever primordial da veracidade pacientemente buscada; privados, além disso, desse constante renascimento, dessa surpresa sempre renovada que apenas a luta com o documento pode proporcionar, torna-se impossível escapar de uma oscilação incessante entre alguns temas estereotipados impostos pela rotina. Mas o trabalho técnico em si não sofre menos. Não sendo mais guiado de cima, corre o risco de se agarrar indefinidamente a problemas insignificantes ou mal formulados. Não há desperdício pior do que o da erudição quando ela gira vazia, nem orgulho mais mal colocado do que o orgulho da ferramenta que se considera um fim em si mesma.
Contra esses perigos, o esforço consciente do século XIX lutou bravamente. A escola alemã, Renan, Fustel de Coulanges devolveram à erudição seu status intelectual. O historiador foi trazido de volta à bancada. No entanto, a batalha está completamente ganha? Seria muito otimismo acreditar nisso. Com demasiada frequência, o trabalho de pesquisa continua a avançar sem uma escolha racional de seus pontos de aplicação. Sobretudo, a necessidade crítica ainda não conseguiu conquistar plenamente a opinião desses “honestos cidadãos” (no antigo sentido do termo) cujo consentimento, sem dúvida necessário para a higiene moral de qualquer ciência, é especialmente indispensável à nossa. Tendo os homens como objeto de estudo, como poderíamos sentir que estamos cumprindo apenas pela metade nossa missão se os homens não conseguem nos compreender?
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Talvez, aliás, não tenhamos, na realidade, preenchido perfeitamente essa missão. O esoterismo árduo no qual alguns dos melhores entre nós persistem em se confinar; em nossa produção de leitura comum, a predominância do triste manual, que a obsessão por um ensino mal concebido substitui pela verdadeira síntese; a singular timidez que, assim que saímos do ateliê, parece nos proibir de apresentar aos leigos os nobres experimentos de nossos métodos: todos esses maus hábitos, nascidos da acumulação de preconceitos contraditórios, comprometem uma causa ainda assim nobre. Conspiram para entregar, indefesos, a massa de leitores às falsas luzes de uma história pretensa, cuja falta de seriedade, pitoresco de pacotilha e tendências políticas pensam redimir por uma imodesta segurança: Maurras, Bainville ou Plekhanov afirmam, onde Fustel de Coulanges ou Pirenne teriam duvidado. Entre a investigação histórica, como ela é feita ou aspira a ser feita, e o público que lê, inegavelmente subsiste um mal-entendido. Para envolver de maneira bastante curiosa ambos os lados, a grande controvérsia sobre as notas não é o menos significativo desses sintomas.
As margens inferiores das páginas exercem sobre muitos eruditos uma atração que beira o vertiginoso. Certamente, é absurdo sobrecarregar os espaços em branco, como fazem, com referências bibliográficas que uma lista, elaborada no início do volume, teria, na maioria dos casos, poupado; ou, pior ainda, relegar ali, por pura preguiça, extensos desenvolvimentos cujo lugar estava marcado no próprio corpo da exposição, de modo que o mais útil desses trabalhos muitas vezes precisa ser procurado na obscuridade. Mas quando alguns leitores reclamam que a menor linha, destacando-se no final do texto, confunde-lhes a mente, quando alguns editores afirmam que seus clientes, talvez menos sensíveis na realidade do que querem fazer crer, sofrem torturas ao ver qualquer folha assim desonrada, esses delicados simplesmente demonstram sua impermeabilidade aos preceitos mais elementares de uma ética da inteligência. Pois, fora dos livres jogos da fantasia, uma afirmação só tem o direito de se apresentar sob a condição de poder ser verificada; e para um historiador, indicar o mais brevemente possível a origem de um documento, ou seja, o meio de encontrá-lo novamente, equivale simplesmente a se submeter a uma regra universal de probidade. Envenenada por dogmas e mitos, nossa opinião, mesmo a menos hostil à luz, perdeu até mesmo o gosto pelo controle. No dia em que, tendo o cuidado primeiro de não afastá-la por um pedantismo ocioso, conseguirmos persuadi-la a medir o valor de um conhecimento pela sua prontidão em se submeter à refutação antecipada, as forças da razão conquistarão uma de suas vitórias mais brilhantes. É para isso que trabalham nossas humildes notas, nossas pequenas referências minuciosas, que tantos espíritos brilhantes zombam hoje, sem compreendê-las.
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Os documentos que os primeiros eruditos manuseavam eram, na maioria das vezes, escritos que se apresentavam por si mesmos ou que eram apresentados, tradicionalmente, como sendo de um autor ou de uma época específica e que narravam deliberadamente determinados eventos. Seriam eles verídicos? Os livros chamados de mosaicos eram realmente de Moisés – e os diplomas que trazem o nome de Clóvis eram legítimos? Qual era o valor dos relatos do Êxodo ou das Vidas dos santos? Esse era o problema. No entanto, à medida que a história passou a utilizar cada vez mais os testemunhos involuntários, ela deixou de poder se limitar a pesar as afirmações explícitas dos documentos. Foi necessário também extrair deles as informações que não pretendiam fornecer.
As regras críticas, que haviam se mostrado eficazes no primeiro caso, revelaram-se igualmente eficientes no segundo. Tenho diante de mim um conjunto de cartas medievais. Algumas estão datadas, outras não. Quando a indicação está presente, ela deve ser verificada, pois a experiência mostra que pode ser enganosa. Se estiver ausente, é importante restabelecê-la. Em ambos os casos, os mesmos meios serão utilizados. Através da caligrafia (caso se trate de um original), do estado do latim, das instituições mencionadas e do aspecto geral do documento, suponho, um ato atende aos usos facilmente conhecíveis dos notários franceses por volta do ano mil. Se ele se apresenta como da época merovíngia, a fraude é denunciada. Se estiver sem data, ela é aproximadamente fixada. Da mesma forma que o arqueólogo, que se propõe a classificar ferramentas pré-históricas por idades e civilizações ou a rastrear antiguidades falsas, examina, compara, distingue formas ou métodos de fabricação, seguindo regras, de ambos os lados, fundamentalmente semelhantes.
O historiador não é, e cada vez menos, aquele juiz de instrução um tanto rabugento cuja imagem alguns manuais de iniciação, se não tomarem cuidado, facilmente imporiam. Ele não se tornou, sem dúvida, crédulo. Sabe que seus testemunhos podem se enganar ou mentir. Mas, acima de tudo, preocupa-se em fazê-los falar para compreendê-los. Não é um dos menores méritos do método crítico ter conseguido, sem modificar seus princípios fundamentais, continuar a guiar a pesquisa nesse aprimoramento.
No entanto, seria desonesto negar: o testemunho falso não foi apenas o estímulo que provocou os primeiros esforços de uma técnica da verdade. Continua sendo o caso simples a partir do qual esta, para desenvolver suas análises, necessariamente deve partir.
[1] Constantin François de Chassebœuf, conde de Volney (1757 – 1820), filósofo francês (N.T.).
[2] Daniel Papebroch, (1628 – 1714), jesuíta e hagiógrafo flamengo (N.T.).
[3] Jean Mabillon, (1632 –1707), monge beneditino e historiador. Em sua obra, De re diplomatica, de 1681, Mabillon constrói uma análise de documentos medievais a partir da análise do estilo da escrita, dos tipos de selos, das assinaturas, para determinar sua veracidade (N.T.).
[4] Sacerdote e orador francês (1648 – 1718) (N.T.).
[5] Historiador francês (Ricardo Simon ou Richard Simon, (1638 – 1712) (N.T.).
[6] (1657 – 1719), historiador francês (N.T.).